A chuva batia forte contra a janela do ônibus enquanto Lorena Martins observava São Paulo desaparecer pela última vez. Seus olhos, inchados de tanto chorar, mal conseguiam focar nas luzes da cidade que se apagavam na distância. 27 anos de vida cabiam agora em uma única mochila aos seus pés. Três dias.

 Havia sido apenas três dias desde que tudo desmoronou. O velório da mãe ainda queimava em sua memória como brasa viva. Dona Aparecida tinha lutado contra o câncer por 8 meses e Lorena estivera ao seu lado cada segundo, segurando sua mão enquanto a vida escorria lentamente.

 No último suspiro, sua mãe havia sussurrado: “Viva, minha filha! Promete que vai viver. Mas como viver quando voltou para casa e encontrou o apartamento vazio? Como respirar quando descobriu que Caio, seu namorado de 4 anos, havia esvaziado não apenas os móveis, mas também sua conta bancária. Como seguir em frente sabendo que ele fizera tudo isso com Marcela, sua colega de apartamento, enquanto ela velava a mãe no hospital? Lorena. A voz suave de Clarice a trouxe de volta.

 Sua melhor amiga desde a faculdade de veterinária, estava sentada ao seu lado, segurando sua mão. Está tudo bem. Você não está sozinha. Lorena tentou sorrir, mas as lágrimas voltaram a escorrer. Clarice puxou-a para um abraço apertado e ali no banco daquele ônibus rumo ao sul, Lorena permitiu se desmoronar mais uma vez.

 Eu não tenho mais nada, Clá, sussurrou, a voz quebrada. Nada. Minha mãe se foi. Meu apartamento, meu dinheiro, até minha dignidade ele levou. Você tem a mim e vai ter um novo começo. Clarice afastou-se apenas o suficiente para olhar nos olhos da amiga. A fazenda Horizontes Verdes vai te curar. Você vai ver os campos, o ar puro, a paz. É o que você precisa agora.

 Lorena a sentiu sem muita convicção. Ela conhecia a fazenda apenas pelas histórias que Clarice contava. Milhares de hectares de terras nos campos de cima da serra, gado angos premiado, cavalos criou-los campeões, um império verde que mais parecia conto de fadas para uma paulistana acostumada com concreto e buzinas.

 O ônibus atravessou a noite e Lorena adormeceu com a cabeça no ombro de Clarice, sonhando com campos que nunca tinha visto. Quando acordou, o sol já nascia no horizonte, pintando o céu de laranja e rosa. E então ela viu. Planícies infinitas se estendiam até onde seus olhos alcançavam. Um oceano verde dourado ondulando com o vento.

 Não havia prédios, apenas a vastidão da terra. Bem-vinda ao Rio Grande do Sul. Clarice sorriu notando seu deslumbramento. Ainda faltam duas horas até Cambará do Sul. Mas já dá para sentir, né? A liberdade. Liberdade. A palavra ecoou dentro de Lorena como algo distante e impossível. O ônibus parou na rodoviária de uma cidade pequena e uma caminhonete branca estava estacionada do lado de fora. Ao volante, um homem aguardava.

 Quando Lorena desceu com sua mochila, o ar frio da serra cortou seus pulmões. Era outubro, primavera no calendário, mas ali o frio ainda dominava as manhãs. Pai. Clarice correu para abraçar o homem que saiu da caminhonete. Lorena ficou parada, observando. Cásio Tavares era exatamente como imaginara e completamente diferente ao mesmo tempo.

 Alto, ombros largos de quem trabalha na terra, cabelos grisalhos muito bem cortados, rosto marcado pelo sol e pelo tempo. Usava bombacha, botas de couro e uma camisa xadrez. Mas eram seus olhos que a surpreenderam, escuros, profundos, carregando o peso de histórias não contadas. Quando ele olhou para ela, Lorena sentiu algo estranho atravessar seu peito.

 Não era atração, nãoquele momento de dor, era reconhecimento, como se aqueles olhos já tivessem visto a mesma devastação que os dela carregavam. Pai, essa é a Lorena. Clarice a puxou para perto. Minha melhor amiga, que eu sempre falo, senor Tavares. Lorena estendeu a mão, a voz saindo mais fraca do que pretendia. Ele observou sua mão por um momento antes de apertá-la.

 Sua pegada era firme, calejada, quente. Cáso disse simplesmente. E seja bem-vinda a Horizontes Verdes. Clarice me contou sobre suas perdas, meus sentimentos. Havia algo na maneira formal como ele falava. na distância educada que mantinha, que fez Lorena se sentir ao mesmo tempo acolhida e totalmente deslocada.

 A viagem até a fazenda foi silenciosa. Clarice tentava puxar conversa, mas tanto o pai quanto Lorena pareciam perdidos em pensamentos. A caminhonete atravessou estradas de terra, passou porteiras que Clarice descia para abrir e, finalmente, após 40 minutos, chegaram. A sede da fazenda Horizontes Verdes era uma construção imponente de pedra e madeira, com varandas amplas e um telhado de barro que parecia abraçar a casa.

 Ao redor, currais enormes, galpões, casas menores para os funcionários e, ao longe, até onde a vista alcançava, os campos verdes pontilhados de gado. “Meu Deus!” Lorena desceu da caminhonete, girando lentamente. É imenso. 5000 hectares Csio disse, pegando sua mochila antes que ela pudesse protestar. Minha família está nessa terra há quatro gerações.

 Havia orgulho em sua voz, mas também algo mais. Solidão, talvez. Uma senhora idosa saiu da casa limpando as mãos no avental. Dona Neusa Clariss correu para abraçá-la. Essa é a Lorena. Bem-vinda, querida. A cozinheira sorriu calorosamente. Um contraste com a frieza controlada de Cásio. Deve estar cansada da viagem. Preparei um café colonial para vocês.

 Lorena foi conduzida para dentro. A casa tinha pé direito alto, móveis rústicos de madeira maciça, fotografias antigas nas paredes. Tudo respirava história e tradição. E em cada canto ela podia sentir a ausência de algo ou alguém. “Isadora, minha mãe!” Decorou tudo isso. Clarice sussurrou enquanto subiam à escada de madeira que rangia. Ela morreu há 10 anos. Papai nunca mudou nada.

 O quarto que lhe destinaram era simples, mas aconchegante, com uma janela que dava para os campos. Lorena deixou a mochila cair e sentou na cama, o peso da exaustão finalmente a atingindo. Clarice sentou ao seu lado, pegando sua mão. Vai ficar tudo bem, você vai ver. Aqui, longe de tudo, você vai conseguir respirar de novo.

 Mas quando Lorena olhou pela janela e viu Cásio atravessando o pátio em direção aos currais, suas costas retas e passos determinados, algo dentro dela sussurrou que a fazenda Horizontes Verdes talvez não fosse o refúgio tranquilo que Clarice prometera. Talvez fosse o lugar onde sua vida se complicaria de formas que ela nunca imaginara.

 E naquele momento, vendo o sol bater nos campos infinitos enquanto o vento carregava o cheiro de terra molhada, Lorena não sabia se isso a assustava ou a intrigava. Os primeiros dias na fazenda se arrastaram em uma rotina estranha e silenciosa. Lorena acordava com o canto dos galos antes do amanhecer, desacostumada com os sons do campo que invadiam seu quarto pelas frestas da janela.

 Clarice tentava mantê-la ocupada, mostrando cada canto da propriedade, apresentando-a aos peões, levando-a para cavalgadas pelos campos que pareciam não ter fim. Mas era impossível não notar Cássio. Ele estava em toda parte e em lugar nenhum ao mesmo tempo. Passava no café da manhã, cumprimentava com um aceno de cabeça e desaparecia pelos campos antes que qualquer conversa se iniciasse. Voltava apenas para o almoço.

 Comia em silêncio enquanto Clarice tagarelava e retornava ao trabalho. À noite, Lorena o via pela janela, sempre sozinho na varanda, tomando chimarrão enquanto observava as estrelas. Ele sempre foi assim? Lorena perguntou uma manhã enquanto ajudava Clarice a dar ração para as galinhas no terreiro. Clarice suspirou, jogando os grãos com movimentos automáticos.

 Depois que minha mãe morreu. Sim, antes ele era diferente. Ria mais, tocava gaita nas festas, reunia os peões para churrasco. Agora é só trabalho e solidão. Ela olhou para Lorena com tristeza. Às vezes acho que ele se enterrou junto com ela. Lorena sentiu um aperto no peito. Reconhecia aquele tipo de dor porque agora ela própria a carregava. Foi no quinto dia que tudo mudou.

