O vento que batia contra o jatinho parecia mais forte do que o normal naquela noite. Lá de cima, as luzes de São Paulo tremeluziam como brasas espalhadas pelo concreto. Henrique Alves encostou a testa no vidro gelado e fechou os olhos por um segundo, tentando ignorar aquele aperto no peito que vinha desde cedo.
Um desconforto pequeno, mas insistente, como se algo o chamasse de volta para casa antes da hora. A caixinha de presentes pesava mais do que deveria na mão dele. Dentro, um carrinho metálico para Léo e uma boneca de pano artesanal para Bela, comprados numa feirinha de Bogotá. Coisas simples.
Mas ele imaginava o sorriso dos gêmeos, o tipo de sorriso que tinha visto cada vez menos por vídeochamada. O piloto anunciou a descida em Congonhas. Henrique respirou fundo e, sem pensar duas vezes, tomou a decisão ali mesmo. Não vou avisar ninguém hoje. Eu só quero ver meus filhos. O jatinho tocou o solo com um ruído surdo e, enquanto o avião taxeava, aquela sensação de que algo estava errado voltou, agora mais nítida.
Ele colocou a mão no bolso, procurando o celular. lembrou do último áudio da Isabela, baixinho, como se ela estivesse escondida. Pai, tá tudo bem? A gente tá bem. Tinha algo no jeito que ela falou tudo bem, que doeu mais do que ele queria admitir. No caminho pela marginal, dentro do carro preto que o buscou, Henrique percebeu o contraste, a cidade viva e barulhenta lá fora, mas ele por dentro estava silencioso, uma saudade imensa, misturada com culpa.
Será que eu tô viajando demais? Será que estou perdendo o crescer deles? Mas ele afastou o pensamento. Ele precisava acreditar que Bianca, a doce Bianca, a mulher que entrou na vida dele como um sopro de luz depois da morte da esposa, estava cuidando de tudo. Era isso que ele repetia para si mesmo nos últimos meses.
Mesmo assim, aquele aperto não ia embora. A mansão apareceu no alto da rua como uma caixa de vidro iluminada por dentro. linda, imponente, uma casa de revista, uma casa que, vista de fora, contava a história de uma família perfeita. Henrique entrou pela garagem lateral, chaveando a porta devagar para não acordar ninguém.
Normalmente, mesmo tarde da noite, ele escutava algum som: passos apressados dos empregados, TV na sala, risadas dos gêmeos ou mesmo Bianca cantando algo baixo enquanto organizava a cozinha. Mas naquela noite nada. O silêncio era tão absoluto que parecia preencher os cantos pesado, quase denso. O tipo de silêncio que não combina com uma casa onde moram duas crianças de 5 anos.
Henrique parou um momento no hallada tentando entender. Sentiu um cheiro estranho no ar, não forte, mas incomum. Comida velha misturada com produtos de limpeza baratos. Um cheiro que não deveria existir ali. Ele subiu às escadas devagar, cada degrau fazendo eco contra o mármore.
O corrimão estava frio demais e o corredor do segundo andar, o corredor que costumava ter luz de presença acesas, estava completamente apagado. Só a luz da rua, entrando pelas paredes de vidro criava sombras longas no chão. E então, no fim do corredor, vindo do quarto das crianças, ele ouviu um sussurro, primeiro fraco, quase um sopro, depois um pouquinho mais claro.
Bela, será que ele volta hoje? Henrique parou. O coração dele bateu tão forte que fez seu peito vibrar. Outro sussurro ainda mais baixo. A tia Bianca disse que não. Tia Bianca. O nome cortou o ar como uma pequena lâmina. Henrique se aproximou devagar, a mão suando em torno da caixinha de presentes.
A porta do quarto estava entreaberta. Ele empurrou com um dedo silencioso e o que ele viu não fazia sentido. O quarto antes cheio de cor e vida, o quarto que ele e a esposa tinham escolhido juntos, um porco tempo antes dela partir. Agora parecia uma sombra de si mesmo.
