O sol já se escondia atrás das colinas quando o carro preto cortou a estrada de terra, levantando uma nuvem fina de poeira que parecia dançar no ar pesado do fim da tarde. Eduardo apertava o volante com força, os dedos rígidos, como se aquele simples gesto pudesse impedir o peito de apertar de novo. O eco do monitor cardíaco ainda vibrava em sua memória. Bip, bip, bip.
Lembrança insistente da noite em que quase não voltou. O médico tinha dito para ele descansar, para voltar às raízes, para se afastar da cidade, do barulho, dos contratos, dos prazos. Mas à medida que a velha chácara da família surgia no horizonte, ele sentia tudo, menos paz. Ele respirou fundo, como o Dr.
Henrique ensinara. Inspira, segura. 3 2 1 solta! Mas nem a respiração conseguia organizar o que estava mexendo dentro dele. Quando passou pelo último trecho de estrada, Eduardo viu o portão e congelou. O portão de madeira, que durante anos carregou a tinta gasta pelo sol e pelas chuvas do interior, agora estava pintado de azul vivo.
Um azul que não pertencia àquela casa, um azul que ele nunca escolheu. estacionou devagar, os pneus rangendo na terra seca e saiu do carro com um cuidado automático, uma mão sempre pousando sobre o peito, como se pudesse prever qualquer sinal de perigo vindo de dentro do próprio corpo.
O ar tinha cheiro de grama molhada, como se alguém tivesse regado o jardim minutos antes. Mas não existia jardim ali, pelo menos não no último ano em que ele esteve. Eduardo deu alguns passos, o som das folhas secas sob os sapatos, o vento mexendo leve na camisa social que ele teimosamente insistia em usar mesmo fora da cidade. E então o impacto.
A chácara inteira estava diferente. Onde antes havia mato alto, havia agora canteiros de flores, margaridas, hortênsias, giraçóis baixos, tudo misturado como quem planta com pressa, mas com esperança. As janelas estavam limpas, brilhando no fim do dia, refletindo o laranja do céu até a varanda.
A varanda tinha um pano colorido pendurado no corrimão. Parecia um lar, não o lar dele, mas um lar de alguém. O coração de Eduardo deu um salto desconfortável, não de romantismo, de alerta. Ele empurrou o portão. Nada, nenhum rangido, nenhum protesto metálico familiar. Alguém tinha lubrificado as dobradiças, alguém que definitivamente não era ele. Enquanto caminhava até a porta, um som cortou o silêncio do campo.
Risos de criança, primeiro leves, depois mais fortes. Pequenos pés correndo sobre madeira, um brinquedo batendo no chão. Eduardo fincou os pés nos degraus da varanda, sentiu o ar entrar e sair com dificuldade. Fechou os olhos e tentou contar. Um, dois, trs. Mas a ansiedade subiu como um estouro quente, pressionando o peito. A porta da sala estava aberta.
Com um nó na garganta, ele a empurrou. A sala estava cheia de vida, cheia demais. Uma menina de uns 5 anos atravessou o cômodo correndo com uma boneca sem braço, o cabelo preso num rabo torto, rindo com uma liberdade que soava quase ofensiva dentro da casa dele. No chão, um bebê engatinhava sobre um tapete colorido, um tapete que ele não reconhecia porque nunca existiu ali.
E no sofá, o sofá do pai dele, uma mulher jovem dobrava roupas cuidadosamente. o rosto iluminado pela luz morna que entrava pela janela limpa. No instante em que ela levantou os olhos, tudo congelou. As roupas caíram do colo dela, espalhando camisas pequenas pelo chão. A menina parou no meio da corrida. O bebê começou a chorar.
Eduardo não conseguiu segurar. Quem é você? A mulher engoliu seco, as mãos trêmulas, tentando recolher as roupas. Eu Eu posso explicar. Explicar o quê? O tom dele saiu mais alto do que pretendia. O que vocês estão fazendo na minha casa? A menina correu para trás das pernas da mãe. O bebê chorou mais forte. A mulher apertou o filho no colo. Por favor, senhor. Eu eu não tinha para onde ir.
O ar pareceu ficar denso. Eduardo sentiu aquela pressão na cabeça, aquela sensação que o médico disse para ele evitar a qualquer custo. Isso é invasão. Ele disparou. Invasão de propriedade. Eu vou chamar a polícia. Ela deu um passo à frente, os olhos arregalados, a voz quebrando. Não, por favor.
Meu marido morreu. Perdi o emprego. O aluguel atrasou. Fomos despejados. Eu eu vi a casa vazia. Achei que só por alguns dias. A menina com voz fina puxou a saia da mãe. Mamãe, a gente vai morar na rua de novo? De novo? A palavra entrou nele como uma agulha fria.
Eduardo olhou ao redor, irritado, confuso, perdido, e reparou em coisas que antes não tinha notado. Cozinha organizada, panelas brilhando como se tivessem sido esfregadas com cuidado. O cheiro suave de arroz e cheiro verde vindo da janela. Um vaso simples com flores do quintal no centro da mesa, lençóis limpos dobrados sobre uma cadeira, tudo vivo, tudo cuidado, tudo que ele não fazia há anos.