 Lorena estava no curral grande, observando os cavalos quando ouviu a comoção. Vozes alteradas vinham do galpão veterinário e seu instinto profissional falou mais alto que sua timidez. Correu até lá e encontrou Cásio, discutindo com seu Jacinto, o capataz. Tem que sangrar, patrão”, o velho dizia, apontando para um cavalo magnífico, mas visivelmente doente dentro da baia, febre alta, inchaço nas patas.

 “É o jeito antigo, sempre funcionou.” “Então sangra!” Cásio ordenou a voz firme. “Não.” A palavra saiu da boca de Lorena antes que pudesse se conter. Todos os homens viraram para olhá-la. O silêncio caiu pesado. Csio estreitou os olhos e pela primeira vez ela viu algo além de indiferença educada em seu rosto. Era desafio.

 Como disse? Ele perguntou a voz perigosamente baixa. Lorena engoliu em seco, mas seu conhecimento veterinário não a deixaria calar. Sangria é uma prática ultrapassada e perigosa, Sr. Tavares. Esse cavalo provavelmente está com laminite. Precisa de anti-inflamatório. Não perda de sangue. O silêncio se aprofundou. Seu Jacinto olhava boque aberto e os outros peões pareciam prontos para presenciar uma explosão.

 Cásio deu dois passos em sua direção. Alto como era, projetava uma sombra sobre ela, mas Lorena manteve o olhar firme. A senhorita é veterinária, então? Havia um toque de ironia em sua voz. Sou sim, formada pela USP com especialização em grandes animais. Ela ergueu o queixo. Esse cavalo vai morrer se vocês sangrarem ele.

 Algo mudou no rosto de Cásio. Não era raiva, exatamente, era avaliação. Ele a estudava como estudaria um cavalo novo que não conhece o temperamento. “Tormenta é campeão de três rodeios”, criou-los, disse lentamente. Vale mais de R$ 200.000. Se a senhorita está tão certa, então trate dele.

 Mas se eu perder esse animal, ele não terminou a frase, apenas deu meia volta e saiu do galpão, deixando Lorena com as pernas tremendo e o coração disparado. Benza a Deus. Seu Jacinto assobeiou baixinho. Guria, tu tem coragem. Ninguém encontraria o patrão assim. Mas Lorena já estava se movendo, examinando o cavalo, sentindo suas patas, checando temperatura e respiração. Era laminite, tinha certeza.

 Passou o resto da manhã tratando tormenta com os medicamentos que encontrou no armário veterinário da fazenda, aliviada por descobrir que tinham um estoque razoável. Claras depois, ainda no galpão. Você ficou maluca. A amiga estava entre o choque e o orgulho. Ninguém desafia meu pai assim. O cavalo dele ia morrer. Clar.

 E se você estiver errada? Lorena olhou para a tormenta, que já parecia mais calmo, deitado na palha limpa. Não estou. Aquela noite, Lorena não conseguia dormir. A adrenalina ainda corria em suas veias. Desceu para a cozinha em busca de água e encontrou a casa silenciosa, iluminada apenas pela luz da lua que entrava pelas janelas. Mas quando passou pela sala, viu uma silhueta na varanda.

 Cásio estava sentado em uma cadeira de balanço, a cuia de chimarrão na mão, olhando para o nada. Lorena hesitou, mas algo a puxou para fora. “Senhor Tavares”, disse baixinho, para não assustá-lo. Ele virou a cabeça lentamente. A luz do luar seu rosto parecia ainda mais marcado, mais cansado. “Ainda acordada, insônia”, ela respondeu, aproximando-se, mas mantendo distância. E o senhor? Rotina.

 Ele tomou um gole do chimarrão. Não durmo bem há anos. O silêncio se instalou, mas não era desconfortável. Era carregado de algo que nenhum dos dois sabia nomear. “Tormenta está melhor”, Lorena disse. Finalmente. A febre baixou. Amanhã ele vai estar de pé. Cásio não respondeu imediatamente.

 Quando o fez, sua voz estava diferente, mas suave, quase vulnerável. Isadora, minha falecida esposa, também era teimosa assim. Quando tinha certeza de algo, ninguém a demovia. Era a primeira vez que ele mencionava a esposa. Lorena sentiu que estava pisando em terreno sagrado. Clarice me contou sobre ela. Sinto muito pela sua perda. E eu pela sua.

 Ele a olhou diretamente pela primeira vez. Clarice me contou sobre sua mãe, sobre o resto também. Lorena sentiu as lágrimas ameaçarem, mas as conteve. A diferença é que a senhora perdeu alguém que amava”, disse tentando manter a voz firme. “Eu descobri que desperdicei 4 anos da minha vida com alguém que nunca me amou de verdade. Dor é dor”, Cásio. Respondeu com simplicidade.

 “Não importa a origem”. Ele estendeu a cuia de chimarrão para ela. Lorena olhou para o gesto surpresa. Clarice havia explicado que o chimarrão era sagrado no sul, que compartilhá-lo era sinal de confiança. Com mãos trêmulas, ela aceitou a cuia. e tomou um gole.

 Era amargo, forte, quente, diferente de tudo que já tinha provado. “Obrigada”, disse devolvendo. “Não me agradeça. Só não faça eu me arrepender de confiar em você com meu cavalo.” Mas havia um fantasma de sorriso em seus lábios quando disse isso. Lorena voltou para o quarto com o coração batendo de forma estranha e enquanto se deitava olhando para o teto escuro, percebeu que pela primeira vez em semanas não estava pensando em Caio ou em sua mãe.

 Estava pensando em olhos escuros e uma cuia de chimarrão compartilhada sob o luar, e isso a assustava mais do que qualquer outra coisa. Tormenta estava de pé na manhã seguinte, exatamente como Lorena Previra. Quando Cásio entrou no galpão e viu o cavalo campeão comendo tranquilamente, algo no ar mudou. Ele não disse nada, apenas assentiu para Lorena antes de sair, mas seu Jacinto rio baixinho.

 Patrão não elogia ninguém com palavras, guria, mas aquele aceno é o diploma de veterinária da fazenda. A partir daquele dia, Lorena começou a trabalhar, não porque Cásio pedisse, mas porque não conseguia ficar parada. revisou todo o rebanho, atualizou as carteiras de vacinação, organizou o arsenal veterinário que estava uma bagunça.

 Os peões, inicialmente céticos com a doutora da cidade, passaram a respeitá-la quando viram sua dedicação e conhecimento. E Cáio, Cásio, começou a aparecer mais. Não de forma óbvia, mas Lorena notava. Ele surgia no curral onde ela estava trabalhando, fazendo perguntas técnicas sobre o gado. Pedia sua opinião sobre um bezerro doente.

Chamava-a para acompanhá-lo em vistorias pelos potreiros distantes. Durante essas viagens de caminhonete pelos campos, eles conversavam pouco no início apenas sobre trabalho, mas gradualmente as conversas derivavam. Cássio falava sobre a Terra, sobre como cada hectare tinha história.

 Lorena falava sobre São Paulo, sobre a faculdade, sobre pequenas coisas que não doíam tanto lembrar. Nunca falavam sobre Isadora ou sobre Caio. Esses nomes eram feridas ainda expostas demais. Clarice observava tudo com satisfação. “Você está fazendo bem pro meu pai”, disse uma tarde enquanto preparavam salada na cozinha para dona Neusa. “Faz anos que não o vejo tão presente.

” Lorena sentiu o rosto esquentar. “Só estou fazendo meu trabalho.” Claro. Clarice sorriu de forma marota. “E eu sou rainha da Inglaterra.” Foi então que o céu escureceu. Os temporais na Serra Gaúcha eram lendários, mas Lorena nunca tinha visto nada assim. O céu ficou negro em questão de minutos, os ventos uivaram e a chuva veio como uma parede sólida de água.

 Merda! Cássio entrou correndo na casa encharcado. O gado Angos está preso no potreiro norte. A porteira cedeu com o vento. Quantas cabeças! Seu Jacinto apareceu atrás dele, igualmente molhado. 30. E a temperatura está caindo rápido. Se não tiramos eles de lá, vamos perder metade com hipotermia. Eu vou. Lorena se levantou antes de pensar.