O papel de parede infantil estava rasgado em vários pontos. Os móveis planejados haviam sumido, como se alguém tivesse arrancado a infância daquele lugar. Pedaço por pedaço. E onde antes havia uma cama linda com lençol de superherói e travesseiro cor- de rosa. Agora havia apenas dois colchões finos jogados no chão, amassados, sem proteção. Léo estava sentado num deles, abraçando os joelhos, roupa amassada e suja, cabelo oleoso, rosto mais fino do que Henrique lembrava.
Isabela, encolhida ao lado dele, segurava a barriga vazia com as duas mãos, como quem tenta acalmar a fome. Henrique sentiu o ar sumir dos pulmões. Não era só surpresa, era choque, era medo, era dor. Era a sensação de que tudo que ele achava que sabia sobre sua própria casa estava errado. Léo foi o primeiro a olhar para a porta.
Os olhos dele cresceram, o queixo tremeu e ele soltou num fio de voz incrédulo: “Pai!” Naquele momento, Isabela ergueu a cabeça também. E quando Henrique abriu os braços, os dois correram até ele com uma força desesperada, como se o corpo frágil deles estivesse segurando o mundo inteiro. Eles eram tão leves que pareciam feitos de vento.
Henrique ajoelhou, abraçando os dois ao mesmo tempo, sentindo o cheiro de suor velho, de roupa não lavada, de medo. O que aconteceu com vocês? Ele murmurou, voz quebrada. Isabela apertou o rosto contra o peito do pai. A tia Bianca disse que você não amava mais a gente. Disse que você não vinha porque esqueceu. Henrique fechou os olhos.
O mundo inteiro pareceu se inclinar para o lado. Léo mostrou o roxo pequeno no braço, tentando esconder ao mesmo tempo. Ele olhou pro chão, como se pedir desculpas por algo que não era culpa dele. A gente tentou ligar, mas ela ficava junto e ficava brava. Henrique respirou fundo, fundo, fundo, tão fundo, que parecia que ele estava tentando puxar o ar de volta para dentro do corpo dos filhos. Ele se levantou devagar, ainda segurando os dois.
olhou ao redor do quarto destruído e num canto perto da parede rasgada viu algo fora do lugar, uma pequena fralda de pano, daquelas que ele sempre usava para limpar o rosto das crianças quando eram bebês. Agora jogada no chão, manchada de algo escuro. Henrique se abaixou, pegou o pano entre os dedos, dobrou devagar, quase com carinho, como se estivesse tocando num fantasma.
Aquele pedaço de tecido era só um pano velho, mas nas mãos dele tornou-se um sinal claro. Alguém tinha apagado o aconchego da casa. Alguém tinha substituído o cheiro de infância pelo cheiro de medo. E ele, sem perceber, tinha deixado isso acontecer. Com a fralda dobrada na mão e os filhos abraçados às pernas, Henrique entendeu, mesmo sem ainda saber todos os detalhes, que algo terrível estava escondido na mansão de vidro e que naquela noite silenciosa, o silêncio estava tentando avisá-lo.
Henrique permaneceu um tempo parado no quarto, com os filhos dormindo exaustos sobre ele, como dois passarinhos que haviam encontrado abrigo depois de uma tempestade longa demais. A respiração dos gêmeos, lenta e irregular, preenchia o silêncio pesado do cômodo. Ele passou a mão pelos cabelos de cada um, sentindo a textura áspera, como se nem shampoo tivessem usado nos últimos dias.
Quando enfim conseguiu se levantar, ajeitou os dois nos colchões improvisados, abaixou a luz e só então permitiu que o peito dele tremesse, não por choro, mas por uma mistura crua de incredulidade, culpa e um medo que não tinha nome. Ele abriu a porta devagar. O corredor escuro parecia maior do que antes.