Ana, ele ainda não sabia o nome dela, mas o nome parecia combinar. Respirava rápido, como se estivesse pronta para ser expulsa a qualquer segundo. Eduardo passou a mão no rosto, exausto. O médico tinha avisado: “Nada estresse, Eduardo, nada de tensão.” E ali estava ele, no meio de uma sala desconhecida dentro da própria casa, com duas crianças chorando, uma mulher desesperada e o coração falhando no ritmo.
Ele tentou falar, não conseguiu. Respirou. Mais uma vez, depois outra. 10 dias. Ele disse enfim, sem entender direito o porquê. Vocês têm 10 dias para sair. 10? Ela sussurrou, como se fosse muito mais do que esperava. E eu fico também, completou antes que o cérebro reavaliasse. É a minha casa. A mulher fechou os olhos, agradecendo como quem recebe um perdão que não esperava. Obrigada, senhor. Obrigada, de verdade.
Eu sou Ana. Esses são Luna e Davi. A gente fica no quartinho dos fundos. Não vamos incomodar. Ele não respondeu. Não confiava na própria voz. Foi quando o celular tocou. O som agudo cortou o silêncio desconfortável da sala. Era o Dr. Henrique. Já chegou? Perguntou o médico animado.
Lembra das regras? Nada de confusão, nada de susto, só paz. Eduardo olhou para a menina, ainda abraçada à boneca quebrada, para o bebê soluçando no colo da mãe, para o sofá cheio de roupas infantis, ocupando o espaço que antes era dele, a sala, que antes era só silêncio e poeira. Tá tranquilo. Ele mentiu. Quando desligou, percebeu Ana observando-o com uma culpa silenciosa no olhar.
Culpa que ele nem tinha certeza se deveria sentir. Do lado de fora, o vento balançou uma toalha no varal, uma toalha azul da mesma cor do portão. E por um instante breve, Eduardo teve uma sensação estranha, como se toda aquela mudança tivesse começado muito antes de ele chegar.
E como se nada ali fosse voltar a ser como antes, Eduardo acordou antes do despertador. Na verdade, ele nem lembrava quando tinha dormido direito pela última vez. A luz da manhã entrava pela fresta da cortina, suave, dourada, batendo no teto de madeira antiga do quarto e criando um desenho que parecia respirar com o vento.
Por um momento, ele achou que estava na infância quando acordava com cheiro de café e bolo de milho da mãe. Mas então ouviu um barulho de panela batendo, o chiado de pão na frigideira e uma música baixinha, um pagodinho antigo tocando no radinho da cozinha. Não era a memória, era agora. Eduardo desceu as escadas devagar, não por cautela, mas porque o corpo parecia querer entender o que estava prestes a encontrar. E encontrou.
Ana estava na cozinha de avental florido, cabelo preso num coque que tinha claramente sido feito às pressas. Ela mexia uma frigideira com a mão esquerda, enquanto com a direita abanava o café no coador de pano. O cheiro tomou a cozinha inteira, quente, forte, de casa viva. Brilhou por um segundo, depois voltou a ser sério. Eduardo não sabia lidar com aquele tipo de intimidade que não era dele.
“Bom dia”, Ana disse sem olhar para ele, como se tivesse ensaiado para não parecer nervosa. Bom dia, Eduardo respondeu quase sussurrando. Silêncio curto, mas tão denso quanto vapor de café. Até que Luna surgiu descalça, rabo de cavalo torto, segurando uma folha de papel com uma mancha de guache no canto. Ela segurou o desenho na altura do peito. Eduardo demorou para entender. Era um desenho dele.
Um homem enorme, com braços compridos demais, sobrancelhas grossas e uma boca caída num bravo permanente. Ao lado dele, a casinha desenhada com telhado vermelho e no canto da folha, minúsculos, três pontinhos, Ana, Luna e Davi. “Esse?”, Ele perguntou, tentando não rir, tentando doer. Luna assentiu séria. O moço bravo.
As palavras bateram mais forte do que qualquer contrato recusado, qualquer ligação tensa da empresa. O moço bravo. A menina tinha desenhado a versão dele que ele nunca tinha coragem de admitir que era. Ana corou e puxou Luna de leve. Luna, deixa o seu Eduardo tomar café em paz. Tá tudo bem. Ele murmurou, encarando o desenho como se fosse um espelho.
Um espelho feito por uma criança que sempre vê o que os adultos tentam esconder. Depois do café, Eduardo decidiu sair. Não sabia se buscava ar, silêncio ou só distância de si mesmo. O quintal estava diferente de como lembrava e, ao mesmo tempo, parecia como deveria ser. A horta brilhava de verde.
