O sino da igreja de São Pedro ecoou pela manhã fria de Petrópolis, cortando o silêncio da serra como um prenúncio. As badaladas lentas e solenes pareciam contar os segundos que faltavam para que a vida de Júlia Santos mudasse para sempre.
Ela estava parada diante do espelho embaçado no quartinho dos fundos da igreja, observando o reflexo de uma mulher que mal reconhecia. O vestido branco de noiva não era dela, fora emprestado por uma vizinha às pressas, ajustado com alfinetes e esperança. As flores do buquê colhidas de manhã no jardim da casa onde crescera, já começavam a murchar entre seus dedos trêmulos, 25 anos.
Júlia tinha apenas 25 anos e naquele momento sentia como se carregasse o peso de uma vida inteira nas costas. A porta rangeu. Silvia, sua madrasta, entrou com o rosto tenso e os olhos frios. “Está na hora”, disse ela, sem qualquer traço de emoção. Júlia engoliu em seco. Seus olhos castanhos buscaram algo, qualquer coisa que parecesse humano naquela mulher.
Mas Silvia já havia virado as costas, ajeitando o Charle sobre os ombros magros. “Eu não consigo”, sussurrou Júlia, a voz quebrando. “Não consigo fazer isso. Silvia parou, mas não se virou. Seu pai está morrendo, Júlia. Esse casamento é a única forma de salvar a vida dele. Ou você prefere vê-lo definhar numa cama de hospital sem os remédios que ele precisa? As palavras caíram como pedras.
Júlia fechou os olhos tentando conter as lágrimas que ameaçavam desabar. Dois meses antes, tudo tinha desmoronado. Seu José, o pai que a criara sozinho depois que a mãe partira, adoecera de repente. Diabetes avançado, problemas no coração, rins falhando. As contas médicas se acumularam mais rápido do que neve nas montanhas.
E quando o dinheiro acabou, quando os remédios ficaram inacessíveis, foi Silvia, a mulher que seu pai havia se casado trs anos antes, quem trouxe a solução. Um advogado elegante apareceu na porta de casa com uma proposta. O Dr. Rodrigo Almeida, juiz renomado e temido em toda a região, estava disposto a pagar todas as dívidas e custear o tratamento completo de seu José.
Em troca, queria apenas uma coisa, casar-se com Júlia. Mas por que, Júlia havia perguntado incrédula por ele faria isso? O advogado deu de ombros. O Dr. Almeida tem seus motivos. Ele precisa de uma esposa, questões de imagem, herança, política. Não importa. O que importa é que seu pai viverá. O casamento é apenas um contrato, nada mais.
Júlia havia implorado ao pai que recusasse, mas ele, deitado naquela cama, com os olhos fundos e a respiração fraca, segurou a mão dela com a pouca força que lhe restava. “Filha”, murmurou ele, a voz rouca, “Eu sei que não é justo, mas é a única saída. E você sempre foi mais forte do que pensa.
Por favor, deixe-me viver o suficiente para ver você feliz de novo. Como recusar o pedido de um homem à beira da morte? Agora, enquanto caminhava pelo corredor da igreja, sob os olhares curiosos e judgadores dos poucos presentes, Júlia sentia cada passo como uma eternidade. A música do órgão soava distante, abafada pelo som do próprio coração, batendo descompassado. No altar ele a esperava.
Rodrigo Almeida, alto, ombros largos, terno preto impecável, cabelos grisalhos nas têmporas, rosto esculpido em linhas duras. Ele tinha 38 anos, mas parecia carregar a severidade de alguém muito mais velho. Os olhos dele, cinzentos como o céu antes da tempestade, a encontraram. E Júlia sentiu um arrepio percorrer a espinha.
Não havia calor naquele olhar, nem gentileza, apenas vazio. Ela chegou ao altar. As pernas bambas, o padre, um homem idoso, de voz cansada, começou a cerimônia. As palavras se misturaram num borrão incompreensível. Júlia mal conseguia respirar. Quando chegou o momento, o padre se virou para ela. Júlia Santos, aceita Rodrigo Almeida como seu esposo para amá-lo e respeitá-lo na saúde e na doença, na alegria e na tristeza, até que a morte o separe.
O silêncio na igreja era absoluto. Júlia abriu a boca, mas nenhum som saiu. sentiu os olhos de todos sobre si, sentiu o peso do destino do pai, sentiu o vazio do homem ao seu lado e disse num fio de voz: “Aceito!” O padre se virou para Rodrigo. “E você, Rodrigo Almeida?” “Aceito.” Ele interrompeu.
A voz firme e cortante, como uma sentença judicial. Não houve beijo, não houve sorriso, apenas a assinatura fria nos papéis que selavam aquele acordo. Quando saíram da igreja, o céu de Petrópolis estava carregado, ameaçando chuva. Júlia entrou no carro preto de Rodrigo em silêncio.
Ele não disse uma palavra, apenas ligou o motor e partiu, subindo à estrada sinuosa em direção à mansão no alto da serra. Júlia olhou pela janela, vendo a cidade desaparecer lá embaixo, e, pela primeira vez, desde que tudo começara, permitiu que uma lágrima solitária escorresse pelo rosto. Ela havia se casado, mas a que preço! A viagem até a mansão durou 20 minutos, que pareceram horas. Rodrigo não disse uma palavra sequer.
Seus olhos permaneceram fixos na estrada, as mãos firmes no volante, a mandíbula tensa. Era como se Júlia nem estivesse ali. Ela tentou puxar conversa uma vez. A cerimônia foi breve. Silêncio. Desistiu. Voltou a olhar pela janela, observando as casas coloniais darem lugar aos casarões imponentes da serra. Hortênsiasu e roxas marjeavam a estrada, balançando suavemente com o vento que vinha das montanhas. Quando o carro finalmente parou, Júlia levantou os olhos e sentiu o ar faltar.
A mansão Almeida era uma construção do século XIX, toda em pedra cinza e janelas altas com venezianas escuras, três andares de imponência e frieza, cercada por jardins perfeitamente simétricos, mas desprovidos de cor. Tudo ali parecia calculado, medido, controlado. Até as árvores pareciam crescer em linhas retas. Rodrigo desceu do carro sem dizer nada e caminhou em direção à entrada.
Júlia ficou parada por um momento, segurando a bolsa de mão como se fosse um escudo. Então respirou fundo e o seguiu. A porta principal se abriu antes mesmo que Rodrigo tocasse a maçaneta. Uma mulher idosa de uniforme preto e avental branco apareceu, o rosto sério e os olhos pequenos examinando Júlia de cima a baixo, com desaprovação mal disfarçada. “Boa tarde, Dr.
Rodrigo”, disse ela com uma reverência discreta, então, sem o mesmo calor, acrescentou: “Senhora, boa tarde, dona Conceição.” Rodrigo respondeu, entregando o palitó para ela. Júlia, esta é dona Conceição, a governanta da casa. Qualquer coisa que precisar, fale com ela. Júlia abriu um sorriso tímido. Prazer em conhecê-la.
Dona Conceição apenas a sentiu fria, antes de se retirar com o palitó. Rodrigo caminhou pelo hall de entrada, um espaço imenso com piso de mármore, teto alto adornado com lustres de cristal e uma escadaria de madeira escura que subia em espiral. Cheirava a cera de móveis e solidão. “Ti casa tem três andares”, ele explicou sem olhar para Júlia.
Primeiro andar, sala de estar, biblioteca, sala de jantar e cozinha. Segundo andar, quartos e escritório. Terceiro andar, apenas depósito. Não há necessidade de subir lá. Júlia o seguia em silêncio, tentando absorver tudo. As paredes eram cobertas por quadros antigos de paisagens e retratos de pessoas que ela não conhecia.
Não havia fotografias, não havia flores, não havia nada que trouxesse vida à aquele lugar. Rodrigo parou no topo da escadaria do segundo andar e apontou para um corredor à direita. Há dois quartos no corredor principal. O meu é o primeiro, o seu é o último à direita. Júlia piscou confusa. O meu Pela primeira vez desde que entraram na casa, Rodrigo a olhou diretamente nos olhos e quando falou, sua voz estava carregada de uma frieza que cortou mais fundo do que qualquer lâmina. Este casamento foi um acordo, Júlia. Nada mais. A termos claros.
Eu paguei as dívidas do seu pai e custei o tratamento dele. Em troca, você vive aqui como minha esposa, aos olhos do mundo. Mas dentro destas paredes somos apenas dois estranhos, dividindo o mesmo teto. Não espero afeto, não espero intimidade, espero apenas descrição. As palavras caíram como chumbo sobre Júlia. Ela sentiu o rosto corar, não de vergonha, mas de indignação.
“Eu entendi os termos do acordo, doutor”, disse ela erguendo o queixo. “O senhor não precisa me lembrar que sou um fardo. Algo passou rapidamente pelos olhos dele. Surpresa, talvez, mas desapareceu tão rápido quanto veio. Ótimo, então não haverá problemas.” Ele se virou e caminhou em direção ao próprio quarto, fechando a porta atrás de si com um clique seco.
Júlia ficou sozinha no corredor, tremendo, não de frio, mas de raiva contida. Caminhou até o quarto que ele havia indicado e empurrou a porta devagar. O quarto era grande, mas impessoal. Cama de casal com lençóis brancos, guarda-roupa de mogno, uma poltrona perto da janela, tudo limpo, organizado, sem alma.
Ela caminhou até a janela e a abriu, deixando o vento fresco da serra invadir o espaço. Lá embaixo, o jardim se estendia até onde a vista alcançava, e, além dele, as montanhas de Petrópole se erguiam majestosas e indiferentes. Júlia se sentou na beira da cama e, finalmente, permitiu que as lágrimas viessem.
chorou baixinho, abraçando os próprios joelhos, sentindo o peso esmagador da realidade. Ela havia se vendido, não por dinheiro, mas por amor, e agora estava presa numa gaiola de ouro, casada com um homem que havia como nada mais que uma obrigação. Horas depois, quando a noite caiu e a casa mergulhou num silêncio quase opressor, Júlia ainda estava sentada perto da janela. não conseguia dormir.
A cada som, o vento, o ranger da madeira, o próprio coração batendo, ela se sobressaltava. No corredor passos. Ela congelou. Os passos pararam diante da porta do quarto dela. Ficaram ali parados por longos segundos. Júlia mal respirava, então os passos se afastaram.
No escritório do andar de baixo, Rodrigo Almeida estava sentado diante da escrivaninha, a testa apoiada nas mãos. Ele tentava se concentrar nos papéis à sua frente, mas a imagem dela não saía de sua mente. O jeito que ela o olhou, a voz dela dizendo: “Fardo!” Ele apertou os olhos. “Não deveria importar. Aquilo era apenas um acordo.
Ele precisava de uma esposa para manter as aparências, para silenciar os comentários sobre sua vida pessoal, para preservar a imagem que construíra ao longo de anos de carreira implacável. Júlia era conveniente, simples, silenciosa, perfeita para o papel. Então, por que a voz dela ainda ecoava em sua mente? Rodrigo se levantou, caminhou até a janela e olhou para o jardim imerso em sombras. No segundo andar, uma luz ainda estava acesa, o quarto dela.
Ele os punhos. Amanhã tudo volta ao normal, murmurou para si mesmo. Mas no fundo, algo sussurrava que nada jamais voltaria a ser normal. Os primeiros dias na mansão Almeida se arrastaram como uma eternidade silenciosa. Júlia acordava todas as manhãs ao som da chuva fina, batendo nas janelas.
Vestia um dos vestidos que misteriosamente apareciam dobrados na poltrona do quarto, sempre acompanhados de um bilhete frio com apenas as iniciais RA, e descia para um café da manhã solitário. Rodrigo nunca estava lá. Na primeira manhã, Júlia pensou que ele talvez tivesse saído cedo. Na segunda, começou a entender. Ele a evitava deliberadamente. “Bom dia”, ela disse na terceira manhã ao encontrá-lo finalmente na sala de jantar.
Rodrigo estava sentado na cabeceira da mesa comprida, escondido atrás do jornal O Globo. Ele murmurou algo inaudível sem abaixar o jornal. Júlia se sentou na outra ponta. Havia pelo menos oito cadeiras entre eles. Dona Conceição serviu café e pão com manteiga em silêncio, os olhos pequenos da governanta sempre vigilantes, sempre julgando. Dormiu bem? Júlia tentou novamente.
Suficientemente, Rodrigo respondeu ainda sem olhar para ela. O silêncio voltou pesado e constrangedor. Júlia mexeu no café, observando as voltas que a colher fazia na xícara. Contou até 10, depois até 20. Finalmente, Rodrigo dobrou o jornal e se levantou. Tenho audiências no fórum hoje. Voltarei tarde. E saiu sem esperar resposta.
Júlia ficou ali sozinha na mesa grande, sentindo-se menor do que nunca. Nos dias seguintes, estabeleceu-se uma rotina cruel. Rodrigo saía cedo e voltava tarde. Quando estava em casa, trancava-se no escritório. Quando se cruzavam nos corredores, ele apenas acenava com a cabeça e seguia em frente.