Ao descer as escadas, uma ideia se formou entre as sombras. Se aquilo tinha acontecido dentro da própria casa, algo no passado recente não fechava. Alguma coisa no comportamento de Bianca, algum detalhe pequeno, precisava ser reolhado. Na cozinha ligou a torneira, mas a água que caiu foi fraca, vacilante. “Estranho”, murmurou. A casa sempre funcionara como um relógio.
Ele abriu a geladeira. O cheiro ácido o atingiu como um tapa. Havia embalagens abertas, carnes com cor esverdeada, verduras murchas, uma panela com arroz embolorado. Nada ali parecia ter sido preparado pensando em crianças. Henrique fechou a porta lentamente, como quem tenta não se ferir com a própria descoberta.
Bianca permitiu isso? Ou foi ela quem fez isso? O nome dela parecia ter ganhado outro peso. Ele foi até o escritório para tentar organizar a mente. A porta rangeu, coisa que nunca acontecia. Dentro os móveis estavam exatamente onde deveriam estar, mas havia algo fora do lugar que ele não conseguia nomear. Sentou-se na cadeira, passou a mão pela mesa e então percebeu.
A gaveta onde guardava documentos confidenciais estava trancada. porém com um risquinho novo, como se alguém tivesse tentado abri-la com uma chave diferente. O coração dele acelerou, abriu com sua própria chave. Lá dentro, pastas estavam deslocadas por milímetros. O tipo de alteração que alguém só notaria se conhecesse cada detalhe daquele espaço.
Henrique puxou a pasta azul, onde costumava guardar talões de cheque e dinheiro para emergências. O envelope que sempre guardava em cima, com notas separadas por valor, estava mais fino. Ele encarou o vazio. Um arrepio subiu pelas costas. Não era a quantia que importava, era o fato de alguém ter mexido, ainda sentado.
Ele levou a mão ao rosto e ficou assim durante longos segundos, respirando como alguém que tenta não acordar de um pesadelo, porque acordar significaria aceitar que o pesadelo era real. Eu confiei. Confiei nela com a coisa mais preciosa que eu tenho. Às duas da manhã, Henrique ouviu a porta da frente se abrir.
Passos leves, o perfume caro de Bianca invadindo o corredor, sempre o mesmo, floral, doce, quase enjoativo. Ela apareceu na porta do escritório com um sorriso ensaiado de sempre. Amor, você voltou? O tom era de surpresa, mas não o suficiente para ser convincente. Henrique respondeu apenas com um aceno curto, controlado. A reunião terminou mais cedo disse, sem acrescentar nada.
Bianca caminhou até ele, inclinando o corpo para dar um beijo rápido. Ele deixou, mas não retribuiu. E ela percebeu, não pelas palavras, mas pelo modo como ele endureceu o ombro. Você parece tenso”, comentou ela, fazendo uma voz suave, quase infantil. “Onde estão as crianças? Dormiram?” Henrique analisou cada microexpressão, a rapidez com que ela mencionou as crianças, a suavidade exagerada, o olhar que desviou por um segundo para a escada, como se verificasse se algo estava em ordem.
Estão dormindo?” Ele respondeu. Estavam com saudade. Bianca sorriu, mas o sorriso não alcançou os olhos. “Ah, amor, eles são sensíveis. Acham que você viaja demais, mas eu explico tudo. Eu sempre cuido deles.” O coração de Henrique bateu mais forte com a frase: “Eu sempre cuido deles”. Dessa vez ele levantou da cadeira.
Vou tomar um banho”, disse curto. “Quer que eu prepare um chá?”, ela perguntou, aproximando-se. “Você parece cansado.” Henrique apenas acenou com a cabeça. Assim que ela se virou, ele tirou o celular do bolso e o deixou no móvel da sala, escondido entre livros, gravando áudio. Subiu as escadas devagar, como quem sobe depois de plantar uma armadilha que precisava confirmar.