 Todos olharam para ela. Não. Cásio disse firme. É perigoso demais. Eu sou veterinária. Sei reconhecer sinais de hipotermia em gado. Vocês vão precisar de mim. Lorena. Clarice começou preocupada, mas Lorena já estava se movendo, pegando um poncho de chuva do cabideiro. Não tem tempo para discutir. Vamos. Algo brilhou nos olhos de Cássio.

 Admiração, talvez, ou algo mais perigoso. Jacinto. Pega mais três peões. Vamos. A viagem até o potreiro norte foi uma batalha contra os elementos. A chuva açoitava o para-brisa da caminhonete, o vento sacudia o veículo e a temperatura despencava enquanto avançavam. Lorena segurava firme no banco, o coração disparado.

 Parte por medo, parte por uma adrenalina estranha. Quando chegaram, o cenário era caótico. O gado angos, animais enormes e valiosos, estava agrupado em um canto do potreiro, visivelmente estressado. A porteira tinha caído bloqueada por um galho gigante. Precisamos conduzi-los pela porteira lateral. Cássio gritou sobre o barulho do temporal. Lorena, você fica na retaguarda. Vai indicando se algum animal está em perigo.

 O trabalho foi brutal. Os peões montados em cavalos valentes conduziam o gado lentamente, enquanto Lorena percorria o grupo a pé, examinando cada animal. Dois bezerros já mostravam sinais de hipotermia, tremores, fraqueza nas pernas. “Ess dois não vão conseguir caminhar até a sede”, ela gritou para Cásio. Ele não hesitou.

 Desceu do cavalo, pegou um dos bezerros nos braços, como se pesasse nada, e o colocou na traseira da caminhonete. “Pega o outro! Lorena tentou levantar o segundo bezerro, mas ele era pesado demais. De repente, braços fortes se juntaram aos dela. Cáio, voltando depois de depositar o primeiro, ajudou-a a erguer o animal. Por um segundo, seus rostos ficaram a centímetros de distância. A chuva escorria por ambos.

 O frio cortante mordia suas peles, mas algo quente e perigoso passou entre eles. Os olhos de Cásio, normalmente distantes, queimavam com uma intensidade que fez Lorena esquecer de respirar. “Vamos”, ele disse rouco, afastando-se rapidamente. Levou 3 horas para conduzirem todo o rebanho até os galpões cobertos.

 Quando finalmente terminaram, todos estavam exaustos, encharcados até os ossos, tremendo de frio. Dona Neusa já tinha preparado café quentíssimo e cachaça artesanal. Vão se esquentar antes que peguem pneumonia. Os peões se amontoaram no galpão, brindando ao sucesso da operação.

 Cássio serviu doses de cachaça para todos e quando chegou em Lorena, seus dedos roçaram-nos dela ao passar o copinho. “Bom trabalho”, disse simplesmente, “mas era o suficiente. Vindo dele, aquelas duas palavras valiam um discurso inteiro. Lorena tomou a cachaça de um gole, sentindo o líquido queimar garganta abaixo, espalhando calor por seu corpo trêmulo. ao redor.

 Os peões riam e contavam histórias, mas ela só conseguia focar em Cásio do outro lado do galpão, também bebendo, também observando-a. Quando seus olhos se encontraram, algo não dito passou entre eles. Algo perigoso, algo que nenhum dos dois estava pronto para nomear.

 Mas Lorena sabia, com cada fibra do seu ser molhado e cansado, que algo tinha mudado naquele temporal. Uma linha tinha sido cruzada, mesmo que nenhum dos dois tivesse se movido. E enquanto Clarice a arrastava de volta para a casa, para um banho quente, Lorena olhou para trás uma última vez. Cásio ainda estava lá parado sob a chuva que diminuía, observando-a partir, e o peso daquele olhar a acompanharia pelos dias que viriam crescendo, se intensificando, até que se tornasse impossível de ignorar.

 Duas semanas se passaram desde o temporal, e a tensão não dita entre Lorena e Csio crescia como uma tempestade silenciosa. Eles não falavam sobre aquele momento no potreiro, sobre o olhar que compartilharam, sobre a eletricidade que cruzou o espaço entre seus corpos encharcados, mas estava lá em cada encontro casual no corredor da casa, em cada vez que suas mãos roçavam ao passar documentos do gado, em cada noite quando Lorena descia para a cozinha e via a silhueta dele na varanda, sempre sozinho com seu chimarrão, e tinha que lutar contra a vontade de se juntar a ele.

Clariss notava, é claro, mas interpretava de forma diferente. “Você está fazendo bem para ele, sabe?”, disse uma tarde enquanto penteavam os cavalos. “Papai está diferente, mais leve.” Até dona Neusa comentou que ele voltou a comer direito.

 Lorena concentrou-se nas crinas do cavalo, incapaz de encontrar o olhar da amiga. “Fico feliz em ajudar. Estevão vem no final de semana.” Clarice mudou de assunto, animada. finalmente vai conhecer você e vai ter um churrasquinho aqui na fazenda. Nada muito grande. Vai ser legal, Estevão. O noivo de Clarice. Lorena tinha ouvido falar dele, mas nunca conhecera pessoalmente. Pela forma como Clarice falava, ele parecia perfeito.

 Advogado bem-sucedido em Porto Alegre, vinha de família tradicional gaúcha, tinha até comprado um apartamento para depois que se casassem. O final de semana chegou com um céu limpo e temperatura amena. Estevão apareceu dirigindo um SUV preto reluzente, todos sorrisos e confiança. Era bonito de forma convencional, alto, cabelos bem cortados, roupas caras, tentando parecer casuais. Então você é a famosa Lorena.

 Ele a abraçou sem pedir licença. Clarice, não para de falar de você. Havia algo em seu sorriso que não chegava aos olhos. Lorena não soube dizer o quê, mas um desconforto se instalou em seu estômago. O churrasco começou no meio da tarde. Os peões se juntaram à família, como era tradição na fazenda.

 Seu Jacinto assumiu o comando do fogo, assando costelas enormes na churrasqueira de tijolo. Dona Neusa trouxe saladas, arroz, farofa, cachaça e cerveja circulavam livremente. Cásio estava mais relaxado do que Lorena já vira. Ele conversava com os peões, ria de piadas. Até aceitou fazer um brinde quando Estevão levantou seu copo para a melhor fazenda do Rio Grande do Sul.

 Mas Lorena percebeu algo, a forma como Estevão tratava Clarice, sempre com a mão em sua cintura, sempre respondendo por ela, sempre direcionando a conversa. Havia a possessividade ali, disfarçada de carinho. Então, Lorena Estevão se aproximou dela perto da churrasqueira. copinho de cachaça na mão. Clarice me contou sobre seu infortúnio.

 Lamento muito. A forma como disse infortúnio, soou condescendente. Obrigada, ela respondeu curta. Mas deve ser bom estar aqui, né? Longe de tudo, tipo um retiro espiritual. Ele riu. Claro que não deve ser fácil viver de favor, mas Cásio é generoso. As palavras foram como um tapa.

 Lorena sentiu o sangue subir ao rosto, mas antes que pudesse responder, uma voz grave cortou o ar. Lorena não vive de favor. Cásio apareceu ao lado deles, o rosto sério. Ela trabalha aqui e trabalha melhor que metade dos veterinários que já contratei. Estevão ergueu as mãos em rendição, rindo. Claro, claro. Não quis ofender. É que advogado vê tudo em termos contratuais, sabe como é, mas o dano estava feito.

Lorena sentiu o peso da verdade em suas palavras. Ela realmente vivia de favor, dependente da bondade de Clarice e tolerada por Cáio. Afastou-se do grupo, caminhando até a margem do açude que ficava atrás da casa. Sentou-se na grama, abraçando os joelhos, observando o reflexo do pô do sol na água. “Ele é um idiota”, a voz de Cásio a fez pular.

Ele se aproximou silenciosamente, sentando-se ao seu lado na grama, mantendo uma distância respeitosa. Estava sendo educado, na verdade. Lorena disse amargamente. É verdade. Eu não tenho onde ficar. Não tenho dinheiro. Não tenho. Não termina essa frase. Cásio a interrompeu, a voz firme. Você tem conhecimento, tem coragem, tem valor. E se um dia quiser ir embora, será porque decidiu, não porque eu mandei.

 Lorena olhou para ele, surpresa com a intensidade em suas palavras. Por que está sendo tão gentil comigo? Cásio desviou o olhar para o açude, a mandíbula tensa. Porque eu reconheço alguém que está tentando sobreviver depois de perder tudo. E por ele parou. como se lutasse com as palavras, porque faz tempo que não tinha motivo para acordar de manhã além da obrigação.