Pés de alface gordinhos, tomates quase vermelhos, cebolinha brotando firme na terra. Mais ao fundo, galinhas ciscavam perto de um cercado improvisado. Flores amarelas ocupavam a beira da cerca, balançando no vento leve da manhã. Ele se abaixou, tocou a terra para sentir se era real, era úmida, fresca, cheirava a vida.
Bonito, né? Uma voz atrás dele disse: “Eduardo virou e encontrou seu Zé, chapéu de palha, sorriso fácil, carregando uma sacola de compras, como quem carrega uma conversa pronta.” “Ela fez tudo isso.” Seu Zé continuou com a ajuda da Luna. “Claro, a menina adora arrancar mato, mesmo quando não é mato.” Ele riu sozinho. Eduardo tentou sorrir.
Ela não sabia que eu ia voltar. Ninguém sabia o é. Seu Zé deu de ombros. O povo da vila até achou que o senhor tinha esquecido da casa. Já faz tempo que não aparece. Eduardo desviou o olhar para o chão. Eu tava ocupado. Ocupado fazendo dinheiro. Seu Zé completou sem maldade nenhuma. Mas dinheiro não planta tomate sozinho, né? A frase ficou ecoando na mente dele quando o velho seguiu seu caminho, assobiando. À tarde, o gipe velho do Dr.
Henrique levantou uma nuvem de poeira na estrada antes de estacionar. Henrique entrou na casa com aquele jeito invasivo, de quem conhece cada defeito seu e mesmo assim se sente à vontade para brincar com todos eles. Então é aqui que você vai se esconder por dois meses? Não tô me escondendo, Eduardo retrucou. Tá sim. Henrique olhou ao redor impressionado.
Quem limpou tudo isso? A Ana. Eduardo respondeu baixo. A invasora. Invasora com talento, hein? Eduardo fingiu que não ouviu. Durante o exame, Henrique ficou sério, medindo pressão, ouvindo batimentos, fazendo perguntas. Tudo estava estável. até o silêncio entre as frases. No fim, o médico fechou a maleta e disse: “Você precisa de gente, Eduardo, de conversa, de barulho, de vida. Eu estou vivendo.
Não, você estava sobrevivendo. É diferente.” Eduardo virou o rosto para a janela. Lá fora, Ana pendurava roupa no varal enquanto Luna corria atrás de um gato cinza. Algo dentro dele mexeu, lento, silencioso, perigoso. Na noite seguinte, Eduardo ouviu um barulho seco, um grito abafado vindo do corredor.
Ele correu, encontrou Ana caída no chão do banheiro, apoiada no azulejo frio, tornozelo inchando rápido. O que aconteceu? Eu escorreguei. O Davi derrubou água ontem e esqueci de limpar. Ela tentou levantar, mas o corpo não obedeceu. Eduardo agiu sem pensar, colocou um braço nas costas dela e outro embaixo dos joelhos, levantando com cuidado. Não precisa, ela protestou.
Eu sei ele respondeu mesmo assim. Deitou Ana no sofá e foi buscar gelo na cozinha. Quando voltou, Luna já estava ao lado da mãe, olhos marejados. A mamãe vai ficar bem? Vai, sim. Eduardo disse, colocando a compressa com delicadeza. Naquela manhã, Eduardo enfrentou algo que jamais tinha enfrentado.
Um bebê chorando sem parar, uma menina derrubando suco, arroz queimado, fralda rebelde e um gato que gritava como se estivesse liderando uma revolução. Quando finalmente se jogou no sofá ao meio-dia, exausto, suado, vencido, olhou para Ana e confessou: “Isso aqui é mais difícil do que fechar negócio de milhões.” Ana riu.
Riu com o rosto inteiro, riu como quem precisava daquele alívio. E Eduardo sentiu algo quente no peito. Não dor, não alerta, só vida. No dia seguinte, seu Zé apareceu com três sacolas: legumes, frango, arroz, temperos. Invadiu a cozinha como se fosse dele. A Ana não pode ficar de pé hoje, então eu cuido do almoço.
Tem problema? Eu não sei. Eduardo balbuciou. Ótimo. Não saber já é o primeiro passo para aprender. Duas horas depois, a mesa estava posta. Frango dourado, arroz soltinho, cheiro de alho e coentro pela sala. Os quatro e o velho sentaram juntos. Luna ria de uma história sem sentido de seu Zé. Davi batia na mesa com a colher.
Ana observa tudo com gratidão silenciosa e Eduardo, pela primeira vez não pensou em trabalho. Casa vazia não serve para nada, seu Zé comentou cortando o frango. Casa foi feita para isso, gente. Barulho, comida quente. Mas a casa é minha. Eduardo rebateu quase automático. E daí? O velho retrucou. Casa é de quem vive nela. O resto é escritura. Eduardo engoliu seco. As palavras bater onde não devia.
Naquela madrugada ele desceu para beber água. A luz da cozinha estava acesa. Ana estava sentada à mesa, rodeada de papéis, calculadora velha, anúncios de aluguel marcados com caneta. Ela apoiava a testa na mão. Parecia ter envelhecido três anos em uma noite.