No quarto de hóspedes, onde decidiu se trocar, ele ouviu a voz de Bianca vindo da sala lá embaixo. Primeiro baixa, depois mais clara. E não era português, era espanhol, fluente, natural, quase íntimo. Henrique congelou com a camiseta na mão. Se todo está saliendo perfeito. Eu não sete a nada. A voz dela era leve, mas o conteúdo não tinha leveza alguma.
Los ninhos si estão totalmente baixo controle. Eu creio em todo lo que digo. Esfácio. Henrique se aproximou do corrimão da escada sem descer, apenas ouvindo. Mas unos dias solo necessito afirma. Depois veremos que há ser com os pequenos. O sangue dele gelou. Aquela frase: “O que fazer com os pequenos?” Ele desceu um passo sem perceber.
Uma segunda voz apareceu distante pelo telefone de Bianca. E ela acidente? Bianca respondeu com segurança fria. Não te preocupes, El vive viajando. Nad sospechará de um padre ausente. Henrique agarrou o corrimão com tanta força que sentiu os dedos doerem.
Era como assistir ao colapso de uma realidade que ele mesmo construiu para sobreviver à dor da vivez. A mulher que ele deixou entrar na vida dos filhos era uma estranha. Não, pior, era uma ameaça. Quando o barulho do telefone desligando ecoou, ele voltou para o quarto, fechou a porta com cuidado e apoiou a testa na madeira.
respirou fundo e pela primeira vez desde que viu o quarto destruído das crianças, a raiva entrou junto do medo, uma raiva quente, afiada, que não deixava espaço para dúvida. “Eu preciso agir” agora, ainda naquela madrugada, Henrique foi até o escritório de novo. A luz da rua entrava pelas paredes de vidro, criando reflexos sobre o tampo da mesa. O ambiente parecia outro.
como se a casa inteira estivesse revelando segredos que ele não quis ver antes. Ele abriu a gaveta de novo e pegou uma fotografia antiga. Ele, Léo e Isabela, ainda bebês, enrolados em fraldas, sorrindo, olhando pra câmera. Bianca nem existia naquela época. O olhar dele ficou preso numa marca pequena no canto da foto.
Um arranhão que só era perceptível quando a luz batia certo, um arranhão que ele nunca tinha notado. E naquele arranhão, refletindo a luz, Henrique percebeu algo simples, mas definitivo. Ele vinha olhando para tudo com a luz errada. Agora, a luz estava no lugar certo, e o que ele via não tinha volta. Com a foto na mão, ele fechou o punho, não com força, mas com decisão.
Os rostos atrás da máscara tinham começado a aparecer e naquela noite a máscara dela tinha começado a rachar. O céu ainda estava escuro quando Henrique abriu os olhos. Ele não tinha realmente dormido, só apagado por alguns minutos, com a cabeça encostada no sofá do quarto dos gêmeos, como alguém que vigia a própria casa com medo de piscá-la para as sombras.
Léo e Bela continuavam dormindo, enrolados no mesmo cobertor, as mãozinhas entrelaçadas. A respiração deles era tranquila pela primeira vez em dias. Henrique sentou devagar, com cuidado para não acordá-los, e ficou observando o rosto dos dois, pequenos, frágeis e, ao mesmo tempo, resistentes de um jeito que crianças não deveriam precisar ser.
Ele passou a mão no cabelo de Léo, depois no de Bela, e tomou a decisão que mudaria tudo. Hoje ninguém encosta mais em vocês. A voz saiu baixa, quase como um juramento íntimo na cozinha, enquanto esquentava um pouco de leite, o único alimento minimamente decente que encontrou. Ele desenhou dois faróis num pedaço de papel, um azul, um amarelo. Chamou Léo e Bela quando acordaram.
serviu o leite e colocou o papel entre eles. Hoje a gente vai brincar de código secreto. Os olhos deles se iluminaram com um interesse tímido. Se vocês falarem farol azul, significa que estão com dor. Se falarem farol amarelo, significa que ela fez alguma coisa. Léo hesitou.
