Aquela noite parecia igual a todas as outras, até não parecer mais. A chuva fina batia no vidro panorâmico da cobertura como dedos impacientes, marcando um ritmo estranho no silêncio de São Paulo. Do alto, as luzes da cidade tremulavam como faróis perdidos. E ali, no centro daquele cenário de luxo, Eduardo Farias estava parado diante da janela, com a sensação clara, quase física, de que algo estava prestes a acontecer, algo ruim.
O cheiro de café requentado, esquecido sobre a mesa, se misturava ao perfume suave que ainda pairava no ar desde cedo, quando Camila havia passado por ali comentando sobre vestidos e convites de casamento, Eduardo respirou fundo, os ombros tensos e apoiou a mão direita no parapeito gelado.
Ele era um empresário respeitado, dono de uma rede de construção civil que qualquer concorrente invejaria. Um viúvo de três filhos pequenos que o Brasil inteiro conhecia pelos eventos de caridade que fazia em nome da esposa falecida Marina. Mas nada disso adiantava naquele momento, porque por trás da rotina impecável, a casa estava estranha, as crianças estavam estranhas.
Eduardo fechou os olhos por um instante, tentando lembrar quando aquela sensação começou. E a imagem veio nítida. Lara, sua filha mais velha, abaixando o rosto no jantar como se quisesse desaparecer. A sombra de medo que passou nos olhos dela durou meio segundo, mas o suficiente para atravessar o peito dele como um aviso. Ele não quis acreditar na época.
Agora aquilo o perseguia como um fantasma. Manhã seguinte, a mesa que fala sem som. O sol entrava pela vidraça grande da cozinha, mas o ambiente parecia frio. Eduardo observava os três filhos sentados à mesa como quem tenta decifrar um enigma. Lara, 9 anos, antes falante, mexia no pão sem comer.
Bia, sete, escondia um desenho debaixo do cotovelo, assim que ouvia passos no corredor. Pedro 5 abraçava o ursinho com tanta força que os dedos chegavam a ficar brancos. E então veio Camila. Saltos altos batendo no piso de madeira. Perfume de jasmim. Sorriso calculado. Bom dia, meus amores. Ela cantou, mas ninguém levantou a cabeça. Eduardo tentou observar com naturalidade, mas o que viu foi sutil e devastador.
Os ombros das crianças encolhendo, como se cada bom dia viesse acompanhado de algo que ele não estava vendo. “Eles estão quietos”, murmurou ele. Camila riu leve, passou a mão no braço dele, como quem embala um homem que não sabe das coisas. Amor, são crianças, estão só se adaptando.
Mudança de escola, madrasta, vida nova, é muita coisa. Ela dizia isso sempre, sempre com aquela voz doce, ensaiada, sempre com aquela convicção que fazia Eduardo se sentir culpado por desconfiar. Mas naquela manhã, pela primeira vez, ele percebeu um detalhe simples. Nenhum dos três olhou para Camila, nem por um segundo. O som que derruba certezas.
No fim da tarde, Eduardo voltou mais cedo de uma reunião, entrou silencioso pela porta lateral e ouviu vozes na cozinha. Não o riso alto e brilhante de Camila, outro tipo de voz. Cansada, honesta, doída. Ele se aproximou devagar. O cheiro de alho refogado enchia o ar, misturado ao som de panelas e talheres. A dona Zuleide, a cozinheira, falava num tom indignado.
Rosa, eu tô falando. Quando o seu Eduardo viaja, a Camila vira outra pessoa, grita com os meninos como se fossem peso. Coisa feia de ver. Eduardo congelou a dois passos da porta. Rosa, a fachineira, respondeu baixinho. Eu sei, Zuleide, eu vejo tudo, mas quem é que vai acreditar na gente? Ele é bom, mas tá cego. A frase entrou em Eduardo como um golpe seco. Cego.