 O coração de Lorena falhou uma batida e agora tem. Ele a olhou então diretamente e naqueles olhos escuros ela viu uma verdade aterrorizante. Agora eu fico pensando o que você vai dizer no café da manhã. Como vão estar seus olhos quando eu voltar do campo? Se vai estar na varanda à noite quando eu descer para tomar chimarrão. O ar entre eles ficou carregado, pesado.

 Lorena sabia que deveria se levantar, se afastar, dizer que isso era errado. Impossível. Ele era 24 anos mais velho. Era o pai de sua melhor amiga. Era viúvo, ainda de luto, mas ela não conseguia se mover. Cássio, sussurrou. Eu sei. Ele passou a mão pelo cabelo frustrado. Eu sei que não devia falar isso, que não é certo, não é apropriado, mas tu me deixa louco, Lorena. Me deixa louco de formas que não devia permitir.

 Ele usara tu pela primeira vez, a intimidade do pronome gaúcho, removendo a última barreira formal entre eles. Lorena sentiu lágrimas queimar em seus olhos. Eu também, admitiu a voz quebrando. Eu também fico pensando em você e me odeio por isso. Clarice é minha melhor amiga. Você é o pai dela. Eu não devia, mas devia. Cássio completou sombrio. Porque tá acontecendo? E eu não sei como parar.

Eles ficaram ali sentados lado a lado, mas sem se tocar, observando o sol se pôr, e pintando o céu de roxo e laranja, dois náufragos presos em uma tempestade que eles mesmos criaram. De volta ao churrascu, a festa continuava, mas quando Lorena e Cásio retornaram, separadamente, cuidadosamente, algo no ar tinha mudado.

 E Estevão, observando da varanda com olhos calculistas, tomou um gole de sua cerveja e sorriu para si mesmo. Ele tinha visto algo que ninguém mais notara, e esse conhecimento ele sabia poderia ser muito útil. À noite, quando todos já tinham ido dormir, Lorena ouviu um som que não escutava há semanas. desceu as escadas silenciosamente e encontrou Cásio na sala, sentado com uma gaita nas mãos.

 A melodia que ele tocava era triste, melancólica, mas bela. Falava de saudade, de campos vazios, de corações partidos. Ele parou quando a viu na porta. Desculpa se acordei. Você não acordou? Eu não estava conseguindo dormir mesmo. Cássio observou a gaita em suas mãos. Não tocava desde que Isadora. Ele não terminou. Ela adorava quando eu tocava. Lorena deveria ter voltado para o quarto.

 Deveria ter respeitado a distância, mas em vez disso atravessou a sala e sentou no sofá ao lado dele. Continue tocando, por favor. Ele hesitou, mas então levou a gaita aos lábios novamente. E enquanto a música enchia a sala escura, Lorena fechou os olhos e permitiu-se sentir, sentir a dor da perda, sentir a confusão do presente, sentir o perigo do que estava crescendo entre eles.

 E quando a música terminou e eles ficaram sentados no escuro, tão perto que podiam ouvir a respiração um do outro, Lorena soube que tinha passado do ponto sem retorno. Eles não tinham se tocado. Não tinham se beijado, mas já tinham se entregado de todas as formas que importavam. E isso, Lorena Temia, seria a ruína de todos eles. A bomba caiu durante o café da manhã de uma quinta-feira ensolarada.

 “Pai, preciso ir para Porto Alegre”, Clarice anunciou passando geleia em seu pão. “O Stevão encontrou uns apartamentos que podem dar certo e quer que eu veja antes de fechar negócio. Vamos ficar duas semanas por lá.” O garfo de Lorena parou no ar. Duas semanas. Clarice ia ficar duas semanas fora, deixando ela e Cásio sozinhos na fazenda. Bem, não tecnicamente sozinhos.

Havia dona Neusa, seu Jacinto, os outros peões, mas sem Clarice como buffer entre eles, sem sua presença para lembrar ambos de todos os motivos pelos quais o que sentiam era impossível. Duas semanas. Cássio também parecia tenso, embora tentasse esconder. É muito tempo, filha, eu sei, mas preciso resolver isso logo.

 E Estevão já pegou folga no escritório. Clarice olhou para Lorena com culpa. Você fica bem aqui, né? Ajudando meu pai com o gado. O que Lorena poderia dizer? Não, porque estou apaixonada pelo seu pai e temo o que vai acontecer se ficarmos sozinhos. Claro. Ela forçou um sorriso. Pode ir tranquila.

 Cássio não disse nada, apenas tomou seu chimarrão em silêncio, mas Lorena viu a tensão em seus ombros. Clarice partiu naquela mesma tarde. Estevão buzinando impaciente do lado de fora enquanto ela se despedia. Qualquer coisa, me liga. Ela abraçou Lorena apertado. E cuida do meu pai para mim. Ele finge que é durão, mas não é.

 Depois que o carro desapareceu pela estrada de terra, Lorena ficou parada no pátio, sentindo o peso do que estava por vir. Os primeiros dias foram cuidadosamente normais. Lorena trabalhava com o gado durante o dia, evitando ficar muito tempo perto de Cáio. Eles se falavam apenas sobre assuntos profissionais, um bezerro que precisava de atenção, vacinas que estavam acabando acerca do potreiro sul que precisava de conserto, mas as noites eram tortura.

 Lorena tentava ficar em seu quarto, mas a insônia a perseguia e toda vez que descia para a cozinha buscar água, lá estava ele na varanda com seu chimarrão observando a noite. Foi no quarto dia que a distância educada começou a rachar. Lorena estava no galpão veterinário, organizando medicamentos quando Csio entrou. Ela sentiu sua presença antes de vê-lo. O ar mudava quando ele estava perto.

 “Preciso que venha comigo amanhã”, disse ele, a voz tensa. “Vou buscar um reprodutor Angos em uma fazenda perto de Caxias do Sul. Quero que você avalie ele antes de fechar negócio.” “Caxias do Sul?” Lorena se virou, “Mas isso é longe. Vamos ter que sair bem cedo e voltar tarde.” Ele concordou, os olhos fixos nela.

 “Vai ser um dia inteiro, só nós dois”. O aviso estava claro na voz dele. Era uma linha que não deviam cruzar, um risco que não deviam correr. Ok, Lorena disse, mesmo sabendo que era má ideia, partiram antes do amanhecer. A caminhonete cortava a estrada ainda escura, os faróis iluminando a névoa que cobria os campos.

 Cásio dirigia em silêncio, as mãos firmes no volante, a mandíbula tensa. “Você não precou ir”, disse depois de uma hora. Posso avaliar o animal sozinho. Eu sei. Então por que aceitou? Lorena olhou para ele no escuro. Porque você também não precisa de mim lá? Você conhece Gado melhor que qualquer veterinário. Então por que me convidou? Cásio não respondeu, mas seus dedos apertaram o volante com mais força.

 A fazenda em Caxias do Sul era imponente e o reprodutor Angos era perfeito. Genética impecável, saúde exemplar. Lorena deu sua aprovação profissional. Cásio fechou o negócio e às 3 da tarde já estavam voltando. Foi quando começou a chover. Não era temporal como aquele dia no potreiro. Era chuva fina, persistente, que reduzia a visibilidade e tornava as estradas escorregadias.

Cássio dirigia devagar, concentrado. Vai demorar mais que o previsto para chegar, disse. Podemos parar em um restaurante, jantar antes de seguir. Pararam em uma cidade pequena, em um restaurante de beira de estrada que servia comida caseira. O lugar estava quase vazio por causa do horário.

 Sentaram em uma mesa no canto e a dona trouxe pratos enormes de galinha ensopada, arroz, batatas. Foi a primeira vez que comeram juntos, só os dois, sem a fazenda, sem Clarice, sem as obrigações que os definiam. E foi aterrorizante quão natural parecia. Conversaram sobre tudo e nada. Cássio falou sobre sua infância na fazenda, sobre como assumira o negócio aos 20 anos quando o pai morreu.

 Lorena falou sobre São Paulo, sobre a faculdade, sobre sonhos que teve antes que tudo desmoronasse. “Você queria ter seu próprio consultório?”, ele perguntou. Tomando vinho tinto que a dona insistira em servir. Queria uma clínica especializada em grandes animais. Tinha até começado a guardar dinheiro. Ela riu amargamente.