E se ela ouvir? Não vai ouvir, Henrique respondeu firme, mas com carinho. Vocês só precisam lembrar das cores. O resto é comigo. Os gêmeos assentiram, como dois soldados pequenos, aceitando uma missão difícil demais. Henrique sentiu um nó na garganta ao perceber que estava pedindo para filhos tão pequenos ajudarem a derrubar um adulto, mas não havia escolha.
Por volta das 7, a equipe do detetive Mauro chegou disfarçada. Nada de carros chamativos, nada de uniforme. Pareciam técnicos de internet carregando caixas de ferramentas e pequenas maletas pretas. Henrique os guiório, o corredor do segundo andar. O som dos cliques metálicos das microcâmeras se misturava com o tic-tac relógio da parede, criando uma sinfonia discreta. e tensa.
“Essas aqui são quase invisíveis”, explicou Mauro, mostrando um dispositivo do tamanho de uma unha, som e imagem em alta definição. E ela não vai notar nada, só se ela for especialista em contraespionagem. Henrique deu um meio sorriso cansado. Ela é muita coisa, mas acho que isso não. Daniel Costa chegou em seguida, sem terno, só camisa e jeans, para não chamar atenção.
Trazia uma pasta fina debaixo do braço. Henrique, o material que você já me entregou é suficiente para abrir investigação, mas para aprender hoje, precisamos dela se mostrando, sem dúvidas, sem brechas. Henrique sabia o que isso significava. Precisariam deixá-la agir. O que queimava por dentro, aquele impulso de arrancá-la da casa imediatamente, precisava ser engolido por Léo, por Bela. Pouco antes das 8, os técnicos saíram.
Henrique desceu à cozinha e acendeu o fogo como se fosse uma manhã qualquer. E foi assim que Bianca apareceu, descendo as escadas com o mesmo perfume doce de sempre, chinelos macios, cabelo impecável, bocejando de um jeito quase teatral. “Bom dia, meu amor”, disse ela, sorrindo como quem sabe exatamente a hora certa de encantar. Henrique se virou.
E ela caminhou em direção a ele para um beijo rápido. Ele deixou, mas o beijo não encontrou reciprocidade, apenas a resistência suave de um rosto que não queria mais ser tocado por ela. Bianca percebeu, mas disfarçou. Chegou tão tarde ontem. Pensei em te esperar, mas estava morta. Eu sei respondeu Henrique lacônico.
Léo e Bela entraram na cozinha e foram poucos segundos. mas suficientes para Henrique ver o olhar de Bianca mudar. Uma tensão breve atravessou os olhos dela, como se tivesse sido pega de surpresa com a presença deles ali tão cedo, olhando diretamente para ela. Mas logo ela vestiu o sorriso maternal.
Meus amores, dormiram bem? Os gêmeos ficaram imóveis, quase sem piscar. Bianca abriu os braços. Eles não se mexeram. Henrique percebeu o microgesto, o canto da boca dela tremendo antes de recuperar o controle. Durante o café, Henrique anunciou: “Preciso ir ao rio hoje à tarde, talvez ficar duas semanas.” Silêncio. Uma colher caiu da mão de Bela. Bianca disfarçou um brilho de excitação nos olhos. De novo, amor.
Nossa, mas tudo bem. Ela sorriu, pousando a mão sobre a dele. A gente dá conta aqui, né? Crianças, Léo baixou o olhar. Bianca apertou a mão na dele, como se quisesse dobrar aquela submissão forçada. Henrique sorriu, um sorriso calculado, frio, mas convincente. Eu confio em você, Bianca. Claro que confia. Ela respondeu quase ronronando.
Às 9, Henrique saiu pela porta da frente, subiu no carro e foi embora. Ou parecia. Ele dobrou a esquina. parou a três quarteirões e entrou na van branca estacionada ao lado de uma praça de árvores baixas. Lá dentro, a delegada Lúcia consultava mapas da casa num tablet. Mauro testava a transmissão ao vivo. Daniel ajustava os fones de ouvido, concentrado.