Eduardo ficou parado no corredor, metade do rosto iluminado, metade na sombra. Viu a dificuldade, viu o medo, viu a luta silenciosa de alguém que tenta sobreviver quando o mundo parece grande demais. E pela primeira vez desde que chegou, sentiu que estava olhando não para uma invasora, mas para alguém que salvou a casa dele.
E sem querer estava começando a salvar uma parte dele também. A toalha azul que secava na janela balançou no vento quando ele apagou a luz do corredor e voltou para o quarto, carregando no peito um peso que já não era dor, era outra coisa, algo novo, algo que ele não sabia nomear. O sol do fim de tarde batia torto no quintal quando o grito cortou o silêncio.
Tio Edu, o mingal subiu na árvore. A voz de Luna veio aflita, quase chorando. Eduardo saiu na varanda com a mão ainda úmida de café e viu a cena. O gato cinza da casa, agarrado num galho alto da mangueira, miando como se o mundo estivesse acabando. Luna, embaixo da árvore, braços estendidos. como se pudesse alcançar com vontade.
“Calma, Luna”, ele tentou. “Gato sempre desce sozinho. Ele não tá descendo”, ela insistiu. “Ele tá com medo. Olha o olho dele. O gato, de fato, parecia tão apavorado quanto a menina. Ana apareceu mancando na porta da cozinha, pano de prato na mão. O que aconteceu? O mingal resolveu ser passarinho. Eduardo resmungou, só que esqueceu que é gato.
Luna olhou ora para um, ora para outro, o queixo tremendo. Alguém sobe para buscar ele. Ana se apoiou no batente, olhou pra perna, olhou para a árvore. Eu subo. Você não vai subir em nada. Eduardo cortou. Com esse tornozelo, nem pensar. E você com esse coração? Ela retrucou. Nem sonha. Os dois se encararam por um segundo. Luna apertou a boneca contra o peito. Enquanto vocês brigam, ele tá sofrendo.
A menina sussurrou. O miado de Mingau aumentou como se tivesse entendido o drama. Eduardo respirou fundo, sentiu o peito reclamar, mas ignorou. Tá bom, eu vou devagar. Ele puxou uma cadeira, apoiou o pé, agarrou o tronco. Você fica aqui segurando, Ana. Se eu escorregar, a culpa é sua. Ótimo. Ela respondeu irônica. Se você cair, eu te empurro pro hospital.
Ele subiu devagar, sentindo os braços queimarem, o coração acelerar num ritmo que o médico com certeza reprovaria. As mãos arranhadas pela casca da árvore, o cheiro de folha verde, o som da respiração dele misturado com o miado aflito. Quando alcançou o galho, Mingau arranhou sua mão numa tentativa de defesa. Ai, bicho ingrato.
Eduardo resmungou, pegando o gato pelo cangote. Vem cá, que você não paga IPTU, mas dá trabalho como se pagasse. Lá embaixo, Luna o observava com olhos gigantes. “Cuidado”, Ana! Gritou sem perceber que apertava tanto a cadeira que os dedos ficaram brancos. Eduardo desceu mais devagar ainda, gato esperneando, suores correndo pelas costas. Quando finalmente tocou o chão, os joelhos fraquejaram.
Ele precisou de um segundo para recuperar o fôlego. Ana se aproximou num impulso. Você tá bem? Seu rosto tá vermelho. Ela levou a mão ao peito dele, quase sem pensar. Seu coração. Ele segurou a mão dela por um instante, tentando transformar o cansaço em piada. Eu tô bem, só fora de forma. Acontece com atletas de escritório.
Os dois ficaram ali perto demais, por segundos a mais do que deveriam. Até perceberem. Ana puxou a mão de volta sem graça. Eduardo desviou o olhar. Luna, sem entender a eletricidade no ar, agarrou o gato e saiu correndo, feliz. Foi então que o ruído dos pneus na estrada anunciou outra presença. Um carro preto, reluzente, muito diferente do jip velho do Dr.
Henrique, parou em frente à casa. Da porta saiu uma mulher de salto alto fincado na terra. Óculos escuros, cabelo liso, perfeitamente alinhado. O perfume dela chegou antes da voz. Então é aqui que você se esconde, Eduardo. Ele sentiu o estômago afundar. Bianca, Ana da porta sussurrou quase sem som.
Quem é minha ex-sócia? Eduardo respondeu baixo. Bianca caminhou até a varanda como se fosse passarela. olhou ao redor com um misto de nojo e curiosidade. Fiquei curiosa para ver com os próprios olhos o lugar que conseguiu o que eu não conseguia em anos. Tirar você da empresa.
Ela notou Ana parada no limite da porta, com o avental sujo de farinha, mão ainda marcada pela pressão na cadeira. Entendi. Bianca sorriu de lado. É por causa dela. Ana baixou o olhar sem saber se entrava, se saía, se desaparecia. Licença. Bianca completou. Assuntos de trabalho. Ana recuou devagar, mas antes de sumir no corredor, os olhos dela cruzaram com os de Eduardo por um segundo. Havia ali uma pergunta muda que nem ele sabia responder.