 Até Caio esvaziar minha conta. A mandíbula de Cásio ficou tensa ao ouvir o nome. Ele era idiota. Qualquer homem que larga você não merece ar nos pulmões. O comentário foi tão direto, tão intenso, que Lorena ficou sem palavras. Cáio, não. Ele se inclinou para a frente. Deixa eu falar isso. Tu tem que saber. Você é incrível, Lorena. Inteligente, corajosa, forte.

 E qualquer homem que tem você e não vê isso é um cego completo. Os olhos dele queimavam e Lorena sentiu o ar faltar. E você vê? Sussurrou. Me vê? Vejo. Deus me perdoe, mas vejo. Vejo tudo. E queria não ver, porque só traz complicação, mas não consigo parar. A dona escolheu aquele momento para trazer a sobremesa, quebrando atenção.

 Eles comeram doce de leite em silêncio carregado. Quando voltaram para a caminhonete, a chuva tinha aumentado. Cásio ligou o motor, mas não saiu do lugar. Lorena disse as mãos ainda no volante. Quando chegar em casa, Neil preciso manter distância. Isso aqui, seja o que for, não pode acontecer.

 Por quê? Ela perguntou, mesmo sabendo todas as razões. Porque tenho 51 anos e você 27. Porque sou viúvo e deveria estar de luto. Porque sou pai da sua melhor amiga. Porque toda a região vai nos julgar. Porque? Porque é errado de todas as formas que importam. Lorena sentiu lágrimas queimarem.

 E se a gente não ligar para isso, a gente tem que ligar. Clarice tem que ligar. Ele finalmente olhou para ela. Eu não posso perder minha filha, Lorena. Ela é tudo que me sobrou de Isadora. Era a verdade crua e dolorosa. E Lorena sabia que ele estava certo. OK. Sussurrou. distância, então. Mas quando Cio estendeu a mão para o câmbio, ela cobriu aquela mão com a sua apenas por um segundo, um toque breve, quase acidental, mas foi o suficiente para ambos sentirem a eletricidade que corria entre eles.

Impossível de negar. Cásio puxou a mão como se tivesse sido queimado e colocou o carro em movimento. A viagem de volta foi em silêncio absoluto, mas dentro da cabine a tensão era tão espessa que poderia ser cortada com faca. Quando finalmente chegaram na fazenda, já passava da meia-noite.

 Lorena desceu da caminhonete e correu para a casa sob a chuva, sem olhar para trás. Mas antes de entrar, ela o ouviu chamar seu nome. Virou-se. Cásio estava parado na chuva. encharcando os olhos fixos nela. “Eu tentei”, disse a voz rouca. Deus sabe que tentei não sentir isso. E então ele deu meia volta e caminhou em direção aos galpões, deixando Lorena parada sob a chuva, o coração despedaçado em seu peito, porque ambos sabiam a verdade.

Não importava quanto tentassem manter distância, não importava quantas razões tinham para não se renderem. Já era tarde demais. O que quer que fosse isso entre eles, já tinha raízes profundas demais para serem arrancadas. E quando finalmente explodisse, não era mais questão de si, mas de quando, as consequências seriam devastadoras.

 Os dias seguintes foram uma dança cuidadosa de proximidade e distância. Lorena e Csio mantinham a distância prometida durante o dia. Conversas estritamente profissionais, olhares evitados, nenhum contato físico acidental, mas as noites continuavam sendo um campo minado.

 Lorena tentava, tentava mesmo ficar em seu quarto, mas a insônia era cruel e toda vez que descia, lá estava ele. E toda vez a conversação que juraram evitar acontecia naturalmente. Falavam sobre tudo, sobre a fazenda, sobre o passado, sobre medos e sonhos, tudo, exceto sobre o elefante gigante na sala, o que sentiam um pelo outro. Foi em uma dessas noites, exatamente nove dias após Clarice partir, que tudo mudou.

 Lorena desceu por volta da 1 da manhã e encontrou Cásio na varanda, mas algo estava diferente. Ele tinha uma garrafa de cachaça ao lado e o copo estava pela metade. Seus olhos, normalmente controlados estavam perturbados. Cáio, aconteceu algo? Ele levantou o copo em um brinde amargo. Recebi uma ligação hoje.

 Empresários de Porto Alegre querendo comprar 2.000 haares da fazenda para fazer loteamento de luxo. Ofereceram uma fortuna. Lorena sentou ao seu lado, preocupada. E você vai vender? Claro que não. Ele tomou um gole. Essa terra é da minha família há quatro gerações. Meu bisavô desbravou esses campos. Meu avô expandiu, meu pai manteve. E Isadora, sua voz falhou.

 Isadora adorava cada centímetro dessa fazenda. Está enterrada aqui na colina onde ela gostava de ver o pôr do sol. Lorena não sabia disso. Clarice nunca mencionara. Mas os empresários não aceitam não como resposta. Cásio continuou amargo. Disseram que vão encontrar formas de me pressionar, que a agricultura está em crise, que eu vou precisar do dinheiro eventualmente. Bastardos. Ele riu sem humor.

 É o mundo agora. Tudo é dinheiro, lucro, desenvolvimento. Ninguém liga pra tradição, pra história, pra terra que tem alma. Lorena colocou a mão em seu ombro, um gesto de conforto que imediatamente se sentiu mais íntimo do que pretendia. “Você não vai perder essa fazenda. Não enquanto tiver fôlego.” Cásio olhou para ela e nos olhos dele havia algo selvagem, desesperado.

 “Às vezes eu me sinto tão cansado, Lorena. Cansado de lutar sozinho, cansado de ser forte, cansado de de quê? De ficar sozinho.” Sussurrou. Faz 10 anos que durmo numa cama vazia. 10 anos que acordo sem ter ninguém para dividir as coisas. E eu achava que tava bem assim, que tinha me acostumado até você chegar e bagunçar tudo.

 O coração de Lorena disparou. Eu bagunço, tu me desmancha por dentro. Ele disse cru. Me faz querer coisas que não posso ter. Me faz sentir vivo de novo. E isso dói mais que adormência, porque sei que não posso te ter. Lorena deveria ter se levantado naquele momento. Deveria ter voltado para dentro, colocado distância. lembrado de todas as razões pelas quais isso era impossível.

 Mas em vez disso, sua mão subiu para o rosto dele, acariciando a barba rala que ele mantinha bem feita. E se eu também quero? Os olhos de Cássio se fecharam com seu toque, como se fosse doloroso. Não diz isso? Por que não? É verdade. Eu também sinto, Cásio. Também não consigo parar de pensar em você. Também não durmo mais direito também. Ele segurou seu pulso, mas não a afastou.

 Apenas segurou seu polegar, acariciando a parte interna de seu pulso, onde o pulso batia descontrolado. “Tu tem 27 anos, tem a vida toda pela frente. Eu sou um viúvo amargo com 51 anos, preso numa fazenda perdida na serra. Você não é amargo e não está preso. E eu não ligo pra diferença de idade. Clarice vai ligar, o mundo vai ligar. Eu não ligo pro mundo.

Eles ficaram assim congelados no tempo, mãos conectadas, olhares presos, respirações misturadas no ar frio da noite. E então o telefone de Cásio tocou, quebrando o momento como vidro estilhaçado. Era Clarice. Filha. Cásio. Atendeu sua voz imediatamente voltando ao tom paternal. Tudo bem? É tarde, aconteceu algo.

 Lorena não conseguia ouvir o outro lado, mas viu a expressão de Cássio mudar de preocupação para alívio, depois para algo mais suave. Que bom, filha. Fico feliz que gostou dos apartamentos. Pausa. Sim, tá tudo bem aqui. Lorena tem cuidado de tudo perfeitamente. Ele olhou para Lorena quando disse isso e algo no olhar fez seu estômago revirar. Tá, filha.

 Boa noite. Te amo. Quando desligou, o momento tinha passado. A realidade tinha voltado na forma da voz de Clarice, lembrando ambos do que estava em jogo. Ela estava feliz. Cássio disse guardando o telefone. Acho que vai fechar o apartamento. Vai se mudar para Porto Alegre depois do casamento. Isso é bom para ela. É. Ele concordou, mas havia tristeza em sua voz. Mas significa que vou ficar ainda mais sozinho aqui.

Lorena quis dizer, você não precisa ficar sozinho. Quis dizer, eu estou aqui quis dizer tantas coisas que ficaram presas em sua garganta. Em vez disso, apenas ficou sentada ao seu lado, até o céu começar a clarear com o amanhecer.