Henrique entrou, tirou o palitó, passou a mão pelo cabelo e sentou-se na cadeira do meio, bem em frente aos monitores. “Está tudo certo?”, perguntou. Mauro apertou um botão e a mansão de vidro apareceu nas telas. Sala, cozinha, escritório, quarto das crianças. Henrique sentiu o estômago virar.
Era como assistir à própria casa de fora, pela primeira vez vendo o que nunca viu. “Vamos começar”, disse Daniel. “E lembra, por mais difícil que seja, você não pode entrar até o nosso sinal”. Henrique assentiu, apertando os dedos até ficarem brancos. E então começou. Bianca surgiu na cozinha sozinha com as crianças. A expressão dela transformou-se instantaneamente, como água que ferve e depois vira vapor.
Vocês dois me irritaram hoje cedo. A voz dela era outra, sem doçura, sem máscara. Ajoelha. Os gêmeos obedeceram. Henrique inclinou-se para a frente, como se o corpo quisesse atravessar a tela. Bianca pegou a camiseta de Léo e esfregou no chão. Limpa agora. Daniel anotava cada palavra.
A delegada séria murmurou: “Continua. Precisamos da confissão completa. Bianca se abaixou ao nível das crianças, olhos duros. Seu pai não liga para vocês, só liga para viajar. Ele nem percebeu vocês sumirem. Farol amarelo”, sussurrou Isabela, quase inaudível. Henrique fechou os olhos por um segundo.
A força necessária para não invadir a casa naquele instante era quase sobreumana. A cena seguinte aconteceu no escritório. Bianca entrou, fechou a porta, abriu o compartimento secreto, tirou frascos, tirou documentos falsos, tirou dinheiro embolado em elásticos e começou a falar sozinha. Só mais uns dias, ele vai assinar. Depois os pequenos desaparecem, como aconteceu lá em Buenos Aires, como no caso do italiano. Ninguém nunca suspeita. Na van. Silêncio.
O tipo de silêncio que antecede algo irreversível. A delegada avisou: “Temos tudo. Falta só a ação final. De volta à sala, Bianca preparou dois copos de suco, pingou um líquido transparente, misturou com calma, com prazer. Crianças, venham.” Ela sorriu. “Hoje vocês vão tomar um suco especial.” Henrique levantou da cadeira.
“Eu vou entrar?” Não”, disse a delegada. “Espera”. Léo olhou para o copo, olhou para a irmã e fez exatamente o que o pai ensinou. Queria farol azul, aquele do papai. Henrique desabou de volta na cadeira. O código, eles lembraram: “Era a hora. Equipes agora”, ordenou a delegada no rádio. A van explodiu em movimento.
Viaturas avançaram pelas duas entradas da mansão. Henrique correu atrás, o coração batendo como se fosse rasgar o peito. As portas se abriram, policiais entraram. Bianca congelou no meio da sala, ainda segurando a bandeja. Daniel entrou por trás deles. Bianca Rocha ou Carmen Araújo. Você está presa por tentativa de homicídio, estelionato, abuso infantil e suspeita de inúmeros crimes internacionais.
O copo na bandeja tremeu, caiu, se espatifou no mármore branco, o líquido colorido escorrendo como uma mancha que não merecia mais espaço na casa. Henrique apareceu na porta. Bianca, desesperada, tentou sorrir. Amor, diz alguma coisa. Eles estão inventando. Mas Henrique olhou para ela de um jeito que nunca tinha olhado para ninguém. Um olhar que dizia: “Tudo acabou. Você nunca mais chega perto dos meus filhos”.
E Léo e Bela correram para ele, enterrando o rosto no peito dele, enquanto os policiais algemavam Bianca. No chão, ao lado dos pés de Henrique, o suco derramado formava um traço torto que refletia a luz da janela. Um traço que parecia dividir o antes e o depois. O veneno exposto, a verdade finalmente iluminada. O silêncio depois da operação não era o mesmo silêncio da noite anterior.