Ele encostou a mão na parede fria, engolindo o seco. Quis entrar, perguntar, explodir, exigir explicações. Mas o medo, sim, medo, o prendeu no chão. E se fosse verdade? E se ele estivesse mesmo cego? Eduardo deu um passo para trás, depois outro. saiu da cozinha antes que elas o vissem. O coração batia rápido, descompassado.
Aquela era a primeira peça do quebra-cabeça que ele não queria montar, mas agora não havia volta, a noite do copo intacto. Horas depois, já na penumbra do escritório, Eduardo segurava um copo de whisky. Não bebeu. O gelo derretia devagar, como se estivesse medindo o tempo junto com ele. A foto de Marina na estante parecia encará-lo.
Ela estava sentada no jardim, rindo com as crianças no colo, o sol batendo no cabelo dela. Aquele sorriso quase dizia: “Edu, olha direito”. Ele passou a mão no rosto exausto. Um empresário pode entender de números, mas quando se trata dos próprios filhos, ele estava completamente perdido. Então a ideia, louca, perigosa, impensável, surgiu como um relâmpago silencioso.
Se ninguém mostra a verdade, ele mesmo teria que ver com os próprios olhos um disfarce feito de desespero. No dia seguinte à mesa do café, Eduardo anunciou: “Vou a Brasília, reunião urgente. Passo a semana toda fora.” Camila sorriu satisfeita. Vai dar tudo certo, amor. Pode deixar que eu cuido de tudo aqui.
As crianças não sorriram. Pedro abraçou o urso com força. Lara olhou para ele como quem pede para não ser deixada para trás. Bia nem levantou os olhos. Eduardo beijou cada testa, pegou a mala já pronta e saiu pela porta principal. Mas assim que passou do condomínio, o carro virou à esquerda, não para o aeroporto, para o centro da cidade.
Um brechó em uma rua apertada de Santa Cecília, cheiro de naftalina, ventilador velho fazendo barulho. Eduardo escolheu uma calça jeans gasta, camiseta simples, um boné verde. Passou a mão no tecido áspero. Aquilo não combinava em nada com ele e justamente por isso era perfeito. No carro, deixou a barba crescer por mais dois dias. Passou gracha nas mãos para parecer calejado.
Treinou uma voz mais grossa, um sotaque que lembrava o interior, e então fez a ligação. Alô, dona Camila. Aqui é o João, o jardineiro novo que a senhora pediu. Ah, sim. Pode vir hoje mesmo. Ela respondeu sem desconfiar de nada. Eduardo desligou devagar, olhou para si mesmo no retrovisor. Por um segundo, teve dificuldade de reconhecer aquele homem. Mas era isso.
Ou ele entrava na própria casa como um desconhecido, ou perderia os filhos no silêncio. O portão que vira a fronteira. A caminhonete velha que ele alugou parou duas quadras antes da mansão. Eduardo respirou fundo. O cheiro de gasolina, o calor abafado, o suor descendo pela nuca. Ele caminhou até o portão lateral dos fundos, aquele que quase nunca usara.
O vento balançava as folhas do alto e cada passo parecia mais pesado que o anterior. A campainha soou dura no silêncio da manhã. Dona Zuleide abriu, olhou ele de cima a baixo com um cansaço típico de quem já viu muita coisa na vida. É o jardineiro novo.
Eduardo baixou a cabeça, engoliu o orgulho e respondeu com a voz treinada: “Sou eu, João. Então entra. A patroa quer tudo impecável.” Ele entrou. Pisou o próprio jardim como se fosse território desconhecido. O lugar que antes pareciam memórias de família. Agora parecia palco de algo que ele não entendia. E foi nesse instante, enquanto o vento mexia uma folha seca pelo chão, que Eduardo sentiu a primeira certeza firme desde que aquela angústia começou.
Aquele não era mais um jardim, era uma fronteira, e tudo que estava do lado de dentro ia mudar. O portão lateral rangeu quando dona o Leade empurrou com o quadril. Eduardo entrou devagar. com o boné puxado até quase tapar os olhos. O cheiro de terra molhada se misturava ao cheiro de feijão cozinhando.