 E quando finalmente se levantou para voltar para dentro, Csio segurou sua mão uma última vez. “Obrigado”, disse simplesmente. “Pelo quê? por me fazer lembrar como é não estar sozinho, mesmo que seja só por um momento, mesmo que não possa ser mais que isso, Lorena subiu para seu quarto com lágrimas escorrendo pelo rosto, porque ambos sabiam a verdade. Momentos não eram suficientes, mas talvez fossem tudo o que poderiam ter.

 Clarice voltou depois de exatamente 15 dias, radiante e cheia de planos. tinha fechado um apartamento lindo em Porto Alegre. já estava encomendando móveis falando sobre a data do casamento. Lorena forçava sorrisos e acenava nos lugares certos, mas por dentro estava se despedaçando, porque com Clarice de volta, aquelas conversas noturnas com Cásio terminaram abruptamente.

 Ele voltou a ser distante, educado, o patriarca controlado que todos conheciam, como se aquelas duas semanas nunca tivessem acontecido, como se ele não tivesse segurado sua mão sobre as estrelas e confessado sua solidão. Dois dias após o retorno de Clarice, Estevão também apareceu para passar o final de semana e Lorena começou a notar coisas que a incomodavam.

 A forma como ele sempre tocava clarice, não carinhosamente, mas possessivamente, a maneira como controlava as conversas, sempre direcionando para tópicos que o favoreciam, como criticava sutilmente a fazenda, chamando-a de rústica demais, isolada demais, e pior, a forma como olhava para Lorena, não com interesse romântico, mas com algo mais calculista, como se soubesse algo que ninguém mais sabia. Foi durante um churrasco no sábado à noite que Lorena o confirmou.

 Ela tinha saído para pegar algo no galpão quando ouviu passos atrás de si. Virou e encontrou Estevão encostado na porta, um sorriso estranho no rosto. “Vocês dois acham que são discretos”, disse casualmente. “O sangue de Lorena gelou. Não sei do que está falando. Claro que sabe, você e o Cásio.” Ele se aproximou. Eu vi.

 Sabe naquele dia do primeiro churrasco, vocês voltando do açude, a forma como ele olhava para você, a forma como você corava, você está vendo coisas. Não estou. E sabe o que é engraçado? Eu não ligo. Na verdade, acho até conveniente. Lorena o encarou confusa e assustada. Conveniente. Cásio é teimoso, não quer vender a terra, mas homens apaixonados, ele sorriu. Homens apaixonados fazem escolhas estúpidas.

 E se Clarice descobrisse que o pai está se envolvendo com a melhor amiga dela, bem, seria o tipo de escândalo que racharia a família. E terras de famílias rachadas são vendidas mais facilmente. A náuseia subiu pela garganta de Lorena. Você é nojento. Sou prático. Ele corrigiu. Mas não se preocupe, seu segredinho está seguro por enquanto.

 Contanto que Cásio seja razoável quanto às ofertas que vão continuar chegando. Ele saiu do galpão assobiando, deixando Lorena tremendo de raiva e medo. Ela precisava contar a Cássio. Precisava avisá-lo sobre Estevã. Mas como fazer isso sem revelar que havia realmente algo para Estevão ter visto? A oportunidade veio três dias depois, quando Clarice e Estevan foram a uma fazenda vizinha para um evento social. Lorena alegou dor de cabeça e Csio disse que tinha trabalho.

 Assim que o carro desapareceu pela estrada, Lorena foi direto ao escritório dele. Cásio estava atrás da mesa, revisando papeladas quando ela entrou sem bater. “Precisamos conversar.” Ele levantou os olhos surpreendido. “Lorena é sobre Estevã. Ele sabe ou acha que sabe e está usando isso como manipulação. Levou 15 minutos para ela contar tudo.

 A conversa no galpão, as ameaças veladas, o interesse dele em forçar a venda da fazenda. Quando terminou, Cássio estava de pé, as mãos apoiadas na mesa, o rosto contorcido de raiva. Aquele filho da mãe, Cásio, ele pode contar para Clarice. Pode destruir tudo, mesmo que não haja nada realmente acontecendo entre nós. Ele deu a volta na mesa, aproximando-se dela.

 Mas há, não é algo acontecendo entre nós. Lorena não conseguiu negar. Sim. Ele ficou parado na frente dela, tão perto que ela podia sentir o calor de seu corpo. E isso me deixa louco, porque não sei o que fazer, não sei como parar, não sei como fingir que não sinto o que sinto. Então, não finge. Foi Lorena quem fechou a distância. Foi Lorena quem puxou seu rosto para baixo.

 Foi Lorena quem o beijou primeiro. Mas foi Csio quem aprofundou o beijo, quem a puxou contra seu corpo, quem gemeu dentro de sua boca como se estivesse morrendo de sede e ela fosse água. O beijo foi desesperado, faminto, carregado de semanas de tensão reprimida. As mãos dele enterraram-se em seus cabelos, segurando-a como se temesse que ela fosse desaparecer.

 As mãos dela agarraram sua camisa, puxando-o para mais perto, sempre mais perto. Quando finalmente se separaram por falta de ar, ambos estavam tremendo. Deus me perdoe. Cássio sussurrou contra seus lábios. Deus me perdoe, mas eu te quero. Quero você de formas que não sei nem nomear. Então me tem. Lorena implorou. Por favor, Cássio, eu não aguento mais fingir.

 Ele a beijou novamente, mais suave dessa vez, mas não menos intenso. E quando as mãos dele deslizaram por suas costas, quando ela sentiu o quanto ele a desejava, soube que não havia volta. Tinham cruzado a linha, mas então a porta da frente bateu. Eles se separaram como se tivessem sido eletrocutados. Clarissão tinham voltado mais cedo. O evento fora cancelado. Pai, Lorena.

 A voz de Clarice ecoou pela casa. Cásio e Lorena se olharam, terror nos olhos de ambos. Os lábios dela estavam inchados, o cabelo dele bagunçado onde suas mãos tinham estado. “Vai”, ele sussurrou. “Eu falo que estava revisando papelada”.

 Lorena assentiu e saiu pela porta lateral do escritório, correndo para os fundos da casa e entrando pela cozinha como se estivesse vindo de lá. Mas quando cruzou com Estevan no corredor, o sorriso no rosto dele disse tudo. Ele não tinha visto, mas suspeitava. E a caçada tinha apenas começado. A culpa era um bicho que mordia fundo. Lorena mal conseguia olhar para Clarice nos dias seguintes.

 Cada sorriso da amiga, cada abraço despreocupado, cada você é como uma irmã para mim era uma lâmina cortando seu coração. Cássio também evitava todos. passava dias inteiros nos campos, voltando apenas para dormir. Quando cruzavam na casa, ele desviava o olhar à mandíbula tensa. Foi dona Neusa quem notou primeiro. Vocês dois brigaram? Perguntou uma manhã enquanto Lorena ajudava a descascar batatas.

 Quem? Você e o patrão. Antes conversavam, agora mal se olham. Só estamos ocupados. A cozinheira fez um ruído descrente, mas não insistiu. A verdade era que ambos estavam apavorados. O beijo tinha sido um erro, um erro maravilhoso, devastador, impossível de esquecer. Lorena revivia aquele momento constantemente, a sensação dos lábios dele, o gosto de chimarrão e desejo, a forma como a segurou como se ela fosse preciosa, mas a culpa era mais forte que a saudade, até que aconteceu o incêndio. Foi um domingo abafado de novembro, com

céu fechado e ar pesado. Clarice e Estevon tinham ido visitar fazendas vizinhas e não voltariam até a noite. Lorena estava no galpão veterinário, organizando estoques quando ouviu os gritos. Fogo! Fogo no galpão de feno. Ela correu para fora e viu chamas alaranjadas subindo do maior galpão de armazenamento, onde ficavam toneladas de feno seco para alimentar o gado no inverno.

 Se aquilo queimasse tudo, seria prejuízo catastrófico. Os peões já estavam em ação, puxando mangueiras, gritando ordens. E no meio de tudo, Csio organizava as equipes com precisão militar. Jacinto, pega aquela lateral. Nico molha o telhado do galpão vizinho. Não deixa as chamas se espalharem, mas era uma batalha perdida.