Júlia tentou se ocupar, tentou ler na biblioteca uma sala imponente com estantes que iam do chão ao teto, repletas de livros de direito e clássicos da literatura brasileira. Tentou caminhar pelos jardins, tentou ajudar na cozinha. Foi no terceiro dia que dona Conceição a parou na porta da cozinha. “A senhora não precisa se preocupar com isso”, disse a governanta, o tom educado, mas frio como gelo. Eu só queria ajudar.
Júlia respondeu, sorrindo nervosa. Não estou acostumada a ficar parada. A senhora é a esposa do Dr. Rodrigo. Há pessoas para cuidar dessas coisas, mas eu gosto de cozinhar. Na casa do meu pai, eu sempre aqui não é a casa do seu pai. As palavras foram ditas com tanta indiferença que Júlia sentiu como se tivesse levado um tapa.
Dona Conceição continuou picando legumes sem olhar para ela. Júlia saiu da cozinha com os olhos ardendo, mas se recusou a chorar, não frente daquela mulher. O único lugar onde Júlia encontrava paz era o jardim. Todas as tardes, depois que a chuva passava e o sol da serra iluminava timidamente as montanhas, ela descia pelos degraus de pedra e caminhava entre as hortênsias e as aleias. As flores estavam lindas, mas abandonadas.
Galhos secos, folhas caídas, ervas daninhas crescendo entre as raízes. Era como se a beleza daquele lugar estivesse lutando para sobreviver contra o descaso. Assim como eu, Júlia pensou, arrancando uma erva daninha com cuidado. Ela começou a cuidar do jardim. Todos os dias regava as flores, retirava as folhas secas, podava o que estava crescendo demais.
Cântarolava baixinho enquanto trabalhava, lembrando-se das tardes na casa simples onde crescera quando ajudava o pai no pequeno quintal. Era nesses momentos que conseguia esquecer por alguns minutos onde estava e por estava ali, mas a realidade sempre voltava. Uma tarde, enquanto regava as rosas perto da varanda, Júlia levantou os olhos e viu algo que a fez parar.
Na janela do escritório do segundo andar, Rodrigo estava parado, olhando para ela. Quando os olhos dele se encontraram, ele não desviou imediatamente. Ficou ali por mais alguns segundos, a expressão ilegível. Então, como se despertasse de um transe, fechou a cortina bruscamente.
Júlia sentiu o coração acelerar, não sabia porquê. Naquela noite, durante o jantar, outra refeição silenciosa e tensa, Rodrigo finalmente falou: “Percebi que você tem cuidado do jardim”. Júlia ergueu os olhos, surpresa. “Sim, espero que não se importe. Estava precisando de atenção. Não importo. Silêncio novamente. Júlia respirou fundo e reuniu coragem. Posso fazer uma pergunta?” Rodrigo a olhou levemente irritado.
“Depende da pergunta. Por que o senhor se casou comigo?” A pergunta ficou suspensa no ar como uma bomba prestes a explodir. Rodrigo largou o garfo devagar, os olhos fixos nela. Você sabe por quê? Foi um acordo. Mas por que um acordo? Por que precisava de uma esposa? Os olhos dele se estreitaram. Isso não é da sua conta.
Não é da minha conta. Júlia sentiu a voz subir sem querer. Eu abri mão da minha vida para estar aqui. Acho que mereço pelo menos saber o motivo. Rodrigo se levantou bruscamente, a cadeira raspando no chão de madeira. Você não abriu mão de nada. Você fez uma escolha e foi bem recompensada por ela.
Recompensada? Júlia também se levantou, as mãos tremendo. O senhor acha que dinheiro é recompensa suficiente para viver numa prisão? Os olhos de Rodrigo faiscaram. Prisão? Você tem comida, teto, roupas, conforto? Se isso é prisão, a maioria das pessoas daria tudo para estar no seu lugar. A maioria das pessoas não está casada com alguém que as trata como se fossem invisíveis.
A frase ecoou pela sala de jantar. Júlia arfava, as mãos fechadas em punhos. Rodrigo estava imóvel, o rosto petrificado numa máscara de frieza, mas nos olhos dele, por uma fração de segundo, Júlia viu algo diferente, algo que parecia quase com dor. Então ele virou as costas. Este casamento tem regras. Eu sugiro que você a siga. E saiu, deixando Júlia sozinha na sala, tremendo de raiva e frustração.
Naquela noite, Júlia não conseguiu dormir. Ficou deitada, olhando para o teto, as palavras de Rodrigo martelando em sua mente. Você não abriu mão de nada, mas abriu. Abriu mão de sua liberdade, de sua dignidade, de seu direito de escolher o próprio destino. E o pior de tudo, faria tudo de novo. Porque lá embaixo, numa cama de hospital, no centro de Petrópolis, seu pai ainda estava vivo, respirando, tomando os remédios que ela jamais conseguiria pagar sozinha. As lágrimas finalmente vieram silenciosas e quentes.
No escritório, três portas adiante, Rodrigo também não dormia. Ele estava sentado na poltrona de couro, um copo de whisky na mão, olhando para o vazio. A voz de Júlia ainda ecoava em seus ouvidos. alguém que as trata como se fossem invisíveis. Ele tomou um gole longo da bebida, sentindo o líquido queimar a garganta.
Era isso que ele fazia melhor, tornar as coisas invisíveis, emoções, fraquezas, culpas, mas pela primeira vez em muito tempo, algo recusava a desaparecer. Três semanas haviam-se passado desde o casamento, três semanas de silêncios, olhares evitados e conversas monossilábicas. Júlia havia aprendido a se mover pela mansão como um fantasma, silenciosa, discreta, quase inexistente, até que a carta chegou.
Era uma tarde nublada quando dona Conceição entregou o envelope fino com o timbre do Hospital Santa Teresa. Júlia o abriu com dedos trêmulos, já sentindo o coração apertar antes mesmo de ler. A senora Júlia Santos Almeida. Informamos que o tratamento do paciente José Santos requer ajuste na medicação.
Os novos remédios têm custo adicional de 2400 mensais, não cobertos pelo plano atual. Favor comparecer à recepção para regularização. Júlia leu e releu a carta, as palavras embaçando diante dos olhos. R$ 2400. Ela não tinha nem R$ 2 no bolso. Desceu as escadas rapidamente, o envelope amassado nas mãos. e parou diante da porta do escritório de Rodrigo.
Sabia que ele odiava ser interrompido durante o trabalho, mas não havia escolha. Respirou fundo e bateu entre. A voz dele era cortante mesmo através da porta. Júlia entrou devagar. O escritório era exatamente como esperava, escuro, cheio de livros pesados de direito, uma escrivaninha imponente onde Rodrigo estava sentado, inclinado sobre papéis.
Ele não levantou os olhos. O que foi? Eu preciso falar com o senhor. Estou ocupado. Eu sei, mas é sobre meu pai. Finalmente. Rodrigo ergueu o olhar. Os olhos cinzentos dela eram frios, impacientes. Feu pai está recebendo o tratamento completo conforme acordado. O que mais há? Júlia se aproximou da mesa estendendo a carta.
Os médicos mudaram a medicação. Os novos remédios não estão cobertos. Eu só preciso de de uma pequena quantia. Eu prometo devolver assim que devolver? Rodrigo interrompeu, largando a caneta com um clique seco. E como exatamente pretende devolver Júlia com as flores do jardim? O tom era de pura ironia. Júlia sentiu as faces arderem. Eu sei que não tenho dinheiro agora, mas eu posso trabalhar.
Posso encontrar um emprego e um emprego? Rodrigo se recostou na cadeira, cruzando os braços. Minha esposa trabalhando. E o que as pessoas vão dizer? que o juiz Rodrigo Almeida não consegue sustentar a própria casa. Não é sobre aparências. Júlia elevou a voz sem querer. É sobre o meu pai. Ele precisa desses remédios e eu já pago todas as contas dele. Sustento esta casa, sustento você. Mantenho seu conforto.
O acordo foi cumprido. Não me cabe financiar cada nova despesa que aparecer. Não é sobre conforto, as lágrimas começaram a arder nos olhos de Júlia. É sobre humanidade. Rodrigo se levantou bruscamente. Humanidade é o que eu ofereci quando tirei você da pobreza, Júlia, quando dei uma vida digna para você e seu pai.
Se não fosse por mim, ele já estaria morto. As palavras caíram como um soco no estômago. Como o Senhor ousa, como eu ouso dizer a verdade. Rodrigo caminhou em torno da mesa, a voz ganhando volume. Você entrou nesta casa por livre e espontânea vontade. Ninguém a forçou. E agora vem aqui exigir mais. Eu não estou exigindo.
As lágrimas finalmente transbordaram. Eu só estou pedindo uma ajuda, só isso. Meu pai está doente e eu pare de chorar. A ordem veio seca, cortante, mas Júlia não conseguia parar. As lágrimas desciam quentes pelo rosto enquanto ela tentava em vão enxugá-las com as costas da mão. “Não, não consigo”, soluçou ela. “Eu só queria queria que o Senhor me visse como uma pessoa, não como um fardo, não como uma obrigação, só como alguém que também sofre”. Rodrigo parou.
Algo na voz dela, no desespero puro e bruto daquelas palavras, o atingiu de um jeito que ele não esperava. Júlia estava parada ali, pequena e frágil, na luz fraca do escritório, os ombros tremendo com os soluços. E pela primeira vez desde que se conheceram, Rodrigo realmente a viu. Não a esposa de contrato, não a intrusa silenciosa, mas uma mulher. Uma mulher que abriu mão de tudo por amor.
Uma mulher que chorava não por si mesma, mas por outra pessoa. E algo dentro dele, algo que estava enterrado há tanto tempo que ele já nem lembrava que existia. se moveu. Júlia, esqueça. Ela disse à voz quebrada. Eu vou dar um jeito. Sempre dei.
E antes que ele pudesse dizer qualquer coisa, ela saiu do escritório, fechando a porta atrás de si. Naquela noite, Rodrigo não conseguiu trabalhar. Ficou sentado na mesma cadeira por horas, olhando para o lugar onde Júlia havia estado. Eu só queria que o senhor me visse como uma pessoa. As palavras a perseguiram como um fantasma. Ele tomou o whisky.
tentou ler processos, tentou se convencer de que fizera o certo, mas não funcionou, porque pela primeira vez em anos, a armadura que ele construíra tão cuidadosamente ao redor do próprio coração havia rachado e através da fenda algo doloroso e incômodo estava vazando. Culpa. Na manhã seguinte, Rodrigo desceu para o café da manhã mais cedo do que o normal. Júlia não estava lá.
Onde está minha esposa? Ele perguntou à dona Conceição. Saiu cedo, senhor. Não disse para onde ia. Rodrigo sentiu uma pontada estranha no peito, deixou o café entocado e voltou para o escritório, mas não conseguiu se concentrar. A cada som de porta de passos, ele levantava os olhos esperando ver Júlia.
Ela só voltou no fim da tarde, molhada de chuva, o rosto pálido e os olhos vermelhos. Rodrigo a esperava no hall de entrada. Onde você estava? Júlia o olhou, mas não respondeu. Apenas subiu as escadas devagar, os ombros curvados pelo peso invisível que carregava. Mais tarde, dona Conceição veio até ele. Senhor, a senhora pegou dinheiro do fundo da casa.
Rodrigo sentiu um choque percorrer o corpo. Quanto? R$ 2400. Ele fechou os olhos. Então era isso. Júlia havia pegado o dinheiro sem pedir, havia desobedecido, havia quebrado as regras e ele deveria estar furioso. Mas tudo que sentia era uma mistura confusa de raiva, frustração e algo que dolorosamente se parecia com admiração.
Naquela noite, Rodrigo foi até o quarto de Júlia. Bateu uma vez, duas, nenhuma resposta. Empurrou a porta devagar. Júlia estava deitada na cama, de costas para a porta. os ombros sacudindo levemente. Estava chorando de novo. Rodrigo ficou parado ali, a mão ainda na maçaneta, sem saber o que fazer. A imagem dela, tão pequena, tão quebrada, fazia algo doloroso se contorcer dentro do seu peito.
Ele abriu a boca para dizer algo, para gritar, talvez, para lembrá-la das regras, mas nenhuma palavra veio. Em vez disso, deu um passo para trás e fechou a porta devagar, com cuidado para não fazer barulho. Desceu as escadas como um homem em transe, caminhou até o jardim sob a chuva fina da noite. As flores que Júlia cuidava com tanto carinho brilhavam úmidas à luz fraca da varanda.
Ele se lembrou da tarde em que a viu cantar olando enquanto regava as plantas, sorrindo para as pétalas, como se elas pudessem ouvi-la. Você tem coragem de me dizer isso? Não é coragem, é verdade. Rodrigo passou a mão pelo rosto molhado de chuva, ou eram lágrimas. Ele não sabia mais. O que ele sabia era que algo havia mudado, algo irreversível.