Algo tão simples e tão distante da vida que ele levava até ontem. A patroa quer tudo impecável hoje. Zuleide avisou já virando as costas para voltar à cozinha. Sim, senhora ele murmurou, tentando manter a voz mais rouca. pegou o carrinho de mão, o ansinho, as tesouras e foi até o canteiro das rozeiras. As mesmas roseiras que Marina plantou com tanto carinho.
Agora, de joelhos na terra, Eduardo percebeu algo absurdo. Fazia meses que ele não tocava naquele jardim. Sempre tinha uma reunião, uma ligação, uma urgência. Agora ele estava ali fingindo ser outra pessoa para conseguir enxergar a própria casa. O som dos saltos de Camila ecoou pelo piso da varanda. Eduardo ergueu o rosto devagar.
Ela estava ao telefone, o cabelo impecável, o vestido branco realçando cada gesto frio. Sim, amiga, claro que eu tô com saudade. O Edu viajou. Pois é, finalmente um pouco de paz. disse rindo com a voz tão doce que dava náuseia. Pausa. As crianças, hum, tão na deles, quietinhas, graças a Deus. Eduardo sentiu o estômago se contrair. Quietinhas. Ele sabia o que essa palavra significava na boca dela.
Primeira manhã, o mundo de cima e o mundo de baixo. Naquela manhã ele trabalhou de verdade, suor, terra, folhas secas colando na camiseta, podar galho, varrer, puxar carrinho. Cada movimento ajudava a abafair a angústia, mas não a apagava. Do jardim. Ele tinha uma visão perfeita da sala. Viu Pedro passar correndo com um carrinho de plástico, feliz por um instante, até trombar na perna de Camila. A taça de suco na mão dela balançou.
Olha por onde anda, Pedro. Ela resmungou, como se tivesse sido atacada. O menino parou murcho, apertando o brinquedo como se pedisse desculpa sem falar. Eduardo fechou a mão em torno do cabo do Anscinho. Ele nunca tinha visto aquela cena porque nunca estava ali. Camila se comportava assim quando ele estava longe.
Agora ele era o jardineiro invisível e ela mostrava quem realmente era. Minutos depois, ele viu Rosa passando com um balde, os cabelos presos num coque simples, o rosto cansado. Mas quando viu Pedro encostado na parede com a boca trêmula, ela se ajoelhou sem hesitar. O que houve, meu amor? Pedro apontou pro chão.
A Camila brigou comigo. Rosa limpou um risquinho imaginário no queixo dele e falou baixinho: “Eu tô vendo você. Tá tudo bem, viu? Você não fez nada errado.” Pedro sorriu. Pequeno, mas real. Eduardo precisou desviar o rosto para disfarçar o impacto daquilo.
Como ele nunca viu Rosa assim? Como nunca percebeu que ela enxergava as crianças melhor do que ele? Tarde, a cozinha vira refúgio. Quando o relógio marcou meio-dia, Camila saiu com a bolsa pendurada no braço. Vou no salão, volto à noite. As crianças que se virem com vocês aí, nenhum beijo, nenhum se comportem, nem um olhar para trás.
Assim que o portão fechou, a casa pareceu respirar. Eduardo, ainda fingindo arrumar vasos, viu Rosa chamar os três. Quem quer bolo de fubá saindo quentinho? Pedro abriu um sorriso tão grande que Eduardo sentiu um nó na garganta. Lara hesitou, sempre séria. Bia sentou primeiro, as mãozinhas agitadas em cima da mesa. Da porta de vidro, Eduardo assistia a uma cena que jamais tinha visto.
Rosa cortando fatias generosas, soprando o vapor para não queimar Pedro, elogiando o desenho de Bia, ouvindo Lara contar sobre um trabalho de história. parecia uma mãe, uma mãe que ele não foi capaz de ser, porque estava sempre ausente. A risada leve das crianças atravessou o jardim e bateu no peito de Eduardo como um lembrança dolorosa de Marina.