Não era pesado nem ameaçador. Era um silêncio estranho, quase tímido, como se a casa tivesse prendido a respiração por meses e, enfim, estivesse tentando reaprender a soltá-la. Léo e Bela estavam no colo de Henrique, abraçados com força, os dedos pequenos agarrados na camisa dele como ganchos. A delegada se aproximou com cuidado.
Eles estão seguros agora, disse num tom baixo, que parecia respeitar o trauma que ainda ocupava o ar. Henrique apenas assentiu, ainda segurando os filhos como se alguém fosse arrancá-los dele a qualquer momento. Mas ninguém ia nunca mais. Bianca já tinha sido levada. A porta da frente estava aberta. Luzes vermelhas e azuis refletiam no piso de mármore.
Henrique olhou para aquilo e sentiu algo profundo dentro dele se rearrumando. Não tinha nome, mas era como se a casa estivesse expulsando o veneno, tijolo por tijolo. Nos dias seguintes, a mansão virou quase um quartel general. Polícia entrando, saindo, peritos passando pó para revelar impressões digitais. O promotor Daniel montando mapas de conexões entre os documentos encontrados.
Henrique caminhava pelos corredores acompanhando tudo, mas sempre com Léo e Bela perto, como se tivesse reencontrado partes de si mesmo que não pretendia perder outra vez. À noites, os três dormiam juntos, às vezes no sofá, às vezes no quarto das crianças, agora com as luzes acesas. Ele percebia pequenos detalhes que antes não via.
Como Bela sempre cochava quando escutava passos mais fortes no corredor. Como Léo dava trancos no sono quando ouvia portas abrindo. O corpo deles ainda lembrava o perigo, mesmo quando a mente tentava esquecer. Na primeira consulta com a psicóloga infantil, Léo sentou no colo de Henrique e não quis descer. A terapeuta, uma mulher de voz calma, sorriu e disse: “Não tem pressa, eles vão no ritmo deles.
” Henrique respirou fundo. Era estranho aceitar que o tempo da cura não obedeceria a sua urgência do pai, que queria resolver tudo imediatamente. O julgamento começou dois meses depois, num fórum lotado em São Paulo. Henrique estava sentado na segunda fileira, mãos entrelaçadas, vendo pela primeira vez a mulher que pensou amar vestida com uniforme bege, algemada, mas ainda tentando carregar aquele ar de inocência que um dia o enganou.
Ele não sentiu raiva naquele momento, nem ódio, só uma distância imensa, como se estivesse olhando para um personagem que nunca existiu de verdade. Bianca ou Carmen Araújo, como agora o Brasil inteiro conhecia, encarou a plateia com um sorriso leve demais, como se estivesse participando de um teatro.
Quando começaram a exibir as imagens das câmeras instaladas por Henrique, o tribunal ficou em silêncio absoluto. Os vídeos projetados no telão mostravam cada palavra, cada ato, cada ameaça, cada gesto de violência. A sala tinha ar condicionado, mas Henrique sentiu calor. As mãos suavam, a garganta ficava seca cada vez que via a filha chorando, o filho ajoelhado limpando o chão.
A psicóloga dos gêmeos leu alguns trechos dos desenhos e frases que eles expressaram durante a terapia. Pequenos sóis com caras tristes, bonecos minúsculos sendo observados por uma figura grande e preta. Uma frase escrita por Bela, com letra tremida. Eu tinha medo até quando dormia. Henrique fechou os olhos, respirou fundo para não desabar ali mesmo.
Daniel apresentou o histórico de identidades falsas, as mortes suspeitas, os relatórios internacionais. Tudo se encaixava de um jeito assustador. Quando a sentença foi lida, prisão perpétua sem possibilidade de progressão, Henrique não comemorou. Não havia vitória numa história assim.