No quintal, Bianca castigava o cascalho com o salto fino enquanto falava. Temos proposta de expansão, investidores esperando sua decisão, um projeto inteiro que a gente construiu junto. E você simplesmente some. Some, Eduardo. Eu quase morri. Ele cortou. Precisei sumir de tudo. Você quase morreu, se recuperou e agora fica aqui brincando de casinha com uma invasora e duas crianças que nem são suas. O veneno escorreu doce. A palavra invasora bateu diferente agora.
já não encaixava tão bem. Eduardo sentiu o peito apertar, não pelo coração fraco, mas por perceber como a frase feria alguém que não estava ali para se defender. Isso não é da sua conta, Bianca. Tudo que você faz é da minha conta, enquanto seu nome ainda estiver na placa da empresa. Ela chegou mais perto, olhos nos olhos.
Eu encontrei compradores, um grupo de fora do Brasil, oferta alta. muito alta. E o que você quer? Quero saber se você volta ou se eu vendo a empresa sem olhar para trás. O vento trouxe o som distante da risada de Luna, brincando com Mingal já em segurança. Eduardo olhou para a casa, para a varanda, para o varal com as roupas pequenas balançando.
Uma parte dele, antiga, lembrou do prazer de fechar negócios grandes, de ver números crescendo. Outra parte, nova e tímida, lembrou do cheiro de pão na frigideira, do desenho do moço bravo, do jeito como Ana segurou a mão dele na árvore. Ele escolheu. Vende, disse calmo. Bianca piscou sem entender.
O quê? Vem de sua parte, vende tudo. Eu não volto. O silêncio que se seguiu foi tão pesado quanto qualquer reunião tensa no escritório, mas completamente diferente. Você enlouqueceu? Ela sussurrou. Esssa empresa é a sua vida. Era. Ele corrigiu. Não é mais. Ela o encarou como se não reconhecesse mais o homem à sua frente.
Você vai se arrepender. Talvez. Eduardo deu de ombros. Mas se acontecer, vai ser meu arrependimento, não o seu. Bianca colocou os óculos de volta, subiu no salto e foi embora, deixando atrás de si apenas cheiro de perfume caro e poeira suspensa no ar. Da janela da cozinha, Ana tinha ouvido mais do que queria, principalmente a palavra invasora. Naquela noite, Eduardo encontrou a casa estranhamente silenciosa. Luna já dormia.
Davi respirava fundo no berço. Ana estava na cozinha, mãos apoiadas na pia, olhar perdido na escuridão do quintal. Eu ouvi. Ela disse sem rodeios antes que ele abrisse a boca. A conversa. A parte em que ela disse que você tá jogando tudo fora por causa de mim. Eduardo sentiu a culpa colar na pele. Não é assim? É sim.
Ana forçou um sorriso triste. E você não devia. Ela respirou fundo, como quem toma coragem para pular, sem saber se tem água embaixo. Eu encontrei um lugar, um apartamento pequeno numa cidade aqui perto. A dona aceita criança, até gato. Posso me mudar antes do prazo dos 10 dias. As palavras foram entrando devagar.
Mas cortando fundo. “Você não precisa ir”, ele disse. “A gente, eu preciso”. Ela interrompeu firme, mas com a voz embargada. Você já fez demais. Foi mais generoso do que muita gente que eu conheci na vida. Não vou ser o motivo de você largar tudo. Ela saiu antes que ele encontrasse uma frase que não parecesse egoísta.
Mais tarde, a campainha improvisada, um sininho preso na porta, tocou. Seu Zé entrou com uma garrafa na mão. Tá com cara de quem precisa disso aqui? Ele disse, levantando a cachaça artesanal. Eduardo riu sem humor. Não posso. O médico proibiu. O médico não tá aqui. O velho respondeu, servindo só um gole.
E não é para esquecer, é só para soltar a língua. Os dois se sentaram na varanda. O céu estava cheio de estrelas, coisa que Eduardo tinha esquecido que existia. Ela vai embora, ele disse, encarando o escuro. Eu sei. Seu Zé deu um gole. Ela me falou, pediu para eu cuidar do gato. É a vida dela. Eu não posso segurar. Seu Zé virou o rosto, estudando o amigo.
E a sua? Você quer o quê? Eduardo demorou para responder. Não sei. Sabe sim. O velho retrucou. Você só tem medo de dizer, medo de parecer bobo, medo de se machucar, medo dela dizer não. E se ela disser não? E se ela disser sim? Seu Zé devolveu simples. Eduardo encarou o copo na mão.
O líquido transparente refletia um pedaço de estrela. Eu acho que tô Ele engoliu em seco, me apaixonando por ela. Achando? O velho riu. Rapaz, se você já tá falando isso em voz alta, é porque já foi. Lá dentro, um copo caiu na pia. O som pequeno atravessou a casa, sem que nenhum dos dois ainda soubesse o tamanho da queda que aquela noite estava preparando.