O som era igual, o tipo de riso que só aparece quando existe amor por perto. Segundo dia, a chuva que revela histórias. O segundo dia começou com chuva fina caindo sobre as telhas. Eduardo chegou cedo, capa velha nas costas, a camiseta grudando na pele, subiu na escada para limpar as calhas e dali do alto viu quase toda a casa. Camila ainda dormia. As crianças tomavam café com Zuleid.
Rosa limpava o corredor do segundo andar, com passos leves para não acordar ninguém. De repente, uma conversa na cozinha chamou sua atenção. Ele desceu rápido, ficando perto da janela entreaberta. Rosa, pelo amor de Deus, que cara é essa? Zuleide perguntou. Rosa colocou uma sacola sobre a mesa, a mão tremendo. A Ana Luía teve febre alta a madrugada inteira. Fiquei apavorada.
Levei no posto. A médica disse que é virose, mas ah, Zuleide, ela só tem se anos e eu não posso faltar hoje. Preciso do dinheiro. A voz dela falhou. Eduardo fechou os olhos, sentindo a frase se cvar nele. Rosa tinha uma filha, uma menina doente, e ele nunca soube. Eu fico pensando. Rosa continuou.
Será que sou uma mãe ruim por deixar ela doente em casa para vir limpar a casa dos outros? Zuleide tocou o ombro dela. Ruim é o mundo, Rosa. Você faz o que pode e faz muito. Eduardo enfiou as mãos sujas nos bolsos para não quebrar alguma coisa. Ele conhecia contratos milionários, mas não conhecia nada daquela mulher que convivia com seus filhos todos os dias. Era como perceber que sua casa tinha dois mundos.
O de cima do perfume caro e das regras silenciosas, e o debaixo do suor das panelas, do carinho escondido. Pequenas crueldades e pequenos milagres. O resto do dia foi uma coleção de cenas que Eduardo nunca tinha visto. Na sala, Bia tentou mostrar um desenho para Camila. A madrasta nem olhou.
Agora não, Bia, vai brincar, mas não faz bagunça. A menina guardou o papel dobrando devagar, com cuidado para não amassar. Eduardo viu o brilho de frustração nos olhos dela. Pouco depois, Rosa apareceu discretamente na porta. Sentou-se ao lado de Bia na escada, abriu o desenho e sorriu. Mas isso tá lindo demais, minha flor. Bia iluminou.
E aquele sorriso iluminou Eduardo também. Mais tarde, Lara desceu com um caderno de matemática. Eduardo a observou como quem olha para algo frágil demais. A menina parou no corredor. Rosa, você pode me ajudar com esse exercício? Claro que posso, Rosa respondeu. Eduardo viu as duas sentadas no chão.
Rosa explicando com paciência, desenhando setinhas, dando exemplos da vida real. Quando Lara acertou a conta, Rosa bateu palminha baixinho. Eu sabia. Você consegue qualquer coisa, menina. Lara sorriu pela primeira vez desde que Marina morreu. Eduardo precisou se encostar na parede. Era como ver Marina ali no jeito de incentivar, de acreditar, anoitecer.
Um insight doloroso. No final do dia, Eduardo ficou sozinho no jardim, o céu carregado de cinza. Depois da chuva, as luzes da casa se acendiam uma por uma, mas ele ainda estava do lado de fora, observando, engolindo cada verdade dura que descobriu. Agora, ele tinha certeza de três coisas.
Camila não amava seus filhos. Rosa a amava sem saber que ele via. Ele nunca tinha estado tão longe da própria família quanto nos dias em que achou que estava perto. Uma rajada de vento fez balançar as rosezeiras. Uma das pétalas caiu no chão, pousando bem ao lado do pé de Eduardo. E naquele pequeno movimento, ele entendeu a metáfora inteira.