Ele havia julgado pessoas a vida inteira, havia aplicado a lei com precisão cirúrgica, sem se deixar afetar por lágrimas ou súplicas, mas agora, pela primeira vez estava sendo julgado, e o veredito era claro, culpado. Amanhã amanheceu clara em Petrópolis.
Depois de dias de chuva, o sol finalmente perfurou as nuvens, iluminando a serra com aquela luz dourada típica do outono. As gotas da chuva noturna ainda brilhavam nas folhas, transformando o jardim da mansão Almeida numa tela impressionista. Rodrigo não tinha dormido. Passou a noite inteira no escritório tentando trabalhar, tentando ler, tentando fazer qualquer coisa que tirasse a imagem de Júlia chorando de sua mente, mas não funcionou.
Às 6 da manhã, ele desistiu, tomou banho, vestiu-se e, em vez de ir direto para o escritório, como sempre fazia, caminhou até a varanda que dava para o jardim dos fundos e a viu. Júlia estava ajoelhada perto dos canteiros de hortênsias, usando um vestido azul claro, o cabelo castanho preso num coque frouxo.
Ela regava as flores com cuidado, conversando baixinho com elas. Algo que Rodrigo já havia notado que ela fazia. A luz da manhã a envolvia de um jeito que a fazia parecer parte daquele cenário, como se ela pertencesse ali, não a mansão fria e imponente, mas aquele pequeno pedaço de vida que ela estava tentando cultivar.
Rodrigo ficou ali observando e pela primeira vez em semanas, talvez em anos, algo próximo de um sorriso tocou seus lábios. Como ele não tinha visto isso antes? Júlia não era um fardo, não era uma obrigação. Ela era real, genuína, uma luz em meio a toda a escuridão que ele havia construído ao redor de si mesmo, e ele a tinha tratado como lixo. A culpa voltou, afiada e implacável.
Rodrigo fechou os olhos, respirou fundo e tomou uma decisão. Desceu os degraus da varanda e caminhou em direção ao jardim. Júlia não ouviu se aproximar. Estava absorta no que fazia. cantar olando baixinho uma música que ele não reconhecia. “Bom dia, Júlia”. Sobressaltou-se, derrubando o regador.
Virou-se rapidamente, os olhos arregalados. “Dr. Rodrigo, eu eu não o ouvi chegar. Desculpe. Não queria assustá-la.” Ela se levantou devagar, limpando as mãos sujas de terra no avental. Havia algo diferente no tom de voz dele, algo que a deixou confusa. “Bom dia”, ela disse cautelosa. Rodrigo enfiou as mãos nos bolsos como se não soubesse o que fazer com elas. “As flores estão bonitas”, Júlia piscou.
“Ó, obrigada. Você tem cuidado delas com dedicação. Eu gosto. É relaxante. Silêncio. Mas diferente dos outros silêncios que compartilharam, este tinha algo de expectante. Júlia? Ela ergueu os olhos, o coração acelerando, sem entender porquê. Sim. Rodrigo hesitou. As palavras estavam presas na garganta, teimosas.
Ele não estava acostumado a isso, a pedir desculpas, a admitir que estava errado. Não precisa me chamar de doutor o tempo todo. Júlia arqueou uma sobrancelha surpresa. Como devo chamá-lo então? Rodrigo, Rodrigo é o suficiente. Ela abriu um sorriso pequeno, tímido. Está bem, Rodrigo. E quando ela disse o nome dele daquele jeito, suave, quase musical, Rodrigo sentiu algo estranho acontecer em seu peito, como se o ar tivesse ficado mais leve, como se o mundo tivesse ficado mais colorido.
“As flores realmente parecem melhores hoje”, ele disse, procurando algo para preencher o silêncio. Júlia riu. Ou talvez seja porque o senhor Porque você está olhando para elas pela primeira vez. Touchê. Rodrigo quase sorriu. Você fala com elas? Falo. Júlia admitiu sem vergonha. Acredito que palavras gentis ajudam qualquer coisa a florescer. Rodrigo a olhou por um longo momento.
Havia algo tão puro naquelas palavras, tão simples e verdadeiro, que ele se sentiu pequeno diante delas. Faz tanto tempo que não sei o que é isso. Júlia inclinou a cabeça, curiosa. O quê? Palavras gentis. Os olhos dela se suavizaram. Talvez você só tenha esquecido como elas soam. É possível. Júlia deu um passo em direção a ele, ousada. Você tem coragem de me dizer isso? Rodrigo arqueou uma sobrancelha.
Dizer o quê? Que esqueceu como ser gentil. Você o juiz mais temido de Petrópolis. O homem que nunca sorri, nunca hesita, nunca erra. Havia provocação naquele tom, mas também curiosidade genuína. Rodrigo sentiu os cantos da boca se curvarem involuntariamente. Você está me testando? Estou observando. E o que vê? Júlia o estudou por um momento, os olhos escuros percorrendo o rosto dele como se tentasse decifrar um enigma. Vejo alguém que construiu muros tão altos que esqueceu que existe um mundo lá fora.
A frase o atingiu em cheio. Rodrigo desviou o olhar claramente desconfortável. Você é diferente de tudo que imaginei, Júlia. Isso é um elogio ou uma advertência? Ele a encarou novamente, os olhos cinzentos encontrando os castanhos dela. Ainda não sei. O ar entre eles ficou denso. Júlia sentiu o coração bater mais rápido, mas não desviou o olhar. Rodrigo também não.
Ficaram ali num confronto silencioso que não era de raiva, mas de reconhecimento mútuo. É preciso ir. Rodrigo disse finalmente a voz um pouco rouca. Tenho audiências hoje. Claro. Ele deu alguns passos, mas parou. Virou-se. Júlia? Sim. Sobre ontem. Sobre o dinheiro. Ela ficou tensa, esperando a bronca. Eu sei que quebrei as regras. Não devia ter não.
Rodrigo interrompeu. Você fez o certo e eu eu devia ter ajudado desde o início. Júlia arregalou os olhos. Eu não vou providenciar que os novos remédios do seu pai entrem no plano. Você não precisa se preocupar com isso. Lágrimas subiram aos olhos dela, mas desta vez não eram de dor, eram de alívio, de gratidão. Obrigada, ela sussurrou.
Rodrigo apenas acenou com a cabeça e caminhou em direção à casa, mas quando chegou à porta não resistiu. Olhou para trás. Júlia estava de volta aos canteiros, sorrindo para as flores enquanto as regava. O sol brilhava nos cabelos dela, transformando os fios castanhos em ouro.
E Rodrigo, pela primeira vez em muitos anos, sentiu algo que havia esquecido, como chamar esperança. As semanas seguintes, trouxeram uma mudança sutil, mas innegável, na dinâmica da mansão Almeida. Rodrigo começou a aparecer mais, não apenas no escritório trancado ou nas refeições apressadas, mas nos espaços comuns.
Tomava café mais tarde, coincidentemente no mesmo horário que Júlia. Caminhava pelo jardim no final da tarde, sempre quando ela estava lá. fazia perguntas sobre as flores, sobre o dia dela, sobre os livros que ela estava lendo. Eram conversas curtas, cuidadosas, como dois animais feridos testando se o outro era seguro, mas eram conversas.
E Júlia, que havia aprendido a ler silêncios, começou a notar outros detalhes. A forma como Rodrigo a olhava quando achava que ela não estava vendo, o jeito que a voz dele suavizava quando falava com ela. A maneira como ele sempre encontrava desculpas para estar no mesmo cômodo. Era confuso, assustador e, estranhamente emocionante. Foi numa tarde chuvosa de quinta-feira que tudo mudou de vez.
Júlia estava na biblioteca, aquele santuário de madeira escura. e cheiro de livros antigos, tentando alcançar um volume de machado de Assis na prateleira mais alta, Dom Casmurro. Ela já havia lido três vezes, mas era seu favorito. Subiu na ponta dos pés, esticou o braço o máximo que conseguiu.
Os dedos roçaram a lombada do livro, mas não foi suficiente. “Droga”, murmurou ela. “Precisa de ajuda?” Júlia sobressaltou-se violentamente e perdeu o equilíbrio. Por uma fração de segundo, sentiu o corpo inclinar para trás, o chão se aproximando perigosamente, mas antes que pudesse cair, braços firmes asseguraram pela cintura. Rodrigo! O tempo congelou.
Júlia estava apoiada contra o peito dele, o coração batendo tão rápido que tinha certeza de que ele podia sentir. As mãos dele estavam firmes em torno de sua cintura, grandes, quentes, seguras. E o perfume dele, amadeirado, com notas de cedro e algo vagamente cítrico, invadiu seus sentidos. “Você está bem?” A voz de Rodrigo era rouca, próxima demais ao ouvido dela.
Júlia a engoliu em seco, sem conseguir falar, apenas a sentiu. Devagar, ele a ajudou a ficar de pé, mas não a soltou imediatamente. Ficaram ali, no espaço estreito entre as estantes, os corpos a centímetros de distância. Júlia finalmente reuniu coragem para olhar para cima. Os olhos de Rodrigo estavam fixos nela.
Não era mais aquele olhar frio e distante, era algo diferente, algo intenso, quase vulnerável. Rodrigo ela começou, mas a voz saiu num sussurro. Você precisa ter mais cuidado ele disse. Mas o tom não era de repreensão, era quase preocupado. Eu só queria pegar um livro. Dom Casmurro. Ela piscou surpresa. Como você sabe? Vi você lendo ontem no jardim. Ele tinha reparado.
Rodrigo finalmente se afastou, mas o movimento foi relutante. Ele alcançou o livro facilmente da prateleira e o entregou a ela. Os dedos deles se tocaram brevemente na transferência e Júlia sentiu uma corrente elétrica percorrer o braço. “Obrigada”, ela murmurou. Da próxima vez me chame. Prefiro ajudar do que ter que carregá-la desacordada até a enfermaria. Havia um tom de brincadeira na voz dele.
E quando Júlia ergueu os olhos novamente, viu algo que a deixou sem fôlego. Rodrigo estava sorrindo. Não era um sorriso grande, apenas uma leve curvatura dos lábios, mas era genuíno e transformava completamente o rosto dele. Suavizava as linhas duras, iluminava os olhos cinzentos, o fazia parecer.
“Humano, você acabou de sorrir”, Júlia disse maravilhada. “Sorri?” sorriu. Rodrigo passou a mão pelos cabelos, quase constrangido. Deve ser efeito colateral de passar tempo demais com você. Com você? As palavras ficaram suspensas no ar, carregadas de significado. Júlia abraçou o livro contra o peito, tentando controlar o coração acelerado. Não sabia que eu era contagiosa.
Você é muitas coisas que eu não esperava, Júlia. Como o quê? Ele a olhou por um longo momento, como se estivesse pesando as palavras. Forte, gentil, teimosa, teimosa. Você invadiu minha vida, virou minha rotina de cabeça para baixo e ainda tem a audácia de sorrir enquanto faz isso. Júlia sentiu as faces corarem. Eu não invadi nada.
Você me trouxe e me arrependo disso todo dia. As palavras deveriam doer, mas o tom da voz dele, a forma como ele a olhava, dizia exatamente o oposto. Mentiroso! Júlia, sussurrou. Rodrigo arqueou uma sobrancelha. Está me chamando de mentiroso? Estou. Ele deu um passo à frente, depois outro. Júlia recuou instintivamente até suas costas tocarem a estante de livros.
E por que acha que estou mentindo? Porque se realmente se arrependesse, não estaria aqui agora. Rodrigo parou o rosto a poucos centímetros do dela. Júlia podia sentir a respiração dele, ver as minúsculas linhas ao redor dos olhos cinzentos, o leve tremor no maxilar. “Você é perceptiva demais para o seu próprio bem”, ele murmurou. “E você é orgulhoso demais para o seu.
” Ficaram ali presos num momento que se esticava como elástico prestes a estourar. O ar estava denso, elétrico. Qualquer movimento, qualquer palavra poderia quebrar o encanto. Foi Rodrigo quem recuou primeiro, passando a mão pelo rosto como se estivesse tentando acordar de um sonho. Eu deveria ir. Tenho trabalho, claro. Mas ele não se moveu. Ficou ali olhando para ela com uma expressão que Júlia não conseguia decifrar. Júlia? Sim. Obrigado.
Ela franziu a testa. Por quê? por me lembrar que ainda sou capaz de sorrir. E antes que ela pudesse responder, ele saiu da biblioteca, deixando-a sozinha entre os livros e o perfume persistente de cedro. Júlia desabou numa poltrona, o livro caindo de suas mãos.
O coração ainda batia descompassado, as pernas tremiam levemente. O que acabou de acontecer? Ela não sabia, mas uma coisa era certa. Algo havia mudado irrevogavelmente entre eles, e ela não sabia se isso a assustava ou a emocionava. Os jantares mudaram, rantes silenciosos e tensos. Agora vinham acompanhados de conversas sobre livros, sobre a cidade, sobre memórias da infância.
Rodrigo descobriu que Júlia tinha um senso de humor afiado, escondido sob a timidez inicial. Júlia descobriu que Rodrigo, quando baixava a guarda, era surpreendentemente bem humorado. Uma noite, durante um jantar particularmente agradável, Rodrigo largou o garfo e olhou para ela com uma expressão séria. Júlia, preciso te contar algo.