Na manhã seguinte, o silêncio foi a primeira coisa que Eduardo estranhou. Nada de rádio, nada de cheiro de café, nada de Luna correndo pelo corredor. Ele desceu as escadas com o coração apertado, sentindo o eco de um medo antigo, o medo de perder sem aviso. A cozinha estava arrumada demais, tudo no lugar.
Arrumado demais para ser manhã de casa cheia. Foi até o quartinho dos fundos. A porta estava entreaberta. Lá dentro, malas. abertas sobre a cama, roupas dobradas com um capricho dolorido. Ana estava de costas, guardando o último vestido. Davi brincava no chão com uma tampa de panela.
Luna passava o dedo sobre o desenho do moço bravo, como se estivesse se despedindo dele também. “Você tá fazendo as malas?”, Eduardo afirmou, sem conseguir transformar em pergunta. Ana se virou. Os olhos estavam vermelhos, mas secos. como se as lágrimas já tivessem acabado. “Eu vou amanhã cedo”, ela disse. “Melhor ir antes, antes de ficar mais difícil”.
Eduardo deu um passo para dentro do quarto. O cheiro de sabonete simples, talco de bebê e alguma coisa de despedida queimou seu nariz. “Mas ainda faltam dias.” “Eu sei.” Ela cortou. Mas se eu ficar, vai doer mais em todo mundo. Luna apertou a folha de papel entre os dedos, o desenho amassando no canto. Eduardo quis dizer fica. Quis dizer não vai. Quis dizer tudo que passou noites ensaiando.
Nada saiu, só o silêncio. E no silêncio, o barulho discreto do zíper sendo fechado, soou como uma sentença. Naquela noite, a casa parecia segurar a respiração. O silêncio não era silêncio de paz, era aquele silêncio estranho que vem antes da tempestade. Eduardo andava de um lado pro outro na varanda, ouvindo o rangido leve da madeira sob, tentando juntar coragem para fazer o que não fez no quartinho, pedir paraa Ana ficar, dizer simples o que sentia.
Mas antes que juntasse as palavras, o primeiro acesso de Tosse cortou o ar. Mamãe! A voz de Luna veio fraca da direção do quarto. Ana correu antes dele. Eduardo foi atrás. Luna estava sentada na cama, abraçada à boneca, torcindo sem parar. O rosto quente, os olhos brilhando de febre. Ele encostou a mão na testa dela e levou um susto. “Ela tá queimando”, murmurou. Ana já tremia.
“Deve ser só um resfriado”, tentou acreditar. Amanhã passa, não passou. Duas horas depois, a tosse piorou. A febre subiu. A respiração de Luna parecia raspar por dentro. Eduardo pegou o celular com as mãos suadas e ligou para o Dr. Henrique. Chamou, chamou, caiu na caixa postal, tentou de novo. Nada. Ligou pro seu Zé. O Henrique foi pra capital hoje cedo. O velho explicou a voz preocupada.
O hospital mais perto fica a quase uma hora daqui e a estrada tá bloqueada por deslizamento. Tão falando no rádio. Então eu levo pela estrada de terra pelo outro lado. Sozinho de noite com essa menina desse jeito. Não dá. Eu vou chamar a dona Benedita. Ela entende dessas coisas. Meia hora depois, a porta se abriu devagar.
Uma senhora pequena, de cabelo branco, preso num coque simples, entrou com uma bolsa de pano no braço, os olhos cansados, mas firmes. Ela se sentou ao lado de Luna, encostou a mão na testa da menina, escutou o peito com um estetoscópio antigo. Ouviu a tosse com atenção. É começo de pneumonia, disse por fim. Ela vai precisar de antibiótico. Ana o encarou desesperada. A senhora tem para criança? Não. Só tenho plantas, chá. Dá para ajudar, mas não é o suficiente.
Eduardo abriu o armário do quarto com pressa, quase derrubando tudo. Sobrou o remédio do meu tratamento antibiótico. Eu não. Dona Benedita cortou. Esse é forte demais para ela. Pode fazer mais mal que bem. Ana segurou a mão da filha como se pudesse, pela força, impedir qualquer coisa ruim de acontecer. Então, o que a gente faz? Reza.
A senhora respondeu simples: “E não deixa a febre subir demais, pano molhado, água, vigiar. A noite vai ser longa.” E foi. Eduardo nunca tinha sentido o tempo passar tão devagar. O relógio da parede marcava cada minuto com um tique, alto demais. Do lado de fora, os grilos cantavam indiferentes. Ana e ele se revesavam ao lado da cama de Luna.
Um trocava os panos frios na testa, o outro dava pequenos goles de água, contava histórias atropeladas, fazia promessas que nenhum médico aprovaria. Luna, ora delirava, ora abria os olhos e chamava pelo pai. Papai, tá escuro. Você vem me buscar, murmurou numa dessas, olhando pro teto. Ana quase desmoronou. Ele tá com Deus, meu amor, sussurrou, engolindo o choro. A mamãe tá aqui.