Às vezes as coisas mais importantes caem bem na sua frente e você só enxerga quando decide olhar de verdade. Eduardo respirou fundo, puxou o boné mais para baixo e voltou a trabalhar, porque sabia, o pior ainda estava por vir. O sábado amanheceu com um sol tão forte que fazia o jardim brilhar. Mas dentro de Eduardo havia algo escuro, um aviso silencioso que ele não sabia explicar.
Desde cedo, ele já estava no quintal, mangueira na mão, molhando as plantas com um cuidado que não era exatamente sobre as plantas, era sobre vigiar. As crianças estavam em casa, Camila também, e ele sentia que isso era uma combinação perigosa. A cada passo que ele dava no jardim, o olhar ia para as portas de vidro, para os reflexos, para os pequenos movimentos dentro da sala. Pedro aparecia e sumia.
Bia passava com um livro abraçado no peito. Lara observava tudo de longe, como se esperasse que algo ruim acontecesse a qualquer momento. Eduardo apertou a mangueira com força. Aquele era o último dia. Ele sentia o tropeço que divide o mundo em antes e depois. Por volta das 10:30 da manhã, Pedro desceu às escadas com um copo de suco de laranja.
O menino cantarolava baixinho a música que aprendera na escola, um som inocente, doce, que preenchia a sala por um instante. Camila estava sentada no sofá bege novo, o sofá que ela mandara limpar três vezes na semana, o sofá que ela dizia que nenhuma criança deveria chegar perto. Ela rolava a tela do celular sem levantar a cabeça.
Pedro passou correndo, rápido demais para um sofá tão caro, lento demais para escapar do destino. O pé dele enganchou na ponta do tapete. O copo voou. O suco de laranja se abriu no ar como um raio de cor quente. As gotas bateram no sofá clarinho, impregnando um laranja profundo no tecido. Um segundo de silêncio absoluto. Depois veio o grito. Seu moleque. Camila se levantou como se tivesse sido atacada.
Você não presta atenção em nada. Olha o que você fez. Pedro congelou os dedos apertando o copo vazio. As lágrimas surgiram antes de qualquer palavra. Eu eu não quis. Foi sem querer, tia. Sem querer? Ela avançou, o rosto contorcido. Você sempre faz tudo errado. Sempre. Eduardo largou a mangueira.
A água caiu sobre seus pés, gelada. Ele deu um passo em direção à porta, mas parou quando viu uma figura emergir da cozinha. Rosa, o escudo humano. Rosa apareceu ofegante, avental sujo, mãos ainda molhadas de lavar a louça. Quando viu Camila sobre Pedro, algo acendeu nos olhos dela. Não era coragem de filme, era coragem de mãe. “Dona Camila, por favor, ele é só uma criança”, disse ela, tentando manter a voz firme. Camila virou para ela como se tivesse ouvido uma ofensa.
Eu já falei para você não se meter. Vai limpar o chão, Rosa. Criança tem que aprender. Rosa deu um passo à frente, depois outro. Ficou entre Camila e o menino. Ele tem 5 anos sussurrou. Cinco. Camila perdeu o ar por um segundo. Depois apontou o dedo no rosto de Rosa. Você tá demitida agora. Sai da minha frente antes que eu não vou sair. Rosa interrompeu a voz trêmula, mas firme.
Pode gritar comigo, pode me mandar embora, mas não encosta nele. Pedro começou a chorar atrás dela. Choro baixo, desesperado. O tipo de choro que rasga qualquer pai. Eduardo sentiu o coração bater no pescoço. A cena parecia puxá-lo para dentro com uma força quase física, mas antes que ele se movesse, outra voz cortou o ar.
Lara, a verdade que ninguém esperava ouvir. Da escada, Lara surgiu correndo, cabelo desgrenhado, olhos cheios de lágrimas e coragem. “Não bate nela!”, Ela gritou, descendo os degraus como se cada um fosse fogo. Você é má. Você sempre foi má. A gente queria que o papai nunca tivesse te conhecido. Camila virou chocada.