Ela sentiu o estômago apertar. Aqui vem a parte onde ele diz que tudo isso foi um erro. Estou planejando um projeto novo no tribunal. Ela piscou confusa. Um projeto? Sim. Algo que ofereça assistência jurídica gratuita para famílias carentes aqui em Petrópolis. Pessoas que precisam de ajuda, mas não tem recursos para pagar advogados. Júlia largou a própria Fork, os olhos brilhando.
Rodrigo, isso é maravilhoso. Ele sorriu, um daqueles sorrisos raros que transformavam todo o rosto dele. Acha mesmo? Acho. Mas por que agora? O que mudou? Rodrigo ficou em silêncio por um momento, os olhos fixos no copo de vinho. Você a palavra pairou no ar como uma confissão. Júlia sentiu o coração acelerar. Eu Ele a encarou diretamente.
Durante anos acreditei que justiça era aplicar a lei sem emoção, que ser um bom juiz significava ser imparcial, frio, distante. Mas você me ensinou que justiça sem compaixão é apenas punição. Rodrigo, você me fez enxergar que há pessoas por trás dos processos. histórias, dores, necessidades, não apenas números e parágrafos. Júlia sentiu lágrimas arderem nos olhos. Eu não ensinei nada disso.
Ensinou sim, só por estar aqui, por ser quem você é. Ele estendeu a mão através da mesa, tocando levemente a dela. Júlia olhou para aquelas mãos, tão grandes, tão fortes, segurando-as dela com uma delicadeza que a surpreendeu. “Obrigado”, ele disse baixinho. “Por não desistir de mim. Eu jamais desistiria de você.
As palavras saíram antes que Júlia pudesse pensar, mas quando as ouviu, percebeu que eram verdadeiras. Em algum momento sem perceber, ela havia parado de ver Rodrigo como o juiz frio e aterrorizante. Agora via um homem complexo, ferido, tentando desesperadamente encontrar seu caminho de volta para a luz. Três semanas depois, a inauguração do projeto aconteceu numa tarde ensolarada no Tribunal de Justiça de Petrópolis.
A sala estava lotada, advogados, juízes, jornalistas e dezenas de pessoas simples que precisavam daquela ajuda. Júlia estava sentada na primeira fileira, vestindo um vestido azul marinho que Rodrigo havia comprado especialmente para a ocasião.
Ela se sentia deslocada em meio àquele mundo formal, mas Rodrigo havia insistido. Você é minha esposa. Seu lugar é ao meu lado, sua esposa as palavras ainda a faziam estremecer. Rodrigo subiu ao pódio, imponente no terno escuro, o rosto sério, mas quando seus olhos encontraram os de Júlia na plateia, algo nele se suavizou. Ele começou a falar. Durante muitos anos, pratiquei a lei acreditando que justiça era uma equação simples, crime mais evidência igual punição.
Mas a vida me ensinou já e continua me ensinando que a verdadeira justiça é mais complexa que isso. Ele fez uma pausa, os olhos novamente buscando Júlia. Justiça real reconhece que por trás de cada caso há uma pessoa, uma história, uma família e que às vezes a maior injustiça não é punir o culpado, mas ignorar o inocente que precisa de ajuda.
Os olhos de Júlia se encheram de lágrimas. Ela sabia, sabia que cada palavra daquele discurso era para ela. Este projeto, Rodrigo, continuou, é sobre estender a mão, sobre reconhecer que nem todos têm os mesmos recursos, as mesmas oportunidades e que nossa responsabilidade como agentes da justiça vai além de sentar numa cadeira e bater um martelo.
Aplausos ecoaram pela sala, mas Rodrigo parecia alheio a eles. Seus olhos permaneciam fixos em Júlia e ela sorriu. Foi um sorriso pequeno, úmido de lágrimas, mas cheio de orgulho. E quando Rodrigo o viu, algo dentro dele se assentou, como se uma peça que estivera faltando durante toda a vida finalmente tivesse encontrado o seu lugar.
Depois da cerimônia, no caminho de volta para casa, Júlia não conseguiu conter-se. Você foi incrível hoje. Rodrigo riu baixinho. Só li um discurso. Não. Você mostrou ao mundo quem você realmente é, e isso é muito mais importante do que qualquer palavra bonita. Ele parou o carro no acostamento no meio da serra e se virou para ela.
Sabe de uma coisa, Júlia? O quê? Eu passei a vida toda tentando ser perfeito, impecável, impenetrável. E em dois meses você conseguiu demolir tudo isso. Desculpa ela disse meio rindo. Não se desculpe. Rodrigo segurou o queixo dela gentilmente. É a melhor coisa que já aconteceu comigo. E ali no banco do carro com a serra de Petrópolis se estendendo ao redor deles, Júlia finalmente entendeu.
Ela não havia se apaixonado por Rodrigo de uma hora para outra. Foi um processo lento, gradual, como flores brotando em solo árido, como sol derretendo neve, como feridas fechando e deixando cicatrizes que provam que a cura é possível. Ela se apaixonou nas pequenas coisas, no primeiro sorriso, na primeira palavra gentil, na primeira vez que ele a viu de verdade.
E agora, olhando para aqueles olhos cinzentos que antes pareciam tão frios, Júlia viu algo diferente. Viu, amor. Três semanas depois da inauguração do projeto, Rodrigo recebeu um convite especial, fazer um discurso no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro sobre ética e humanização na magistratura. Era uma honra, um reconhecimento público de sua transformação.
E pela primeira vez ele queria compartilhar isso com alguém. Júlia, ele disse durante o café da manhã, preciso ir ao Rio na sexta-feira. Gostaria que me acompanhasse ela levantou os olhos, surpresa. Eu? Sim. Não será um evento formal. Quero que conheça o mundo fora dos muros desta casa. Júlia hesitou. A ideia de sair de Petrópolis, de passar um dia inteiro ao lado de Rodrigo, longe da segurança da rotina, era simultaneamente empolgante e aterrorizante.
Eu não sei se, por favor, a palavra simples, direta, carregava um peso que ela não esperava. Rodrigo raramente pedia. Ele ordenava, sugeria, decidia, mas nunca pedia. Está bem, ela disse, sorrindo. Eu vou. Na sexta-feira, às 7 da manhã, partiram juntos no carro de Rodrigo. Era um daqueles dias perfeitos de maio, céu azul, solve, brisa fresca vinda do mar. A descida da serra pela BR040 era espetacular.
Júlia colou o rosto na janela, maravilhada com a paisagem que se desdobra. Florestas densas, cachoeiras brilhando ao sol, montanhas que pareciam tocar o céu. “É lindo”, ela murmurou. Rodrigo a observou pelo canto do olho, um sorriso brincando nos lábios.
Nunca tinha vindo ao rio? “Não, meu pai, ele não tinha condições e depois que ficou doente, não havia tempo para viagens.” Rodrigo estendeu a mão e, num gesto espontâneo, entrelaçou os dedos dele nos dela. Júlia sobressaltou-se, mas não se afastou. Olhou para aquelas mãos unidas, grandes e pequenas, fortes e delicadas, e sentiu algo quente se espalhar pelo peito. “Então, hoje será especial”, Rodrigo disse baixinho. E foi.
O discurso no tribunal foi brilhante. Rodrigo falou sobre compaixão, sobre erros, sobre a coragem de mudar. E quando disse a palavra humanidade, seus olhos buscaram Júlia na plateia e ela sentiu o mundo inteiro desaparecer. Ele estava falando para ela.
Depois do evento, caminharam pelo centro histórico do Rio, pelas ruas estreitas, cheias de casarões coloniais, pelos cafés com cheiro de pão fresco e café forte, pelos mercados coloridos, onde vendedores gritavam ofertas. Júlia estava radiante, rindo alto, apontando para tudo, encantada com a energia vibrante da cidade. E Rodrigo, que normalmente detestava multidões e barulho, não conseguia parar de sorrir.
“Foi aqui que tudo começou para mim”, ele disse, parando em frente ao antigo prédio da faculdade de direito. “Estudei aqui, tornei-me juiz aqui, construí tudo aqui.” Júlia olhou para o prédio imponente e depois para ele. “E valeu a pena?” Rodrigo ficou em silêncio por um momento. Achei que sim. Durante muito tempo, achei que havia encontrado meu propósito.
Mas agora, agora ele a encarou. Agora percebo que estava apenas fugindo. De quê? De mim mesmo. Júlia sentiu o coração apertar. Havia tanta dor naquelas palavras, tanta verdade crua e vulnerável, que ela precisou lutar contra o impulso de abraçá-lo ali mesmo no meio da rua movimentada. Você não está mais fugindo”, ela disse suavemente.
“Não, não, você está aqui de verdade?” Rodrigo segurou a mão dela, entrelaçando os dedos novamente. “Por causa de você?” Júlia sentiu as lágrimas arderem. “Rodrigo, eu não diga nada ainda.” Ele interrompeu. “Deixe-me terminar.” Ele a puxou para um canto mais silencioso, longe do fluxo de pedestres, e segurou ambas as mãos dela. Passei anos construindo muros.
enormes, intransponíveis, muros para proteger meu coração, minha mente, minha sanidade. E funcionou por muito tempo. Funcionou. Lágrimas começaram a escorrer pelo rosto de Júlia sem que ela percebesse. Mas então você apareceu. Rodrigo continuou. A voz rouca.
E sem pedir licença, sem bater, você começou a derrubar tijolo por tijolo. E eu lutei, Júlia. Lutei tanto para manter aqueles muros de pé. Mas você eu o quê? Ela sussurrou. Você era mais forte que meus medos. O mundo pareceu parar. Os sons da cidade, carros, vozes, música de rua se transformaram num borrão distante. Rodrigo, eu me apaixonei por você, Júlia.
As palavras caíram como bombas entre eles. Júlia arfou, os olhos arregalados. Não sei quando aconteceu exatamente, ele continuou, as palavras saindo numa torrente, como se ele precisasse tirá-las do peito antes que perdesse a coragem. Talvez tenha sido quando te vi chorando pela primeira vez, ou quando te vi sorrindo para as flores ou quando você me confrontou sem medo, dizendo que eu estava errado.
Eu não sei, mas aconteceu. E agora? Agora não consigo imaginar minha vida sem você nela. Júlia estava chorando abertamente agora, o soluço sacudindo seu corpo. “Você não precisa responder”, Rodrigo disse rapidamente, limpando uma lágrima do rosto dela com o polegar. Não precisa dizer nada.
Eu só precisava que soubesse que meus sentimentos são reais, que você não é mais um contrato, uma obrigação. Você é você é a minha razão para acordar de manhã e meu último pensamento antes de dormir. Rodrigo, Júlia finalmente conseguiu falar entre os soluços. Você você tem certeza? Ele sorriu, aquele sorriso lindo e raro que transformava todo o rosto dele.
Nunca tive tanta certeza de nada na minha vida. E então, sem pensar, sem planejar, Júlia se jogou nos braços dele. Rodrigo a segurou apertado, o rosto enterrado nos cabelos dela, respirando aquele perfume de jasmim que o perseguia havia semanas.
Ficaram assim, por um longo momento, abraçados no meio da rua, indiferentes ao mundo ao redor. Quando finalmente se separaram, Rodrigo segurou o rosto dela entre as mãos. Posso? Júlia assentiu sem conseguir falar e ele a beijou. Foi um beijo lento, cuidadoso, como se Rodrigo estivesse com medo de quebrá-la.
Os lábios dele eram quentes e suaves, movendo-se contra os dela com uma ternura que a fez derreter. Júlia sentiu o mundo girar, agarrou-se aos ombros dele, perdendo-se naquele momento, naquele sentimento que era ao mesmo tempo novo e familiar. Quando se separaram, estavam ambos sem fôlego. Isso muda tudo Júlia sussurrou. Não precisa mudar, só precisa ser real. Ela riu entre lágrimas. É real, Rodrigo. É tão real que dói. Ele encostou a testa na dela.
Então deixe doer, porque pela primeira vez na vida, eu quero sentir tudo, até a dor. E ali, no centro histórico do Rio de Janeiro, com o sol se pondo sobre a baía de Guanabara, duas pessoas que nunca deveriam ter se encontrado finalmente se permitiram a mar. A viagem de volta para Petrópolis aconteceu num silêncio diferente. Não era mais o silêncio tenso e desconfortável dos primeiros dias.
Era um silêncio cheio, repleto de palavras não ditas, de toquesitantes, de olhares que diziam tudo. Rodrigo dirigia com uma das mãos no volante, a outra entrelaçada com a de Júlia. Ela olhava a estrada que subia à serra, mas seu pensamento estava milhares de quilômetros dali, ou melhor, estava exatamente ali, naquele momento suspenso entre o que foi e o que poderia ser. Júlia, ela se virou para ele.