O tio Edu também. Eduardo sentiu o peito apertar de um jeito que não tinha nada a ver com o infarto. Era medo, puro, cru, medo de perder uma criança que dias atrás desenhou ele como o moço bravo. Agora, o moço bravo se sentia um menino completamente impotente. Em certo momento, Ana largou o pano na bacia e cobriu o rosto com as mãos. Eu não aguento, Eduardo. A voz saiu quebrada.
Se eu perder ela, eu eu não sei o que eu faço. Eu devia ter ido embora. Eu devia ter saído daqui antes. Trouxe azar, trouxe problema. Não fala isso. Ele respondeu, aproximando-se dela. Você trouxe vida para essa casa. E se ela morrer aqui na sua casa? Ana dizia qualquer coisa, tentando achar um culpado.
Você nunca mais vai conseguir entrar nesse quarto. Vai me odiar. Vai se arrepender de tudo. Eduardo segurou o rosto dela com as mãos molhadas de água fria. Eu não vou me arrepender de ter conhecido vocês nunca. Ela apertou os olhos, tentando segurar a lágrima, que mesmo assim escorreu. Por volta das 4 da manhã, quando os olhos dos dois já ardiam de cansaço, algo mudou.
A respiração de Luna começou a ficar mais calma. A pele antes em brasa, foi esfriando devagar, como um ferro de passar desligado. A tosse ainda vinha, mas com menos força. Ela abriu os olhos, pupilas um pouco perdidas e sorriu fraco. Mamãe, eu tive um sonho. Ana já chorava antes mesmo da explicação. Que sonho, filha. O papai veio. Luna sussurrou.
Ele estava bonito com a roupa que usou no seu casamento. O coração de Ana quase parou. Ele disse: “A menina respirou fundo, que tá tudo bem, que não dói mais e que pode deixar o tio Edu cuidar da gente agora”. Eduardo sentiu as pernas ficarem moles. Luna concluiu antes de voltar a dormir. Ele disse que gosta do tio Edu.
Porque você faz a mamãe sorrir? A menina fechou os olhos. Dessa vez o sono era de descanso, não de delírio. Ana encostou a cabeça no ombro de Eduardo. Eles ficaram ali em silêncio, ouvindo a respiração leve da menina. Na janela, o céu começava a clarear. “Eu tô cansada de sentir medo, Eduardo.” Ana disse horas depois na cozinha, enquanto o sol já entrava pela janela.
Medo de perder, medo de não ter, medo de amar. Eu só tô cansada. Eduardo, sentado à mesa, olhava para as próprias mãos, ainda marcadas pelos arranhões da mangueira. Eu também tô. É diferente. Ela retrucou. Você é rico. Se der errado, você perde dinheiro. Eu perco o chão. Ele levantou, aproximando-se aos poucos.
Com cuidado, não parecia o homem que mandava e desmandava em salas de reunião. Parecia alguém andando na beira de um precipício. “Então deixa eu ser chão também”, ele pediu. “Não só teto, não só parede. Deixa eu aguentar junto.” Ela riu, um riso curto, nervoso. Fala assim e eu acabo ficando. “Fica?
“, ele respondeu sem pensar. “Fica.” Ana o encarou, os olhos cansados, mas limpos. Me beija antes que eu fuja de novo. Ele hesitou meio segundo, depois não hesitou mais. O beijo não foi perfeito, foi meio desajeitado, com gosto de café frio e noites mal dormidas, mas tinha tudo. Medo, alívio, saudade de coisas que eles ainda nem viveram.
Quando se afastaram, Ana ria e chorava ao mesmo tempo. “Eu tô apaixonada por você, seu Eduardo”, confessou como se estivesse cometendo um crime. “Loucamente, ridiculamente. Ainda bem.” Ele murmurou com a testa encostada na dela. Porque eu também tô e eu tô cansado de fingir que não. Dias depois, Luna já corria pelo quintal atrás de Mingal, que parecia ter esquecido completamente o drama da árvore.
Davi engatinhava atrás de uma borboleta teimosa. Eduardo estava na varanda quando o celular tocou. Bianca. Ele olhou o visor, respirou fundo, atendeu. Pensei na sua proposta. Ela foi direto sobre vender minha parte e encontrei um grupo interessado. Oferta boa, muito boa. Mas antes de fechar, preciso da sua resposta final. Você volta ou não volta pra empresa? Eduardo olhou pro quintal.
Ana ria de algo que Luna dizia, as duas com os pés descalços na terra úmida. Davi quase caía sentado, tentando alcançar a borboleta. O portão azul lá no fundo aberto. Não volto, ele disse. Silêncio do outro lado da linha. Tem certeza? Bianca insistiu. Depois não tem volta, Eduardo. Eu sei. Ele respondeu calmo. E é por isso mesmo.
Passei anos construindo uma empresa e quase morri sozinho num escritório gelado. Agora eu quero construir outra coisa. Vai jogar tudo fora? Não tô jogando nada fora, sorriu. Tô investindo diferente. Ele desligou sentindo um peso sair dos ombros. Não dor, não culpa. Liberdade. Ana subiu na varanda, enxugando as mãos no avental.