O rosto dela mudou de cor, indo do claro ao vermelho intenso. Volta pro seu quarto, Lara. Eu não vou. A menina gritou. Você odeia a gente? O mundo de Eduardo parou. Era isso. Era isso que ele precisava ouvir com os próprios ouvidos da boca da filha. Rosa tentou segurar Lara, mas a menina continuou falando. A Rosa nunca falou mal da senhora, nunca.
Ela só só cuidou da gente. Camila respingava ódio pelos olhos. E então, o momento que Eduardo sabia que era dele, ele entrou não como empresário, não como dono da casa, não como viúvo, como o jardineiro, o homem sujo de terra, com o boné baixo, luvas velhas e roupas que não pertenciam à aquele mundo.
Chega, a palavra saiu baixa, mas foi como um trovão. O boneque cai e a máscara junto. Camila olhou para ele com desprezo. Quem é você para meter o Eduardo? Levou a mão ao boné, tirou devagar, levantou o rosto, deixou que ela o visse por inteiro. O silêncio explodiu. Os olhos de Camila se arregalaram. Lara levou as mãos à boca.
Bia apareceu atrás da irmã, paralisada. Rosa, Rosa ficou imóvel, a lágrima presa no cílio. E Eduardo Camila balbuciou. Ele tirou as luvas uma por uma, largando sobre a mesa, luvas de trabalho sujas de terra, caindo perto da mancha de suco. “Eu vi tudo, Camila,” ele disse com a voz calma que vinha da raiva verdadeira.
Cada grito, cada humilhação, cada vez que você fez meu filho se sentir um peso. Camila tentou recuperar o controle. Você, você me enganou. Isso é loucura. Se disfarçar desse jeito, isso é doente. Doente. Ele a interrompeu. É tratar uma criança de 5 anos como lixo. Isso é culpa dessa fachineira. Camila apontou para Rosa. Ela virou as crianças contra mim.
Antes que Eduardo respondesse, Lara gritou: “Mentira! A Rosa nunca falou nada. Você que é cruel. Nada mais precisava ser dito. Eduardo respirou fundo, encarando Camila. Nosso noivado acabou. Você tem uma hora para pegar suas coisas e sair da minha casa. Camila empalideceu. Você não pode, Eduardo. Eu eu te amo.
Você ama o que eu tenho, não quem eu sou. Ela perdeu o controle, chorou, gritou, ameaçou o processo, prometeu vingança, mas no fundo já tinha perdido. Quando passou por ele para subir as escadas, Eduardo não se moveu e Camila desviou como quem desvia de uma porteira trancada.
15 minutos depois, ela desceu com duas malas e um rosto que já não parecia o mesmo. Passou pela porta sem olhar para ninguém. O motor do carro rasgou o silêncio, foi ficando longe, longe, até desaparecer. O abraço que reconstrói a casa ficou quieta. O tipo de silêncio que vem depois de um temporal. Eduardo se abaixou para pegar o anel no chão.
O mesmo anel que ele quase colocou no altar, o mesmo anel que agora estava sujo de suco de laranja. E então sentiu braços pequenos envolvendo suas pernas. Pai, você voltou. Pedro soluçou. Eduardo se ajoelhou no chão e abraçou o filho. Bia veio correndo. Lara caiu nos braços dele, chorando. Eles ficaram ali.
Um monte de amor amassado e choroso no centro da sala. Eduardo beijou cada cabeça, cada lágrima. “Me perdoem”, sussurrou. Me perdoem por não ter visto. Lara encostou a testa na dele. Você viu agora, pai? Foi então que Eduardo levantou o olhar. Rosa estava parada perto da porta, ainda segurando Pedro pela mão, os olhos vermelhos, o peito subindo e descendo devagar.
E pela primeira vez, Eduardo percebeu que não estava olhando para a faxineira que trabalhava na sua casa. estava olhando para a mulher que impediu sua família de cair inteira no chão. O boné de jardineiro ficou de lado, aberto, mostrando a curva interna manchada de suor e terra, como se dissesse que o disfarce tinha acabado e a verdade finalmente estava exposta.