Hum, você está quieta? Havia preocupação na voz dele. Está arrependida do quê? De hoje? Do beijo de nós. Júlia apertou a mão dele. Jamais. Rodrigo deixou escapar um suspiro de alívio que ela não esperava. Eu pensei que talvez, Rodrigo. Ela se inclinou e beijou a bochecha dele levemente, sentindo-o estremecer com o contato. Eu não me arrependo de nada.
Estou apenas processando. É muita coisa? É. Ela riu. Há dois meses eu me casei com um estranho frio e distante e agora estou voltando para casa, segurando a mão do homem que amo. Do homem que amo. As palavras saíram naturalmente, sem planejamento, mas assim que Júlia as ouviu, congelou. O carro desacelerou.
Rodrigo parou no acostamento e se virou para ela, os olhos arregalados. O que? O que você disse? Júlia sentiu o rosto pegar fogo. Eu não. Júlia. Repete, Rodrigo, por favor. Ela respirou fundo, reunindo toda a coragem que tinha. Eu disse que estou voltando para casa com o homem que amo. Por um momento, Rodrigo apenas a olhou.
Então, para completo choque dela, os olhos dele se encheram de lágrimas. Rodrigo, você está? Ele puxou-a para um abraço desesperado, enterrando o rosto no pescoço dela. “Eu nunca achei que ouviria isso”, ele murmurou contra a pele dela. “Nunca achei que alguém pudesse me amar. Sim.” Júlia afastou-se apenas o suficiente para segurar o rosto dele entre as mãos.
“Então, ouça bem, Rodrigo Almeida, porque eu vou dizer quantas vezes forem necessárias. Eu te amo. Amo sua força e sua vulnerabilidade. Amo seus sorrisos raros e suas palavras cuidadosas. Amo o homem que você se tornou e amo ainda mais o homem que você está se tornando. As lágrimas escorreram pelo rosto dele.
Júlia as limpou com os polegares, seu próprio coração quase explodindo de emoção. “Como você consegue me ver assim?”, Rodrigo perguntou a voz quebrada. Como você consegue ver bondade onde só há onde só há um homem que estava perdido, mas está encontrando seu caminho de volta. Júlia completou. Eu me sinto privilegiada por poder testemunhar essa jornada.
Rodrigo a beijou novamente, desta vez com mais intensidade, com urgência, como se precisasse provar a si mesmo que aquilo era real. E Júlia retribuiu com a mesma intensidade, deixando todo o amor que sentia transbordar naquele beijo. Quando chegaram à mansão, a noite já havia caído sobre Petrópolis.
A casa, que antes parecia fria e aterrorizante para Júlia, agora se erguia como um lar. “Nosso lar”, ela pensou e sorriu. Rodrigo parou o carro e se virou para ela. Bem-vinda de volta. É bom estar de volta. Ele saiu, deu a volta e abriu a porta para ela com uma reverência exagerada que a fez rir. Mas quando Júlia ia dar um passo, Rodrigo a surpreendeu. Num movimento rápido, pegou-a no colo. Rodrigo! Ela gritou, rindo.
O que você está fazendo? Carregando minha esposa para dentro de casa. Mas nós já estamos casados há dois meses, então estou dois meses atrasado. E ele a carregou pelos degraus da entrada, por sob a porta principal, através do hall de mármore. Dona Conceição apareceu, parou abruptamente ao vê-los e rapidamente desviou o olhar com um esboço de sorriso. Até ela percebeu. Júlia pensou maravilhada.
Rodrigo subiu as escadas sem esforço, levando-a até o segundo andar, mas em vez de levá-la para o quarto dela, parou diante da porta dele, olhou para Júlia, uma pergunta silenciosa nos olhos, e ela respondeu da única forma que importava, beijando-o novamente. Os dias seguintes foram como viver num sonho.
Júlia acordava de manhã e encontrava Rodrigo já acordado, observando-a dormir com aquele sorriso pequeno e terno que era só dela. Tomavam café juntos, conversavam sobre tudo e nada, riam de piadas internas que só eles entendiam. Rodrigo voltava mais cedo do fórum. Às vezes trazia flores, margaridas brancas, rosas amarelas, orquídeas roxas, sempre diferentes, sempre acompanhadas de bilhetes escritos à mão para a mulher que ensinou flores a florescer.
Você ilumina até os dias nublados. Te amo sempre. Júlia guardava cada bilhete numa caixa especial. que escondia na gaveta da cômoda. Uma tarde, enquanto caminhavam pelo jardim de mãos dadas, Rodrigo parou diante dos canteiros de hortênciassias que Júlia cuidava com tanto carinho. Lembra quando você me disse que conversava com as flores? Júlia riu. Lembro. E você achou que eu estava maluca? Não achei.
Ele a puxou para perto. Achei fascinante. Ainda acho. Por quê? Porque você acredita que até as coisas mais frágeis merecem amor e atenção e aplicou esse princípio a mim também. Júlia sentiu os olhos arderem. Você não é frágil, Rodrigo? Não. Ele sorriu tristemente.
Eu passei metade da vida tentando convencer o mundo de que era forte e a outra metade tentando convencer a mim mesmo. Mas com você, com você eu posso ser frágil, posso ter medo, posso duvidar e ainda assim ser amado. Júlia segurou o rosto dele com ambas as mãos. Você não é amado, apesar de suas fraquezas, Rodrigo. Você é amado por causa delas, porque elas te tornam humano. Real.
Ele encostou a testa na dela. Como eu vivi tanto tempo sem você esperando porque tudo tem seu tempo certo e esse é o nosso tempo. Júlia sorriu. Esse é o nosso tempo. E ali entre as flores que ela plantou e o amor que eles construíram juntos, Rodrigo entendeu algo fundamental. Ele não havia perdido nada ao se apaixonar por Júlia. Ele havia se encontrado.
Setembro chegou trazendo aquele frio característico da serra. Manhãs cobertas de neblina, tardes com sol tímido, noites estreladas e geladas. Júlia e Rodrigo haviam estabelecido uma rotina confortável: acordar juntos, café na varanda. Ele indo para o trabalho com um beijo demorado na porta, ela cuidando do jardim e da casa, ele voltando mais cedo só para passar mais tempo com ela. Era simples, era perfeito.
Até que numa manhã de sábado, Rodrigo acordou com uma ideia. Júlia, ele chamou, encontrando-a no jardim, como sempre. Ela estava ajoelhada perto das asaleias, usando aquele vestido azul que ele tanto gostava, os cabelos presos num rabo de cavalo. “Bom dia”, ela disse, sorrindo. Acordou cedo hoje. Não consegui dormir. A expressão dele era estranha, nervosa.
Júlia franziu a testa. Está tudo bem? Está. Aliás, está melhor que bem. Só preciso te mostrar uma coisa. Ele estendeu a mão. Júlia a pegou confusa e deixou que ele a guiasse até uma parte do jardim que ela não costumava frequentar, um canto escondido perto dos jasmins, onde havia um pequeno gazebo branco coberto de trepadeiras.
E foi ali que Júlia viu. O gazebo estava decorado. Flores frescas, rosas brancas, lírios, hortênsias azuis cobriam as colunas. Velas flutuavam em pequenos vasos de vidro. No centro havia uma mesa simples com um buquê de margaridas, suas flores favoritas. Júlia levou as mãos à boca, os olhos arregalados.
Rodrigo, o que? Ele se posicionou na frente dela, segurando ambas as mãos. Há algum tempo, eu me dei conta de algo importante. Do quê? De que nos casamos pelas razões erradas. Júlia sentiu o coração afundar. Rodrigo, se você está dizendo que Deixa eu terminar. Ele apertou as mãos dela. Nos casamos por obrigação, por um contrato frio e sem alma. Você não teve escolha e nem eu, na verdade.
Ambos fomos prisioneiros de uma situação que nenhum de nós queria. Lágrimas começaram a se formar nos olhos dela. Mas então, Rodrigo continuou soltando uma das mãos dela para pegar algo do bolso. Pensei que talvez pudéssemos começar de novo. Do jeito certo dessa vez. Ele se ajoelhou. Júlia arfou.
As lágrimas agora caindo livremente. Rodrigo abriu uma pequena caixa de veludo, revelando um anel simples, ouro branco, com um pequeno diamante no centro, discreto, elegante e perfeito. Júlia Santos, você veio até mim como um estranho numa tempestade e, sem pedir licença, transformou minha vida inteira. Me ensinou a sorrir novamente.
Me ensinou que ser forte significa também ser vulnerável. me ensinou que o amor não é uma fraqueza, é a maior coragem que existe. Ele respirou fundo, a voz tremendo levemente. Há se meses te pedi em casamento por todos os motivos errados. Hoje eu te peço novamente, mas pelos motivos certos. Não por dever, não por obrigação, mas por amor, por escolha livre e consciente.
Júlia estava soluçando agora, mal conseguindo ficar de pé. Casa comigo, Júlia, de verdade dessa vez. Não porque você tem que casar, mas porque você quer casar. Porque você me ama tanto quanto eu te amo. Porque não consigo imaginar acordar um dia e não te ver do meu lado. Silêncio. Apenas o som dos soluços dela e do vento nas folhas. Então Rodrigo perguntou um sorriso nervoso no rosto.
Vai me deixar aqui de joelhos o dia inteiro? Júlia explodiu numa risada chorosa. Sim. Sim. Você vai me deixar de joelhos ou sim, eu quero casar, ela gritou, se jogando nos braços dele. Sim, sim, mil vezes sim. Rodrigo a pegou no colo, girando-a no ar enquanto ria. Um som lindo, livre, cheio de alegria pura.
Quando finalmente a colocou de volta no chão, pegou a mão esquerda dela e retirou a aliança simples que ela usava desde o primeiro casamento. E no lugar colocou o anel novo. “Agora sim”, ele disse, beijando a mão dela. “Agora você está verdadeiramente casada comigo.” Júlia olhou para o anel brilhando no dedo, depois para o homem à sua frente, o homem que era tudo que ela jamais soube que precisava, e entendeu algo profundo. Às vezes, o amor não chega do jeito que esperamos.
Às vezes ele vem disfarçado de dor, de medo, de sacrifício, mas quando é real, quando é verdadeiro, ele transforma tudo. Até a prisão pode se tornar liberdade, até o estranho pode se tornar lar. “Eu te amo, Rodrigo Almeida”, ela disse, as lágrimas ainda escorrendo, “E me sinto honrada de ser sua esposa, de verdade dessa vez”.
Rodrigo a beijou longamente, profundamente, e quando se separaram, ele sussurrou contra os lábios dela: “Não, a honra é toda minha.” E no jardim que Júlia havia ajudado a florescer, sob o gazebo decorado com flores e velas, dois corações que começaram distantes finalmente se tornaram um. Outubro chegou com suas manhãs frescas e tardes ensolaradas. O jardim da mansão Almeida estava mais bonito do que nunca.
As hortênsias azuis em plena floração, as rosas trepadeiras cobrindo as paredes, o perfume de jasmim preenchendo o ar. Júlia acordou naquela manhã de segunda-feira, sentindo-se estranha. Não era exatamente malestar, mas algo diferente. Um cansaço que não passava, uma sensibilidade estranha a certos cheiros.
Quando Rodrigo beijou seu pescoço ao despertar, um ritual matinal deles, ela se afastou subitamente. Desculpa, é o seu perfume. Está muito forte hoje. Rodrigo franziu a testa. Estou usando o mesmo de sempre. Mas não insistiu. Apenas a observou com aquele olhar preocupado que sempre tinha quando algo não estava certo. Dois dias depois, a náuseia veio. Júlia mal conseguiu sair da cama correndo para o banheiro, enquanto Rodrigo a seguia. apavorado.
Júlia, o que está acontecendo? Você comeu algo estragado? Está doente? Ela queria responder, mas não conseguia. Quando finalmente saiu do banheiro, pálida e tremendo, encontrou Rodrigo segurando o telefone. Vou chamar o Dr. Silva. Agora não. Júlia segurou o pulso dele. Não precisa. Como não precisa? Você acabou de, Rodrigo.
Ela respirou fundo. Eu acho, acho que sei o que é. Ele a olhou sem entender. Como assim? Você sabe o que? E então, devagar, a compreensão surgiu no rosto dele. Os olhos se arregalaram. A boca se abriu ligeiramente. Você está Júlia assentiu as lágrimas já começando. Acho que sim. Por um momento, Rodrigo não se moveu, apenas ficou ali processando.
Depois, num movimento súbito, puxou-a para um abraço tão apertado que ela mal conseguia respirar. Meu Deus, meu Deus, Júlia. Ela sentiu o corpo dele tremer contra o seu e quando ele afastou-se, viu que Rodrigo estava chorando. Hei! Ela limpou as lágrimas dele. Não temos certeza ainda. Preciso fazer um teste. Então vamos fazer agora. Três horas depois, sentados no consultório do Dr.
Silva, um médico gentil de meia idade que atendia Rodrigo há anos, aguardavam o resultado. Júlia apertava a mão de Rodrigo tão forte que tinha certeza de estar machucando-o. Mas ele não reclamava. Apenas apertava de volta, o rosto uma máscara de ansiedade concentrada. A porta se abriu. Dr. Silva entrou com um sorriso no rosto.