 O fogo crescia mais rápido do que conseguiam controlar, alimentado pelo feno seco e pelo vento que começava a soprar. “Cásio, seu Jacinto!” gritou. Tem três bezerros presos na baia do fundo. A fumaça tá muito forte. Sem hesitar, Cásio correu em direção ao galpão em chamas. Não! Lorena gritou, mas ele já tinha entrado. Ela não pensou. Pegou um pano molhado que um peão estava usando, cobriu a boca e o nariz e correu atrás dele.

 A fumaça dentro do galpão era densa, sufocante. Lorena mal conseguia ver a metro de distância. Seguiu o som de berros assustados dos bezerros até encontrar a baia no fundo e então viu Cásio, tentando abrir o portão que tinha emperrado com o calor, torcindo violentamente, as chamas se aproximando perigosamente. “Sai daqui”, ele gritou quando a viu.

 “Não, sem você juntos, usando força bruta, conseguiram forçar o portão. Os três bezerros saíram em disparada. Cásio empurrou Lorena na direção da saída. Vai!” Mas quando estavam quase lá, parte do telhado cedeu atrás deles com estrondo terrível, bloqueando a saída principal. As chamas agora cercavam todos os lados.

 Por aqui, Lorena viu uma janela lateral. Era pequena, mas era chance. Cásio a ergueu primeiro, empurrando-a através da abertura. Ela caiu do outro lado, engasgando com ar puro. Então, virou para ajudá-lo. Mas ele era maior, tinha dificuldade para passar. Com força que não sabia que tinha, Lorena o puxou enquanto outros peões vinham ajudar.

Finalmente ele atravessou, caindo no chão ao lado dela no momento em que o resto do telhado desabava atrás deles. Ambos ficaram deitados no chão, tcindo, cobertos de fuligem, respirando ofegantemente. E então Cásio se virou para ela, os olhos selvagens. Você é louca, podia ter morrido. E você achou que eu ia deixar você morrer aí dentro? Eles gritaram um com o outro até que não tinham mais ar, até que as palavras viraram lágrimas, até que Cásio a puxou para um abraço desesperado ali mesmo no meio do pátio, com todos os peões observando. “Não faz isso nunca mais”,

ele sussurrou contra seu cabelo. “Não me faz passar por isso de novo.” Lorena tremeu contra ele, finalmente deixando o terror que sentira vir à tona. Os peões e dona Neusa discretamente se afastaram, dando-lhes privacidade no meio do caos. Levou três horas para apagarem completamente o fogo.

 Os bombeiros de Cambará do Sul chegaram quando já estava quase controlado. O galpão foi perda total, mas pelo menos não se espalhou para outras estruturas. Naquela noite, já limpos e tratados para queimaduras leves e inalação de fumaça, Lorena e Csio sentaram na varanda em silêncio exausto. “O fogo foi acidental?”, ela perguntou finalmente.

 Cássio fez uma pausa longa. “Não sei. Jacinto disse que parecia ter começado em vários pontos ao mesmo tempo. Pode ter sido curto circuito, mas ele não completou. Mas ambos pensavam a mesma coisa. Estevão, ele não faria isso, Lorena disse, mas não soou convencida.

 Não sei do que ele é capaz, mas sei que não posso deixar minha filha casar com alguém que estou começando a desconfiar. Você precisa contar para ela sobre as pressões para vender a fazenda, sobre Estevão, sobre sobre nós. Cássio completou, olhando para ela. Como eu conto pra minha filha que me apaixonei pela melhor amiga dela? O coração de Lorena parou. Apaixonei. Você, Cioor. Você ainda não sabia? Achei que tava óbvio. Sou um homem de 51 anos, Lorena.

Achei que não ia mais sentir isso na vida. Achei que tinha morrido junto com Isadora. E aí você apareceu toda quebrada e perdida e me fez sentir de novo. Me fez querer acordar de manhã. Me fez querer viver. As lágrimas escorreram pelo rosto de Lorena. Eu também. Eu também me apaixonei por você e me odeio por isso, porque vai machucar Clarice, porque vai destruir tudo.

 Cásio puxou-a para seus braços e ela se aninhou contra seu peito, ouvindo o coração dele bater forte. Não sei o que fazer, ele confessou. Pela primeira vez em 10 anos não sei qual decisão tomar. Ficaram assim até o amanhecer começar a pintar o céu.

 E quando Clarsa e Estevão chegaram, horrorizados com as notícias do incêndio, encontraram Cásio e Lorena na varanda. cuidadosamente separados novamente, mas algo tinha mudado. E Estevão, observando com olhos calculistas, soube que seu momento estava chegando. A verdade sempre vem à tona. Era apenas questão de tempo. Três semanas se passaram desde o incêndio. As investigações concluíram que foi acidental, um curto circuito no sistema elétrico antigo, mas Cásio não estava convencido. A tensão na fazenda estava palpável.

 Estevão vinha cada vez mais seguido, sempre trazendo propostas de investidores, sempre pressionando Cásio a considerar vender parte das terras. Clarice, sem perceber a manipulação, apoiava o noivo. “Pai, não custa ouvir as propostas”, dizia ela. “Você não precisa vender tudo, mas talvez só uma parte pequena, via a frustração crescer em Cácio.

 Via também como ele evitava ficar a sós com ela, como desviava sempre que suas mãos roçavam acidentalmente, como saía da sala quando ela entrava. Estavam tentando fazer a coisa certa, mas estava matando ambos. Foi em uma manhã de dezembro, com o calor já pesando, que Lorena percebeu algo estava errado. Acordou enjoada, correu para o banheiro e vomitou tudo que tinha comido no jantar anterior.

 Dona Neusa a encontrou sentada no chão do banheiro, pálida. Filha, você está bem? Se é só um mal-estar, deve ser algo que comi. Mas no dia seguinte aconteceu de novo e no terceiro dia, quando estava ajudando no curral e quase desmaiou com o cheiro forte do gado, a verdade a atingiu como um raio. Não podia ser, mas era.

 Fez o teste de farmácia naquela mesma tarde, dirigindo sozinha até Cambará do Sul, as mãos tremendo tanto que quase bateu a caminhonete duas vezes. Positivo. Sentada no banheiro da farmácia, olhando para as duas linhas no teste, Lorena sentiu o mundo girar. Estava grávida. As contas eram simples. Sete semanas atrás, antes de vir para o Rio Grande do Sul, ela e Caio ainda estavam juntos.

 Tinham dormido juntos pela última vez duas noites antes do funeral de sua mãe. O bebê só podia ser de Caio. As lágrimas vieram em ondas. Isso era cruel demais. finalmente tinha encontrado algo real, algo que a fazia querer viver novamente e agora carregava o filho do homem que a traíra, que a roubara, que destruíra sua vida. Como contaria para Cássio, como contaria para Clarice? Demorou três dias para juntar coragem, três dias de vômitos matinais que dona Neusa começava a notar com olhares preocupados. Três dias de Cásio perguntando se estava bem, seus olhos

cheios de uma ternura que partia o coração dela, decidiu contar para Clarice primeiro. Encontrou a amiga no quarto embalando convites de casamento. Cla, preciso falar uma coisa. Clarice olhou para cima, sorrindo. Claro que foi. Lorena se sentou na cama, as mãos tremendo. Eu estou grávida. O sorriso de Clarice congelou. O quê? Estou grávida.

 de Caio deve ter acontecido antes, antes de tudo desmoronar. Clarice largou os convites e puxou Lorena para um abraço apertado. Meu Deus! Meu Deus! Lorena, como você está? O que vai fazer? Não sei. Eu não não esperava, não queria, mas está acontecendo e eu não sei o que fazer.” Clarice segurou seu rosto.

 “Você não está sozinha, ouviu? Você tem a mim, tem meu pai, tem a fazenda. Vamos cuidar de você.” e desce bebê. As lágrimas finalmente caíram. Mas é filho dele, clar, do homem que me traiu, que me roubou. Como vou amar um bebê que me lembra disso tudo? Porque vai ser seu bebê? Não dele, seu. E você vai amar porque é assim que amor funciona.

 Elas ficaram abraçadas por longos minutos, Clarice acariciando o cabelo de Lorena enquanto ela chorava. Mas havia algo que Lorena não podia contar. Não podia dizer que as lágrimas eram também, porque agora tudo com Cássio estava verdadeiramente impossível. Como poderia estar com ele quando carregava o filho de outro homem? Contar para Cássio foi ainda mais difícil.