Tudo bem? Melhor do que eu já estive em muito tempo. Ele disse, puxando-a para perto. Era a Bianca. A empresa vai ser vendida. E você? Eu vou ficar aqui. Respondeu simples. Com você, se você quiser. Ela sorriu e não precisou responder em palavras.
Naquela noite, depois que as crianças dormiram, Eduardo preparou o café fresco, cortou um pedaço de bolo de fubá da dona Carmen e chamou Ana pra varanda. As estrelas estavam espalhadas, brilhando como se tivessem sido polidas para ocasião. Ele estava mais nervoso do que em qualquer reunião com o investidor. “Preciso falar uma coisa”, começou, mas vai parecer loucura. Ana riu sentando na cadeira de fio ao lado.
A gente já tá vivendo uma, né? Vai. Eduardo respirou fundo. Eu sei que é cedo. Sei que foram só o quê? Duas semanas inteiras juntos. Um pouco mais. Sei que parece rápido demais. Parece. Ela confirmou com um meio sorriso. Mas eu quase morri sem ter amado de verdade e você quase ficou presa para sempre no medo de perder. Eu não quero mais perder tempo fingindo que a gente tem todo o tempo do mundo.
Ele se levantou, não se ajoelhou. O joelho não ajudaria, o coração muito menos, mas ficou na frente dela de um jeito quase desajeitado. Ana, eu não tenho anel, não tenho discurso bonito, tenho só uma certeza. Eu não quero mais tomar café sem você. Não quero dormir sem ouvir as crianças respirando no quarto ao lado. Não quero ser tio Edu para sempre.
Ela começou a chorar antes da pergunta. Você casa comigo? Silêncio. Só o som dos grilos longe e o vento passando pelas folhas da mangueira que um dia quase derrubou ele. “Você não tem juízo, Eduardo”, ela falou, rindo em meio às lágrimas. “Mas é, eu caso com medo mesmo, com dúvida mesmo, mas eu caso.
” Ele a abraçou tão forte que quase derrubou as duas cadeiras. Na manhã seguinte, a vila inteira já sabia. Uma semana depois, a pequena igreja estava cheia. Gente de chinelo, de bota, de vestido florido. Criança correndo, velha comentando, jovem filmando tudo no celular. Ana entrou com um vestido simples, feito às pressas pelas mulheres da vila.
Luna jogava pétalas de flores roubadas da horta, muito séria no papel. Davi, no colo de seu Zé apontava pro altar e dizia: “Papá, o que fez metade da igreja rir e a outra metade chorar.” O padre errou o nome de Eduardo duas vezes. O bolo derreteu um pouco no calor. Mingau quase subiu na mesa do buffet. Foi perfeito. Seis meses depois, o dia começou como tantos outros. Cheiro de café passado no coador.
Som de panela na cozinha. Rádio tocando um samba antigo, baixinho. Eduardo desceu as escadas de chinelo, calça de moletom, camiseta simples. Encontrou Ana na cozinha, cantarolando com o cabelo preso, barriga já arredondada sob o vestido. Davi no cadeirão, comendo banana amassada e sujando o rosto todo.
Luna desenhando na mesa. Dessa vez o moço bravo tinha a boca sorrindo. Bom dia, família. Ele disse, beijando a testa de Ana, bagunçando o cabelo de Luna, fazendo careta para Davi. Chegou carta para você. Ana apontou pro envelope em cima da mesa do advogado. Eduardo abriu, leu rápido. O dinheiro da venda da empresa tinha sido transferido. Estava tudo oficial. Ele estava finalmente livre.
E aí, Ana? perguntou, inclinando a cabeça. “Como se sente?” “Rico e desempregado.” Ele respondeu rindo. “Graças a Deus.” Ela riu junto, encostando a mão na barriga. Ele a puxou mais perto, abraçando por trás, descansando o queixo no ombro dela. “Obrigado por ter invadido minha casa, viu?”, murmurou. Se não fosse você, até hoje eu estava preso numa sala com ar condicionado, forte demais e vida de menos. Foi sem querer. Ela brincou.
Eu só precisava de um teto e eu só precisava de um lar. Ele completou. Luna levantou o desenho orgulhosa. Agora no papel, o homem grande estava de mãos dadas com uma mulher de vestido e duas crianças. O portão da casa pintado de azul aparecia atrás escancarado. Eduardo olhou pro desenho, pro portão verdadeiro lá fora, pro sol entrando pela janela, batendo na mesa simples da cozinha.
O coração dele, aquele que um dia quase parou, batia forte, mas dessa vez não de medo. Era outra coisa, algo que ele finalmente sabia nomear. Ali, entre o cheiro de café, o riso de criança, o miado de mingau roubando comida da mesa e a mão de Ana descansando sobre a barriga, Eduardo entendeu. A casa tinha nascido de novo e ele também. M.