Bem, parabéns, vocês dois. Vão ser pais. O mundo parou. Júlia começou a chorar imediatamente. Rodrigo ficou congelado por dois segundos completos antes de explodir numa risada estrangulada por lágrimas. Pai, eu vou ser pai. Nós vamos ser pais. Júlia corrigiu rindo e chorando ao mesmo tempo. Rodrigo a puxou para um beijo desesperado, sem se importar com o médico ainda no consultório.
E quando se separaram encostou a testa na dela. Um bebê. Nosso bebê. nosso bebê”, ela repetiu, as palavras suando como milagre. No caminho de volta para casa, nenhum dos dois conseguiu parar de sorrir. Rodrigo dirigia com uma das mãos, a outra repousada suavemente sobre a barriga, ainda lisa de Júlia. “É cedo ainda”, ela disse.
“Mal dá para acreditar que há uma vida crescendo aqui. Eu acredito.” Rodrigo beijou a mão dela. “Acredito em milagres agora. Por quê? Porque você é um e esse bebê é outro. Júlia sentiu as lágrimas voltarem. Pare de me fazer chorar. Nunca vou parar. Ele sorriu. Você é linda quando chora. Eu sou um desastre quando choro. Você é meu desastre.
Naquela noite, deitados juntos na cama, Rodrigo não conseguiu parar de tocar a barriga de Júlia. Passava a mão suavemente sobre o tecido da camisola, como se pudesse sentir algo já. O que você está fazendo? Ela perguntou divertida, conversando com nosso filho. Ele mal tem o tamanho de um grão de feijão, Rodrigo. Não importa.
Quero que ele saiba que é amado desde já. Júlia sentiu o coração derreter completamente. E o que você está dizendo para ele? Rodrigo pensou por um momento que eu prometo ser o melhor pai que puder, que vou protegê-lo, amá-lo, ensiná-lo a ser gentil num mundo duro. Ele fez uma pausa.
E que ele tenha a melhor mãe do mundo. As lágrimas escorreram silenciosamente pelo rosto de Júlia. Como você faz isso? O quê? Me fazer sentir que sou a pessoa mais especial do universo. Rodrigo subiu pelo corpo dela e a beijou suavemente. Porque você é para mim? Você é. E ali, no quarto que antes simbolizava solidão e agora era preenchido de amor, eles sonharam com o futuro.
Com um bebê de cabelos escuros e olhos castanhos, com risadas preenchendo a mansão, com uma família que nenhum dos dois jamais imaginou ter. Os meses seguintes foram uma montanha russa de emoções. Júlia lidava com enjoos matinais, mudanças de humor e uma fadiga constante.
Mas através de tudo isso havia alegria, uma alegria radiante que iluminava não apenas a mansão, mas toda a vida deles. Rodrigo se transformou num marido ainda mais atencioso. Acordava cedo para preparar chá de gengibre para os enjoos de Júlia. Massage pés inchados à noite, lia livros sobre paternidade com a seriedade de quem estuda para o caso mais importante da carreira. “Rodrigo, relaxa.
” Júlia disse uma noite, rindo ao vê-lo fazendo anotações num caderno grosso. Não é uma prova, eu sei, mas quero fazer certo. Você vai fazer. Só de se importar tanto, você já está fazendo certo. O projeto social que Rodrigo iniciara no tribunal havia crescido exponencialmente. Agora atendia mais de 50 famílias por mês, oferecendo não apenas assistência jurídica, mas também orientação para programas sociais, empregos e educação.
Numa tarde dezembro, Rodrigo levou Júlia, agora com se meses de gravidez e uma barriga pequena, mas visível, para conhecer o projeto pessoalmente. Dr. Rodrigo, uma mulher idosa, chamou correndo para abraçá-lo. O senhor não vai acreditar. Consegui manter minha casa. Aquele despejo que me ameaçavam, o advogado daqui resolveu. Rodrigo sorriu calorosamente. Que ótimo, dona Márcia.
A mulher então notou Júlia e seu rosto se iluminou. E essa deve ser a esposa, a responsável pelo milagre. Júlia ficou confusa. Milagre? Sim. Dona Márcia segurou as mãos dela. Todo mundo aqui sabe que o Dr. Rodrigo mudou por causa da senhora, que ele descobriu o coração por sua causa. Júlia olhou para Rodrigo, que estava corando. Algo raro de ver.
Eu Ele começou, mas dona Márcia o interrompeu. Não adianta negar, doutor. O senhor está diferente, melhor, mais humano. Depois que ela se foi, Júlia se virou para Rodrigo com um sorriso brincalhão. Então, eu sou responsável pelo milagre. Rodrigo a puxou para mais perto, a mão instintivamente pousando na barriga dela.
Você é e nunca vou negar isso. A medida que os meses avançavam, Júlia ia ficando cada vez mais ansiosa, não por medo do parto, mas por expectativa. Queria conhecer o bebê, segurá-lo, ver o rosto dele. “Como você acha que ele vai ser?”, ela perguntou uma noite, enquanto Rodrigo acariciava sua barriga. Perfeito, Rodrigo. Seja sério. Ele pensou por um momento. Espero que tenha seus olhos e seu coração.
E eu espero que tenha sua força e sua determinação. Pobre criança. Rodrigo Rio. Vai ser teimoso como você e explosivo como eu. Vai ser perfeito. Júlia corrigiu. Como você disse? Rodrigo a beijou profundamente. Você me fez acreditar em coisas que julguei impossíveis, Júlia. Como o quê? Família, lar, amor incondicional. Ele fez uma pausa. Perdão. Júlia franziu a testa.
Perdão. Perdão para comigo mesmo. Durante tanto tempo me culpei por ser frio, fechado, incapaz de amar. Mas você me mostrou que eu não era incapaz. Eu só estava assustado. Júlia segurou o rosto dele. E agora? Agora eu não tenho mais medo. Rodrigo completou a voz firme, mas terna.
Porque sei que não importa o que aconteça, eu tenho você e esse bebê, e isso é mais do que eu jamais mereci. Júlia sentiu as lágrimas arderem novamente, algo que acontecia com frequência ultimamente. Você merece tudo, Rodrigo. Tudo de bom que a vida pode oferecer. Ele beijou a barriga dela suavemente. Então esse bebê é meu tudo. A madrugada do dia 23 de março começou com chuva fina batendo nas janelas.
Júlia acordou às 3 da manhã com uma sensação estranha, uma pressão baixa no ventre, uma contração leve, mas persistente. Ficou quieta por alguns minutos, tentando entender o que estava acontecendo. Então, outra contração veio mais forte dessa vez. Rodrigo! Ela chamou suavemente, tocando o ombro dele. Ele acordou instantaneamente, os olhos já alertas.
O quê? O que foi? Está tudo bem? Acho, acho que é hora. Rodrigo sentou-se de um pulo, o rosto pálido. Hora. Hora de Ó meu Deus. Ó meu Deus, Júlia. Calma. Ela disse, rindo mesmo através da contração. Temos tempo. As contrações ainda estão espaçadas. Tempo? Tempo? Rodrigo já estava fora da cama, procurando freneticamente por roupas. Não temos tempo. Precisamos ir agora.
Rodrigo, respira. Eu não consigo respirar. Meu filho está chegando e eu não consigo respirar. Júlia começou a rir. Uma risada profunda e genuína que ecoou pelo quarto. A visão do juiz mais temido de Petrópolis, entrando em pânico por causa de um bebê, era ao mesmo tempo hilária e adorável.
Amor, você está colocando as calças do avesso. Rodrigo olhou para baixo e soltou um palavrão raro nele. Júlia riu ainda mais. “Vou tomar banho rápido”, ela disse, levantando-se devagar. Você liga para o Dr. Silva e arruma a mala do hospital. Consegue fazer isso? Sim. Não, talvez. Meu Deus, Júlia, estou apavorado.
Ela se aproximou e segurou o rosto dele entre as mãos. Eu também estou, mas vamos fazer isso juntos, certo? Rodrigo respirou fundo, assentindo. Juntos. O trajeto até o Hospital Santa Teresa foi tenso, mas rápido. Rodrigo dirigia com as mãos agarradas ao volante, verificando Júlia a cada 5 segundos. Está doendo muito? Estou bem. Quer que eu dirija mais devagar? Quero que você dirija normal.
Está respirando direito? Lembra dos exercícios, Rodrigo? Júlia disse entre risos e uma contração. Para de falar, está me deixando nervosa. Ele fechou a boca imediatamente, mas ela podia ver os dedos dele tamborilando ansiosamente no volante. Quando chegaram ao hospital, a equipe já os esperava. O Dr.
Silva recebeu-os pessoalmente, guiando Júlia para a sala de parto, enquanto Rodrigo a seguia como uma sombra protetora. “O senhor vai precisar trocar de roupa, doutor”, Almeida. Uma enfermeira disse, entregando-lhe um conjunto hospitalar. Sim, claro. Ele olhou para Júlia. “Eu já volto. Não faça nada sem mim.” Júlia revirou os olhos. “Vou tentar segurar o bebê até você voltar.
As horas seguintes foram as mais longas e intensas da vida de ambos.” Júlia lutava através de cada contração, apertando a mão de Rodrigo com força suficiente para deixar marcas. E ele permanecia ao lado dela, limpando o suor da testa dela, sussurrando palavras de encorajamento. Você consegue. Você é a mulher mais forte que conheço. Não estou me sentindo forte. Ela o fegou.
Mas você é sempre foi. E então, quando o sol da manhã começava a iluminar o quarto do hospital através das cortinas, um som novo preencheu o ar. O choro de um bebê. Rodrigo congelou. Júlia começou a chorar. E quando a enfermeira colocou aquele pequeno ser enrolado em cobertores nos braços dela, o mundo inteiro fez sentido. É um menino o Dr.
Silva anunciou sorrindo. Júlia olhou para o rosto minúsculo, vermelho e enrugado, e sentiu um amor tão avaçalador que doía fisicamente. “Oi, meu amor”, ela sussurrou. “Finalmente te conhecemos”. Rodrigo estava ao lado dela, as lágrimas escorrendo livremente pelo rosto. Ele tocou a mãozinha fechada do bebê com um dedo e imediatamente os dedinhos minúsculos se fecharam ao redor dele. Ele está me segurando. Rodrigo disse.
A voz quebrada. Já te reconhece. Júlia disse sorrindo através das lágrimas. Posso? Rodrigo estendeu os braços hesitantemente. Júlia passou o bebê para ele com cuidado e quando Rodrigo segurou o filho pela primeira vez, algo fundamental mudou em seus olhos. Era como assistir a última peça de um quebra-cabeça se encaixar. “Oi”, ele sussurrou para o bebê. “Oi, meu filho.
Eu sou seu pai e prometo prometo que vou fazer tudo certo. Vou te amar cada dia da sua vida. Vou te proteger, te ensinar, te apoiar e nunca, nunca vou deixar você se perguntar se é amado. Júlia soluçou, a emoção transbordando. Como vamos chamá-lo? Ela perguntou. Rodrigo olhou para ela, depois para o bebê.
Gabriel significa homem forte de Deus, mas para mim significa recomeço, uma nova chance de fazer tudo certo. Gabriel Almeida. Júlia testou o nome. É perfeito. Rodrigo se sentou na beira da cama. O bebê ainda nos braços e olhou para a esposa. Você me salvou, Júlia. Me deu uma família, me deu um futuro, me deu tudo. Nós nos salvamos.
Ela corrigiu um ao outro. E ali, naquele quarto de hospital, com o sol da manhã entrando pelas janelas, uma família improvável, mas perfeita, estava completa. Três meses depois do nascimento de Gabriel, a vida na mansão Almeida havia se transformado completamente. Os corredores, antes silenciosos agora ecoavam com choro de bebê e risadas.
As janelas permaneciam abertas, deixando entrar luz e som. A casa, antes um mausolu de frieza, havia se tornado um lar vibrante. Júlia florescia na maternidade. Rodrigo a observava alimentar Gabriel, cantar para ele, conversar com ele como se o bebê entendesse cada palavra e talvez entendesse, no jeito que olhava para a mãe com aqueles olhos escuros e atentos.
Mas foi numa manhã de junho, enquanto Rodrigo organizava papéis no escritório e Júlia amamentava Gabriel na poltrona perto da janela, que o passado finalmente bateu à porta. A campainha tocou. Rodrigo franziu a testa. Não esperava ninguém. Desceu as escadas e abriu a porta para encontrar um homem que ele não via há quase 5 anos. Marcelo. Marcelo Silva, seu melhor amigo dos tempos de faculdade, advogado brilhante, o padrinho que Rodrigo nunca tivera, estava na porta com expressão séria. Rodrigo, precisamos conversar. O tom era grave demais.
Rodrigo sentiu um arrepio percorrer a espinha. Entre eles foram para o escritório. Rodrigo fechou a porta e se virou para o amigo. O que aconteceu? Por que está aqui? Marcelo hesitou claramente desconfortável. Eu soube que você se casou e que tenho um filho agora. Tenho, Gabriel, tem três meses. Parabéns. Mas não havia alegria na voz dele.