Havia só alívio, um alívio silencioso, um alívio cansado. Depois do julgamento, a casa começou a ser reformada. Henrique fazia questão de estar presente em cada escolha, como se reconstruir a casa fosse uma forma de reconstruir também os filhos. Trocou papéis de parede, recolocou móveis novos, comprou brinquedos simples, mas escolhidos com os gêmeos ao lado.
O cheiro de tinta fresca substituiu o cheiro de mofo escondido. As risadas baixas começaram a voltar, tímidas, como quem testa se finalmente é seguro rir. Uma tarde, enquanto Bela pintava uma folha enorme de papel na sala, ela levantou o desenho com orgulho. Era um sol gigante amarelo, ocupando quase a folha inteira.
E no meio três bonequinhos de mãos dadas. Somos nós”, ela disse. A psicóloga falou que quando a gente desenha a família assim, o cérebro aprende a não ter medo. Henrique sentiu o peito esquentar, ajoelhou ao lado dela, olhou o desenho com atenção de quem olha um mapa para voltar para casa. Tá lindo, filha.
Léo, por sua vez, descobriu a cozinha. Henrique ria vendo o filho sério, franzindo a testa enquanto temperava frango ou mexia legumes numa panela pequena. Pai, eu quero aprender tudo. Tudo o quê? Fazer comida boa de verdade, não comida que machuca. Henrique fechou os olhos por um instante. A frase ficou ecoando dentro dele por horas.
Um ano depois, Henrique criou o Instituto Luz de Casa. ajudando famílias a reconhecer sinais de abuso e oferecendo apoio jurídico e psicológico gratuito. A primeira sala do instituto era decorada com desenhos feitos por crianças, inclusive os de Léo e Bela. Em uma campanha, Henrique observou de longe os dois gravando uma mensagem curta.
Se você sentir medo dentro da sua própria casa, pede ajuda. Seu medo não é invenção completou Bela. Os dois deram as mãos. Henrique teve que desviar o olhar por um segundo para não deixar as lágrimas escaparem. Era como ver o trauma deles transformado em proteção para outras crianças, como se de alguma forma tivessem encontrado luz dentro do veneno.
Certa noite, Henrique recebeu uma carta vinda do presídio, reconheceu a letra. Por um momento, o velho aperto no peito voltou. Ele abriu devagar. Lia-se. Henrique, eu sei que errei, mas mereço outra chance. Sou uma mulher, arrepende. Ele não terminou de ler, dobrou a carta no meio, depois em quatro e a jogou no lixo sem hesitar.
Não havia raiva no gesto, apenas uma certeza tranquila. Algumas pessoas não pedem perdão, pedem retorno ao controle. Henrique não permitiria isso nunca mais. Naquela noite, quando foi colocar as crianças na cama, tudo estava diferente do que era um ano antes. O quarto tinha luz quente, brinquedos espalhados, cheiro de sabonete e um pouco de tinta guache seca, vestígio das artes da tarde. Léo bocejou, subindo na cama.
Pai, se um dia a gente sentir medo de novo, você vem? O menino falava baixinho, mas com confiança. Henrique sorriu e deitou ao lado dele, puxando Bela para o outro lado. Eu não vou mais embora. Ele apertou as mãos deles. Se o medo vier, a gente enfrenta juntos sempre. Bela encostou a cabeça no peito dele e puxou a mão dele mais pro meio da cama, como quem fixa uma âncora.
Lá fora, a cidade ainda fazia barulho. Buzinas, motos, cães latindo. Mas ali dentro o quarto respirava outra coisa. Respirava paz. As luzes foram apagadas e no escuro suave da mansão de vidro dava para ver o reflexo de três silhuetas deitadas juntas, iluminadas apenas pelo brilho distante da cidade, um reflexo unido, firme, que antes não existia.
como se finalmente aquela casa tivesse aprendido a ser lar outra vez.