Por alguns segundos depois da saída de Camila, a casa permaneceu imóvel, como se o ar inteiro estivesse tentando entender o que tinha acabado de acontecer. O vento passou pelas portas de vidro e moveu levemente as cortinas. Um gesto tímido, quase respeitoso. Eduardo ainda estava ajoelhado, com os três filhos grudados nele, respirando como que em volta do fundo de um mergulho longo demais.
O cheiro do suco derramado no sofá se misturava ao cheiro da terra seca, presa nas roupas de jardineiro que ele ainda usava. A gente tá seguro agora, pai?”, sussurrou Bia baixinho, como se tivesse medo da resposta. Eduardo a abraçou com força. “Tá sim, meu amor. Tá sim.
Agora tá!” Rosa continuava parada perto da porta, quieta, as mãos juntas, o peito ainda acelerado. Quando o olhar de Eduardo encontrou o dela, houve um segundo silencioso que dizia mais que mil palavras. Não era romance ainda, não. Era reconhecimento, gratidão e uma verdade que ele demorou semanas para enxergar. Talvez a casa inteira tivesse esperado esse momento.
Talvez até o jardim tivesse segurado a respiração. Dias de reconstrução e um pai aprendendo de novo. Os dias que seguiram foram estranhos, quase desconfortáveis. Como andar pela própria casa sem saber onde apoiar os pés? Eduardo cancelou todas as reuniões da semana. Café da manhã com as crianças. levar para a escola, buscar no fim da tarde, jantar juntos, simples e ao mesmo tempo assustador. Ele nunca tinha percebido o quanto tinha se afastado.
Lara continuava andando na ponta dos pés. Bia segurava o caderno como se fosse escudo. Pedro dormia agarrado no ursinho com tanta força que deixava marca no braço. E todas essas pequenas coisas doíam mais em Eduardo do que qualquer discussão com Camila.
Uma noite, enquanto ajeitava o cobertor de Pedro, ouviu: “Pai, você promete que não vai embora de novo?” Eduardo sentou na beirada cama. O abajur deixava metade do rosto dele na sombra. Eu vou precisar viajar às vezes, mas nunca mais vou sumir. Eu volto sempre. Eu prometo. Promete mesmo? O menino esticou o mindinho. Eduardo sorriu cansado e encostou o dedo no dele. Prometo. Aquele gesto simples valia mais que qualquer contrato.
Rosa, o coração que ele não viu chegar. Rosa continuou trabalhando na casa, mas algo entre os dois mudou. Não era constrangimento, era cuidado. Eduardo começou a reparar nas pequenas coisas. Como ela cantarolava enquanto passava pano, como ajeitava o cabelo atrás da orelha quando ficava nervosa.
Como sorria só com o canto da boca quando Pedro mostrava um desenho torto e, principalmente, como ela escondia o cansaço para não preocupar ninguém. Um dia, no final da tarde, enquanto Rosa secava o fogão, Eduardo se aproximou devagar. Rosa, como está sua filha? Ela levantou o rosto, surpresa com o interesse sincero. Melhor, graças a Deus, o remédio funcionou. Eu queria, Eduardo pigarreou.
Eu queria pagar um plano de saúde para ela. Não precisa agradecer. É só o mínimo que eu posso fazer. Rosa abriu a boca para responder, mas a voz não veio. Havia um brilho contido nos olhos dela que fez Eduardo engolir em seco. Era estranho. Ele via a força dela todos os dias, mas naquele momento viu também a fragilidade e isso mexeu com ele de um jeito que não esperava.
Um mundo ameaçado e alguém que retorna do passado. As coisas pareciam estar se encaixando quando numa quinta-feira à tarde a campainha tocou. Eduardo estava em videoconferência. Rosa a atendeu. Do outro lado, um homem magro, roupas amarrotadas, cheiro de álcool que atravessava o portão. Cadê a Rosa? A voz era pesada, arrastada. Eu vim buscar o que é meu.