Rodrigo, eu vim porque preciso te contar algo. Algo que eu deveria ter contado há muito tempo. Rodrigo sentiu o estômago apertar. O quê? Marcelo respirou fundo. Lembra do acordo que fiz para você? O casamento com Júlia Santos? Cada músculo do corpo de Rodrigo ficou tenso. Lembro. Você me pediu para encontrar alguém, qualquer pessoa disposta a aceitar o acordo.
Disse que precisava de uma esposa para manter as aparências, para satisfazer os requisitos da herança do seu avô. Eu sei o que pedi, Marcelo. Vá direto ao ponto. Marcelo o encarou. Júlia nunca precisou do dinheiro. O mundo parou. O quê? O pai dela não estava tão doente quanto ela acreditava. E as dívidas, elas não eram tão grandes. Eu eu exagerei a situação.
Fiz parecer pior do que era. Rodrigo sentiu o sangue gelar nas veias. Por quê? Porque você estava se destruindo. Marcelo explodiu. Rodrigo, você vivia como um fantasma, fechado nesta casa, evitando qualquer conexão humana, se afogando em trabalho e solidão. Eu vi meu melhor amigo desaparecer aos poucos e não sabia como te salvar. Então você mentiu? manipulou uma mulher inocente.
Eu dei a ela uma escolha e ela escolheu. Mas sim, eu eu ampliei os fatos porque sabia que se você tivesse alguém aqui, alguém de verdade, talvez pudesse se curar. Rodrigo estava tremendo de raiva. Você não tinha direito. Eu sei. E me arrependo da manipulação, mas não me arrependo do resultado. Marcelo deu um passo à frente. Olha para você, Rodrigo.
Você está vivo novamente, sorrindo, amando. Você tem uma família baseada numa mentira. Não. Marcelo protestou. O amor de vocês é real. A família é real. Júlia te escolheu todos os dias desde então. O começo pode ter sido errado, mas tudo que veio depois saia, Rodrigo. Saia. A voz dele ecoou pelo escritório.
Agora Marcelo saiu devagar, a cabeça baixa. E quando a porta se fechou, Rodrigo desabou na cadeira, a cabeça nas mãos. Tudo era mentira desde o início. Júlia desceu as escadas uma hora depois. Gabriel dormindo em seus braços, encontrou Rodrigo no escritório, sentado no escuro, uma garrafa de whisky pela metade na mesa.
Rodrigo, amor, o que aconteceu? Quem era aquele homem? Ele levantou os olhos. Estavam vermelhos, não apenas de álcool, mas de lágrimas. Júlia, seu pai, quanto ele precisava de dinheiro, realmente. Ela piscou confusa. O quê? Por que está perguntando isso agora? só responde. Algo no tom dele a assustou. Ela se sentou devagar.
Eu não sei ao certo. Silvia sempre cuidava das finanças. Ela me mostrou as contas do hospital, os remédios eram milhares de reais. Rodrigo, eu não tinha como pagar. E se eu te disser que talvez não fossem milhares, que talvez a situação não fosse tão grave quanto te fizeram acreditar? Júlia franziu a testa confusa e assustada.
Do que você está falando? Rodrigo se levantou, passou a mão pelos cabelos com frustração. Marcelo esteve aqui. Ele confessou que que exagerou a situação do seu pai, que manipulou os fatos para que você aceitasse o casamento. O silêncio que se seguiu foi ensurdecedor. Júlia ficou paralisada, os olhos arregalados, o bebê dormindo tranquilo em seus braços, alheio à tempestade que estava se formando.
O que O está dizendo? que nosso casamento foi baseado numa mentira maior do que eu pensava. A voz dele saiu mais alta do que pretendia. Gabriel se mexeu, mas não acordou. Rodrigo baixou o tom, mas a raiva ainda estava lá.
Que eu não fui o único manipulador nessa história, que ambos fomos peões num jogo que nem sabíamos que estávamos jogando. Lágrimas começaram a se formar nos olhos de Júlia. Mas, mas meu pai, ele estava doente. Eu vi. Ele estava na cama do hospital, fraco, precisando de tratamento. Estava, mas não tão grave quanto te fizeram crer. As dívidas existiam, mas eram manejáveis. Você poderia ter encontrado outras soluções.
Mas Marcelo, Rodrigo cuspiu o nome com amargura. Marcelo decidiu que eu precisava de salvação e te usou para isso. Júlia começou a tremer. Segurou Gabriel mais perto do peito, como se o bebê pudesse protegê-la da dor que estava sentindo. Então, então tudo isso foi uma farsa? Todo o sofrimento que passei nos primeiros meses, a humilhação, a solidão, tudo por causa de uma mentira? Júlia, não.
Ela se levantou bruscamente. Não tenta me consolar agora. Eu sacrifiquei minha liberdade, minha dignidade, meu direito de escolher minha própria vida por causa de uma mentira. As lágrimas agora caíam livremente. Gabriel começou a chorar, sentindo a tensão da mãe. “Eu preciso ir”, Júlia, disse à voz quebrada. “Preciso, preciso pensar.
Júlia, espera.” Mas ela já estava saindo do escritório, subindo as escadas com passos rápidos. Rodrigo ouviu a porta do quarto bater, seguida pelo choro abafado de ambos, mãe e filho, e ficou ali sozinho no escritório escuro, com a garrafa de whisky e o peso esmagador da culpa.
As horas seguintes foram agonia pura. Rodrigo caminhou pela mansão como um fantasma, subindo várias vezes até a porta do quarto, mas nunca tendo coragem de bater. Do outro lado, ouvia Júlia cantando baixinho para Gabriel a voz embargada de lágrimas. Quando a noite caiu completamente, ele não aguentou mais, bateu suavemente na porta. Júlia, por favor, precisamos conversar.
Silêncio. Eu sei que está furiosa, tem todo o direito, mas deixa eu entrar, por favor. A porta se abriu. Júlia estava pálida, os olhos vermelhos e inchados. Gabriel dormia no berço ao lado da cama. “Fala”. Ela disse a voz fria. Rodrigo entrou devagar, fechando a porta atrás de si. Eu não sabia.
Juro que não sabia que Marcelo tinha manipulado tanto a situação. Mas você sabia que estava usando uma pessoa vulnerável, que estava aproveitando do desespero de alguém. As palavras atingiram em cheio. Rodrigo desviou o olhar. Sabia e me odeio por isso todos os dias. Por que, Rodrigo? Júlia deixou escapar um soluço.
Por que você precisava de uma esposa forçada? Por que não simplesmente viveu sua vida? Rodrigo respirou fundo. Era a hora da verdade. Toda a verdade, porque eu estava morrendo por dentro. Júlia o olhou sem entender. Não literalmente. Ele continuou sentando-se pesadamente na beira da cama, mas emocionalmente, psicologicamente. Eu estava me destruindo aos poucos e nem percebia por quê.
Rodrigo fechou os olhos, as memórias voltando como uma avalanche. Há 6 anos eu era noivo. Ia me casar com uma mulher chamada Helena. Eu a amava ou achava que amava. Uma semana antes do casamento, descobri que ela estava tendo um caso com meu sócio, que os dois estavam apenas usando a aproximação comigo para ter acesso à herança que eu receberia do meu avô. Júlia levou a mão à boca.
Quando confrontei os dois, Helena riu na minha cara. disse que eu era frio demais, chato demais, previsível demais, que o único interesse que alguém poderia ter em mim era financeiro, Rodrigo. Depois disso, eu me fechei completamente, construí muros tão altos que ninguém conseguia me alcançar. Me joguei no trabalho, na carreira. Virei o juiz mais temido da região, porque se eu não sentia, não podia ser ferido de novo.
Ele levantou os olhos, encontrando-os dela, mas a solidão começou a me consumir. E quando meu avô faleceu, deixou um testamento com uma cláusula. Eu só receberia a herança total se estivesse casado. Era a última tentativa dele de me fazer viver novamente. Então você você criou o acordo. Criei. Pensei que seria fácil um casamento de papel, sem envolvimento emocional, apenas para cumprir a exigência. Eu não esperava.
Não esperava o quê? Os olhos de Rodrigo se encheram de lágrimas. Não esperava por você, por sua força, sua gentileza, sua capacidade de me ver mesmo quando eu tentava ser invisível. Eu não esperava me apaixonar de verdade e definitivamente não esperava que você pudesse me amar de volta. O silêncio voltou a preencher o quarto. Júlia limpou as lágrimas com as costas da mão, tentando processar tudo. Então, ambos fomos manipulados.
Ela disse finalmente, eu pelo seu amigo, você pela sua própria dor. Foce sim. Rodrigo se levantou, dando um passo em direção a ela. Mas Júlia, escuta. O que começou como mentira se tornou a coisa mais real da minha vida. Você e Gabriel são meu tudo, minha razão de acordar, de tentar ser melhor, de acreditar que eu mereço ser feliz.
Como eu posso ter certeza? A voz dela saiu num sussurro quebrado. Como posso saber que isso não é só gratidão ou conveniência? Rodrigo pegou as mãos dela, segurando-as contra o próprio peito. Porque eu escolho você todos os dias eu escolho você.
Não por obrigação, não por necessidade, mas porque viver sem você seria voltar à aquela escuridão e eu nunca quero voltar para lá. Júlia fechou os olhos, novas lágrimas escorrendo. Eu preciso de tempo. Preciso processar tudo isso. Quanto tempo você precisar. Rodrigo beijou as mãos dela. Eu vou estar aqui esperando, provando pelo tempo que for necessário. Os dias seguintes foram os mais difíceis que enfrentaram. Júlia se mudou para o quarto de hóspedes com Gabriel.
mal falava com Rodrigo, além do estritamente necessário, e ele respeitava o espaço dela, mesmo que isso o matasse por dentro, mas continuava mostrando. Deixava flores na porta do quarto dela todas as manhãs, preparava o chá preferido dela, cuidava de Gabriel sempre que ela precisava descansar e esperava.
Foi numa tarde chuvosa, uma semana depois da revelação, que o ponto de virada aconteceu. Júlia estava na biblioteca, Gabriel no colo quando encontrou algo caído atrás de uma pilha de livros. Era um caderno velho de capa de couro gasta. Curiosa, abriu e congelou. Era um diário de Rodrigo. As entradas começavam há 3 anos e cada página era uma janela para a alma do homem que ela pensava conhecer. Hoje completam dois anos desde que Helena me traiu.
Deveria estar melhor, mas não estou. A solidão pesa mais a cada dia. Marcelo me visitou. Disse que estou me destruindo. Talvez ele tenha razão, mas não sei como parar. Assinei os papéis do casamento hoje. Sinto-me sujo, mas não vejo outra saída. E então as entradas depois que ela chegou. Ela chegou hoje, Júlia, pequena, assustada, mas com uma força nos olhos que me surpreendeu.
Não sei porque isso me afeta tanto. Ela cuida das flores, conversa com elas como se fossem amigas. Quando foi a última vez que vi tanta ternura? A fiz chorar hoje. O som daqueles soluços me persegue. Sou um monstro. Ela me chamou pelo nome, Rodrigo. A forma como saiu dos lábios dela. Deus, o que está acontecendo comigo? Não consigo mais fingir.
Estou apaixonado por ela, completamente, irrevogavelmente apaixonado. As lágrimas escorriam pelo rosto de Júlia enquanto lia página após página. O diário documentava cada momento, cada pequena transformação, cada vez que Rodrigo lutava contra os próprios sentimentos e perdia. A última entrada era de dois dias atrás. Ela não me olha mais. Gabriel chora e eu não posso consolá-lo porque ela não me deixa perto. Talvez eu mereça isso.
Talvez seja minha punição por ter começado tudo de forma tão errada. Mas se eu pudesse voltar, faria diferente. Não pelo dinheiro, não pela herança, mas porque talvez de alguma forma nossos caminhos se cruzariam de qualquer jeito. Porque almas gêmeas sempre se encontram e ela é a minha.
Eu sei disso agora com cada fibra do meu ser. Júlia fechou o caderno com mãos trêmulas, olhou para Gabriel, que brincava com os próprios dedinhos, inocente e perfeito, e entendeu algo fundamental. Todo mundo carrega feridas, todo mundo comete erros tentando sobreviver à própria dor.
A questão não era como tudo começou, mas o que eles escolhiam fazer com isso agora. Naquela noite, quando Rodrigo estava no escritório trabalhando até tarde, outra forma de fugir da dor, a porta se abriu. Júlia entrou. o diário nas mãos. Ele levantou os olhos surpreso, então viu o que ela segurava e empalideceu. Júlia, eu posso explicar? Você me ama? A pergunta direta o pegou desprevenido.
O quê? É uma pergunta simples, Rodrigo. Você me ama. Ele se levantou, os olhos fixos nela. Mais do que a vida. Mesmo sabendo como tudo começou, mesmo com toda a manipulação, toda a dor, por causa disso tudo, ele respondeu: “Porque provamos que o amor pode crescer até no solo mais árido, que duas pessoas quebradas podem se consertar uma à outra.
” Júlia deu um passo à frente, depois outro. Eu li seu diário. Eu sei. Você documentou tudo, cada momento, cada sentimento, porque eram reais demais para ficarem apenas na minha cabeça. Ela parou bem na frente dele, os olhos buscando os dele. O começo foi errado. Foi. Feias. Fomos manipulados. Fomos. Mas o que sentimos agora é a coisa mais real que já existiu.
Júlia deixou o diário cair no chão e se jogou nos braços dele. Rodrigo a segurou apertado, o rosto enterrado nos cabelos dela, o corpo sacudindo com soluços silenciosos. “Me desculpa”, ele sussurrou repetidamente. “Me desculpa por tudo.” “Não.” Júlia afastou-se apenas o suficiente para segurar o rosto dele. Chega de pedidos de desculpa.
Chega de culpa. O que importa é que estamos aqui agora. Juntos e escolhemos ficar. Você escolhe ficar? Escolho. Ela sorriu através das lágrimas. Todos os dias eu escolho você. Nosso amor talvez tenha começado nas sombras, mas floresce na luz. E isso é tudo que importa. Rodrigo a beijou.
Então, um beijo carregado de todo o desespero, todo o amor, toda a gratidão que ele sentia. E quando se separaram, apoiaram as testas um no outro. Nós vamos superar isso, Júlia disse. Juntos, juntos. Ele repetiu. E ali, no escritório onde tudo havia desmoronado, eles começaram a reconstruir, não sobre mentiras dessa vez, mas sobre verdade, sobre escolha, sobre amor real e inabalável.
Seis meses depois, a mansão Almeida resplandecia sob o sol de uma tarde de primavera. O jardim, agora cuidado não apenas por Júlia, mas também por Rodrigo nos fins de semana, estava mais exuberante do que nunca. Hortênsias azuis e roxas, rosas de todas as cores, jasmins perfumando o ar. Gabriel, agora com 9 meses, engatinhava pelo gramado sob o olhar atento dos pais.
Seus risos cristalinos preenchiam o espaço, transformando a antiga mansão fria num verdadeiro lar. Júlia estava sentada no gazebo, o mesmo onde Rodrigo havia pedido sua mão pela segunda vez, observando o marido brincar com o filho. Rodrigo segurava um ursinho de pelúcia, fazendo vozes engraçadas que arrancavam gargalhadas do bebê.
“Quem diria?”, Ela pensou, sorrindo. O juiz mais temido de Petrópolis, de quatro no chão, fazendo vozes de ursinho, como se sentisse o olhar dela. Rodrigo levantou os olhos e sorriu. Aquele sorriso que ela aprendera a amar, genuíno, quente, livre. Ele pegou Gabriel no colo e caminhou até ela.
No que está pensando? Júlia segurou a mãozinha gordinha do filho, que imediatamente tentou pegar seu cabelo. Em como a vida é estranha, como os piores momentos podem levar aos melhores finais. Rodrigo se sentou ao lado dela, equilibrando o Gabriel no colo. Você se arrepende de quê? De ter ficado depois de descobrir a verdade. Você poderia ter ido embora. Júlia virou-se para olhá-lo completamente. Não, nem por um segundo.
Sabe por quê? Por quê? Porque aprendi que o amor não é sobre como a história começa, é sobre como escolhemos escrevê-la todos os dias. E todos os dias eu escolho essa história. Eu escolho você. Eu escolho nós. Os olhos de Rodrigo se encheram daquela emoção que ele não escondia mais. Eu também. Cada dia, cada momento.
Gabriel escolheu esse momento para dar um grito agudo de alegria, quebrando a seriedade e fazendo ambos rirem. Ele concorda! Júlia disse, beijando a bochecha. gordinha do bebê. Naquela tarde receberam visitas inesperadas. Seu José, o pai de Júlia, agora recuperado e saudável, graças ao tratamento contínuo, chegou acompanhado de Marcelo.
Júlia tensionou-se ao ver o advogado, Rodrigo também, mas haviam concordado que precisavam enfrentar o passado de frente. Júlia, minha filha. Seu José abraçou-a apertado. Como está meu neto? Enorme, Júlia riu. Está pesando quase 10 kg. Posso segurar? Júlia passou Gabriel para o avô, observando o rosto do pai se iluminar com puro amor. Marcelo permaneceu afastado, claramente desconfortável.
Rodrigo caminhou até ele por um longo momento, apenas se olharam. Então Rodrigo estendeu a mão. Obrigado. Marcelo piscou surpreso. O quê? Por ter me salvado do jeito errado. É verdade, mas por ter se importado o suficiente para tentar. Marcelo apertou a mão dele, os olhos brilhando. Você está feliz? Mais do que imaginei ser possível. Então, valeu a pena. Júlia se aproximou, segurando a mão de Rodrigo.
Nós perdoamos você, Marcelo. O que você fez foi errado, mas trouxe consequências certas. Marcelo limpou discretamente uma lágrima. Obrigado. Vocês não fazem ideia do quanto isso significa. A noite, depois que todos foram embora, Júlia e Rodrigo colocaram Gabriel para dormir juntos.
Cantaram a canção de Ninar, que se tornara ritual, uma mistura de melodias que Júlia inventara e Rodrigo harmonizava desafinadamente. Quando o bebê finalmente adormeceu, ficaram ali por mais alguns minutos, apenas observando. Ele tem seu nariz. Rodrigo sussurrou. E seus olhos? Meus olhos são cinzas. Os seus quando olham para mim são da cor do céu depois da tempestade. E é isso que ele tem.
Rodrigo a puxou para um abraço. Você tem um jeito de transformar tudo em poesia. Aprendi com você. Eu não sei nada de poesia. Sabe sim. Júlia beijou o maxilar dele levemente. Cada gesto seu é um verso. Cada olhar uma estrofe. Nossa vida juntos é o poema mais bonito já escrito. Na varanda, sob o céu estrelado de Petrópolis, eles se sentaram juntos, embrulhados num cobertor, observando as montanhas escuras contra o céu. Júlia. Hum.
Você acha destino? Ela pensou por um momento. Acho, mas não no destino que tira nossas escolhas. Acredito que existem encontros marcados pela vida. E o que fazemos com esses encontros é nossa escolha. Nosso encontro foi marcado? Acho que sim. Talvez não da forma que aconteceu. Talvez em outra vida teríamos nos cruzado diferente, mas nos encontraríamos de qualquer jeito.
Rodrigo beijou o topo da cabeça dela. Sabe o que aprendi com você? O quê? Que justiça não é apenas o que está escrito nos códigos. Justiça verdadeira é dar as pessoas segundas chances. É reconhecer que todos erramos, todos caímos, todos precisamos de misericórdia. Júlia virou-se para olhá-lo.
E você aplica isso agora no tribunal? Todos os dias? Ele sorriu. Os advogados andam reclamando que estou ficando mole, mas não me importo porque aprendi que ser juiz não é apenas sobre punir, é sobre entender, sobre ouvir, sobre dar a chance de recomeço. Você mudou o sistema jurídico de Petrópolis? Não, você mudou. Eu apenas deixei que essa mudança transbordasse para meu trabalho.
Uma semana depois, Rodrigo tinha um caso particularmente difícil. Um pai que roubara remédios de uma farmácia porque não conseguia pagar o tratamento do filho doente. O promotor pedia cadeia. A defesa pública argumentava estado de necessidade. E Rodrigo, sentado na cadeira do juiz, com o martelo na mão, olhou para o réu, um homem de 40 anos, cabes baixo, destruído, e viu a si mesmo, ou melhor, viu o que poderia ter sido se Júlia não tivesse entrado em sua vida. Deu seu veredito, serviços comunitários. não prisão e determinou
que a prefeitura fornecesse os remédios necessários para a criança. O pai chorou, a promotoria protestou, mas Rodrigo manteve a sentença porque justiça ele aprendera, era sobre humanidade. Naquela noite, ao chegar em casa, Júlia o esperava na porta com Gabriel no colo. Ouvi sobre o caso de hoje.
E o que achou? Ela sorriu orgulhosa que o homem que conhecia há um ano jamais teria dado essa sentença. Mas o homem que você se tornou, se é esse, não poderia ter dado outra. Rodrigo pegou o filho no colo, beijando a testinha dele. Sabe, Gabriel, sua mãe me salvou. E um dia, quando você crescer, vou te contar toda a história. Vou te dizer que o amor verdadeiro não é perfeito.
Ele é real, cheio de erros, de tropeços, de momentos difíceis. Mas quando duas pessoas escolhem ficar, escolhem lutar, escolhem perdoar, aí surge a magia. Gabriel olhou para o pai com aqueles olhos grandes e escuros, como se entendesse cada palavra. Júlia abraçou os dois, sua família improvável, mas perfeita. E vamos te ensinar.
Ela acrescentou, que não importa onde você começa, importa quem você escolhe ser. Seu pai escolheu ser amor, escolheu ser luz, escolheu ser melhor e é o homem mais extraordinário que conheço. Meses se transformaram em anos. Gabriel cresceu, começou a andar, a falar, a correr pelo jardim atrás de borboletas.
A mansão Almeida, que já foi símbolo de solidão, tornou-se referência de amor em Petrópolis. O projeto social de Rodrigo cresceu, atendendo agora centenas de famílias. Júlia começou a trabalhar voluntariamente, ajudando pessoas a encontrar emprego e recomeçar. Juntos transformaram não apenas suas próprias vidas, mas a de todos ao redor. 5 anos depois do casamento, numa tarde de outono, Rodrigo e Júlia voltaram à igreja de São Pedro, a mesma onde tudo começara. Mas dessa vez não havia tensão, nem medo, nem lágrimas de dor.
Dessa vez renovaram os votos na frente de amigos e família com Gabriel. agora com 4 anos, carregando as alianças numa almofadinha azul. E quando Rodrigo disse aceito não soou como veredito, soou como promessa. Quando Júlia disse aceito não soou como resignação, soou como vitória. E quando se beijaram sob os sinos que tocavam alegres, provaram que o amor pode nascer até das circunstâncias mais improváveis. Abu epílogo. 10 anos depois.
Rodrigo, agora com 48 anos e alguns fios brancos extras, estava no jardim ensinando Gabriel, um menino esperto de 9 anos, a cuidar das rosas. Viu, filho? Tem que cortar aqui no ângulo certo. Assim a planta fica mais forte, como a mamãe ensinou você. Rodrigo sorriu. Exatamente, papai. Sim, vocês se amam muito, né? Rodrigo parou o que estava fazendo e olhou para o filho. Mais do que as palavras conseguem expressar. Por que? Pergunta.
Gabriel deu de ombros. Na escola, vários amigos meus têm pais divorciados. Mas vocês, vocês sempre estão juntos, sempre felizes. Rodrigo se ajoelhou para ficar na altura do filho. Sabe, Gabriel, amor verdadeiro não é sobre nunca brigar ou nunca discordar. É sobre escolher ficar mesmo quando é difícil.
É sobre perdoar, sobre crescer juntos, sobre construir algo maior que vocês mesmos. E vocês construíram. Construímos uma família, construímos um lar, construímos uma vida que vale a pena viver. Gabriel abraçou o pai com força. Quando eu crescer, quero amar alguém, assim como você ama a mamãe. Rodrigo sentiu os olhos arderem.
E vai, porque vai ter aprendido com os melhores exemplos possíveis. Júlia os observava da varanda, o coração transbordando. Aos 35 anos, tinha algumas linhas de expressão ao redor dos olhos, linhas de tanto sorrir. O cabelo, um pouco mais longo agora, dançava com o vento. Rodrigo olhou para ela e piscou. Ela piscou de volta, uma linguagem silenciosa que apenas eles entendiam. Eu te amo. Eu te amo mais. Impossível.
Sempre possível. Naquela noite, depois de colocar Gabriel para dormir, Júlia e Rodrigo ficaram na varanda como faziam sempre que podiam. “Lembra do primeiro dia que cheguei aqui?”, Júlia perguntou. “Como poderia esquecer? Você estava aterrorizada e você estava fechado. Dois desastres esperando para acontecer.
” Júlia riu. “Mas acontecemos do jeito certo.” Rodrigo a puxou para mais perto. “Você salvou minha vida, Júlia?” “Não, nós salvamos um ao outro. Ele beijou a tpora dela suavemente. Sabe o que o juiz mais temido de Petrópolis aprendeu? O que que a sentença mais justa que já dei não foi num tribunal, foi quando me permiti amar você, quando escolhi abrir mão do controle e me render ao sentimento. Júlia virou-se para beijá-lo.
E sabe o que a garota simples do interior aprendeu? O quê? Que às vezes o maior sacrifício leva a maior recompensa? que o amor pode florescer até no solo mais árido e que não importa como a história começa, importa como você escolhe continuar escrevendo. Ficaram ali abraçados sob as estrelas enquanto Petrópolis dormia lá embaixo.
Dois corações que começaram distantes, dois mundos que não deveriam se encontrar, duas pessoas quebradas que se consertaram mutuamente e uma história que provou que o amor quando verdadeiro pode transformar até a sentença mais dura em absolvição. Kom.