Cadê minha filha? Eduardo ouviu seu nome ser chamado na cozinha. Desceu as escadas quase tropeçando, o coração batendo como se estivesse em alerta vermelho. “O que tá acontecendo?”, perguntou. Rosa, pálida, respondeu com dificuldade. Esse. É o Diego, pai da minha filha. Ele sumiu há 3 anos. Diego riu amargo.
Agora eu voltei e vou levar minha menina. As mãos de rosa tremiam. Eduardo sentiu o chão mover. “A criança não é um objeto”, disse ele firme. “E você desapareceu”. Isso conta? Não é da sua conta, bacana? Você nem conhece a história. Conheço o suficiente, retrucou Eduardo, dando um passo à frente.
E se quiser ir para justiça, vai me encontrar do outro lado com o melhor advogado de família do estado. Diego hesitou por um segundo. Os olhos dele mostraram medo. Medo de homem que só sabe gritar com quem não pode reagir. Você não vai pagar advogado para ela disse entre dentes. Ou sim. Eduardo respondeu. E vou até o fim.
Rosa desabou quando Diego finalmente foi embora, cuspindo ameaças para o vento. As pernas cederam. Ela caiu de joelhos, chorando com a mão no rosto. Eduardo se abaixou imediatamente. Rosa, olha para mim. Você não está sozinha. Eu vou ajudar. E pela primeira vez, ela acreditou. Justiça e o peso que finalmente cai.
Três meses depois, o processo estava decidido. Diego não compareceu à primeira audiência, nem a segunda. A juíza foi clara. Guarda integral para Rosa, pensão atrasada e visita somente mediante prova de mudança real. Nenhuma lágrima que Rosa tinha segurado nos últimos anos se segurou naquele dia. Eduardo a abraçou sem pressa, sem medo.
Um abraço de alívio, um abraço de acabou. Flores que voltam e sentimentos também. O jardim florescia como não florescia a morte de Marina. A casa respirava. As crianças riam de coisas pequenas. O cheiro de pão caseiro de Zuleide voltava a ocupar a cozinha. E Eduardo, Eduardo começou a sorrir sem perceber.
Um sábado à tarde, ele chamou Rosa para conversar no banco da Jabuticabeira, o lugar onde Marina adorava ler. Rosa, eu queria te dizer uma coisa, mas preciso que você não se assuste. Ela sentou devagar. A sombra da árvore deixava manchas de luz no rosto dela. Quando eu me disfarcei de jardineiro, achei que ia descobrir o pior, mas descobri você.
Rosa baixou os olhos. Seu Eduardo, eu não. Eu sei que a gente vem de mundos diferentes. Ele interrompeu. Sei que as pessoas vão falar, mas eu não me importo mais com isso, porque você me salvou, salvou meus filhos. Rosa respirou fundo. “Eu gosto do senhor”, confessou num fio de voz.
Mais do que achei que pudesse gostar de alguém de novo. Eduardo segurou a mão dela. Um toque simples, mas que parecia mudar a direção do mundo, o jardim que respira e uma nova família. Algumas semanas depois, Rosa apareceu com a filha, Ana Luía. A menina começou tímida, mas em pouco tempo corria pelo jardim com Pedro, Lara e Bia, rindo alto, tropeçando na grama.
Eduardo observava de longe, braços cruzados, um sorriso sincero, o tipo que nasce do peito, não do costume. Lara se aproximou e falou: “Pai, a rosa faz você sorrir de verdade?” Ele olhou para a filha. Faz sim. Do outro lado do jardim, Rosa levantou o rosto e sorriu também. O vento soprou suave, fazendo cair uma jabuticaba madura aos pés de Eduardo. Ele a pegou, girou entre os dedos, um fruto novo de um tronco antigo, caindo exatamente quando deveria.
E pela primeira vez em muito tempo, ele sentiu que o jardim e a vida estavam crescendo de novo no lugar certo.