 Ela o encontrou no escritório naquela noite, revisando livros contábeis. Quando entrou, ele levantou os olhos e sorriu. Aquele sorriso pequeno e raro que reservava só para ela. Lorena, estava pensando em você. As palavras quase a fizeram desistir, mas ela precisava fazer isso. Cáio, preciso te contar algo. Ele deve ter visto algo em seu rosto porque ficou imediatamente sério. O que foi? Está bem? Eu estou a voz falhou.

 Estou grávida. O silêncio que se seguiu foi ensurdecedor. Lorena viu quando a compreensão bateu nele, viu a dor cruzar seus olhos. Viu o momento em que ele fez as contas. De Caio. Não era pergunta. Sim, deve ter acontecido antes de eu vir para cá. Eu não sabia. Juro que não sabia. Csio se levantou, dando as costas para ela, as mãos apoiadas na janela.

 Os ombros dele estavam tensos, a respiração pesada. Você vai decidiu o que vai fazer. Vou ter o bebê. Não sei como. Não sei onde vou morar ou como vou sustentar, mas vou ter. Você mora aqui e vai continuar morando. Você e o bebê. A voz dele estava controlada demais, muito formal. Era a voz que usava quando estava segurando emoções fortes.

 Cássio, vou cuidar de vocês. Ele se virou e os olhos dele estavam úmidos. De você e do bebê. Vou dar tudo que precisarem. Você tem minha palavra. Mas nós, o que estava acontecendo entre nós não pode acontecer mais. Ele completou, a voz quebrada. Eu sei. Você precisa focar no bebê agora. E eu preciso preciso respeitar isso. Lorena cruzou a sala. tocando seu braço.

Eu sinto muito. Eu sinto tanto, Cásio. Eu queria que fosse diferente. Eu queria. Ele cobriu a mão dela com a sua, mas não olhou para ela. Eu também. Mas a vida não dá o que queremos, só o que podemos carregar. E então ele gentilmente afastou sua mão e saiu do escritório, deixando Lorena sozinha, com seu coração partido e uma vida crescendo dentro dela. Naquela noite da janela do quarto, ela ou viu na varanda.

 Ele segurava a gaita, que não tocava à semanas, mas não levou aos lábios. Apenas sentou ali, segurando o instrumento, olhando para o vazio. E Lorena soube que tinha acabado antes mesmo de verdadeiramente começar. O que poderia ter sido, o que nunca seria. Amor impossível é assim, queima forte e morre rápido, deixando apenas cinzas e arrependimento. A notícia da gravidez de Lorena se espalhou rapidamente pela fazenda.

 Dona Neusa começou a fazer chás especiais e comidas leves. Seu Jacinto e os peões tratavam-na como se fosse quebrar a qualquer momento. E Estevão, Estevão ficou muito interessado. Então o ex-namorado traidor ainda deixou um presentinho, né? Comentou durante um jantar. A voz carregada de falsa simpatia. Lorena o encarou friamente. O bebê não é presentinho. É uma vida.

Claro, claro. Ele ergueu as mãos. Só comentei que é complicado você aqui, solteira e grávida. As pessoas da região vão falar. Que falem. Cássio disse. A voz dura. Lorena fica aqui enquanto quiser e quem tem problema com isso pode conversar comigo. O olhar que Estevão dirigiu a Csio foi cheio de cálculo. Os dias se arrastavam em uma nova rotina.

Lorena trabalhava menos, forçada por todos a descansar mais. Via Cásio apenas nas refeições, sempre com outros presentes, nunca sozinhos. Até que Clarice anunciou sua decisão. “Vou ter que antecipar a mudança para Porto Alegre”, disse durante o café da manhã. Estevan conseguiu uma promoção no escritório e o apartamento já está pronto.

 “Vamos nos casar no civil logo e deixar a festa grande para depois”. Lorena sentiu o pânico apertar seu peito. Clarice ia embora. Ia deixá-la sozinha na fazenda com Cásio, mas sem poder ficar com ele. Ia casar com Estevão, aquele homem que Lorena cada vez mais desconfiava. Tão rápido?”, ela conseguiu dizer. “É melhor assim”. E olha, Clarice pegou a mão de Lorena. “Você vem com a gente. Silêncio.

 O quê? Vem morar conosco em Porto Alegre. O apartamento tem três quartos. Você pode ter o seu próprio espaço, ter o bebê lá a ter acesso a hospitais melhores. Vai ser perfeito.” Não. A palavra saiu de Cásio antes que Lorena pudesse responder. Ela não vai. Clarice olhou para o pai surpresa. Por que não? É a solução perfeita, porque Lorena tem trabalho aqui. É a veterinária da fazenda. Preciso dela.

 Havia algo na intensidade de sua voz que fez Clarice olhar entre o pai e a amiga com uma expressão confusa. Pai, você pode contratar outro veterinário. Lorena precisa. Lorena pode decidir por si mesma. Estevão interrompeu aquele sorriso irritante no rosto. Não é, Lorena? Você é uma mulher adulta. Pode escolher onde quer ficar. A tensão na mesa era espessa.

 Lorena olhou para Cásio e viu o desespero mal disfarçado em seus olhos. Se ela fosse embora, seria a coisa certa. Seria seguro. Não haveria tentação, não haveria dor. Mas a ideia de deixá-lo de ir morar com Estevão sob o mesmo teto, de se afastar dos campos que começara a chamar de lar, eu fico disse finalmente. Aqui é onde preciso estar agora.

 Clarice pareceu magoada, mas não insistiu. Stevan, no entanto, olhou para Lorena com algo perigoso nos olhos. Uma semana depois, Clarice partiu. As despedidas foram cheias de lágrimas e promessas de visitas frequentes. Cuida do meu pai para mim, Clarice sussurrou no abraço de despedida. Ele finge que está bem sozinho, mas não está. Eu cuido.

 Quando o carro desapareceu pela estrada, Lorena e Cásio ficaram parados no pátio, a distância entre eles parecendo intransponível. “Você não precisava ficar”, ele disse finalmente, sem olhar para ela. “Eu sei”. “Então, por quê?” Lorena tocou sua barriga, onde uma pequena vida começava a crescer, porque aqui é onde me sinto segura, onde me sinto em casa.

 Finalmente, Cásio olhou para ela e o que Lorena viu em seus olhos quase a desfez. Você sempre vai ter um lar aqui, não importa o que aconteça, prometo. Mas era uma promessa triste, porque ambos sabiam que lar não era suficiente, quando o que realmente queriam era impossível. A vida encontrou um ritmo doloroso.

 Lorena continuou trabalhando na fazenda até a barriga crescente tornar difícil. Cássio mantinha a distância respeitosa, mas estava sempre presente, garantindo que ela comesse bem, que descansasse, que tivesse tudo o que precisasse. Clarissalmente, sempre com Estevão.

 Lorena notava que a amiga parecia menos radiante a cada visita, mas quando perguntava, Clarice sorria e dizia que estava tudo bem. Foi durante uma dessas visitas, quando Lorena estava com se meses de gravidez, que tudo desmoronou. Era a noite da festa de noivado oficial de Clarice e Estevão, um grande churrasco na fazenda com músicos gaúchos, danças tradicionais, meio sul inteiro presente.

Lorena vestia um vestido de maternidade simples, sentindo-se fora de lugar entre as mulheres elegantes. Cássio, porém, não tirava os olhos dela e Estevão notou. Lorena tinha ido ao banheiro quando ouviu vozes no corredor. Reconheceu Cásio e Estevan. precisa parar com essa obsessão, Cássio. Stevan dizia, é patético.

 Uma mulher 20 anos mais nova, grávida do ex, e você ainda babando por ela. Cuidado com o que vai dizer. A voz de Cásio era perigosamente baixa. Ou o quê? A verdade dói? Você acha que ela te quer? Acha que depois que o bebê nascer, ela vai querer ficar aqui nessa fazenda perdida com um velho solitário? Estevão era Clarice. Lorena abriu a porta e viu a cena.

 Clarice parada no meio do corredor, olhando entre o pai e o noivo com horror. Do que vocês estão falando? O silêncio foi absoluto. E então Estevão sorriu aquele sorriso venenoso. Pergunta pro seu pai. Pergunta sobre os sentimentos dele pela sua melhor amiga. Estevã, para com isso. Cásio começou.

 Mas Clarice já estava olhando para ele, para Lorena, que tinha saído do banheiro, e alguma coisa clicou em seu rosto. Não sussurrou. Não, você não, vocês não, Clarice. Deixa eu explicar. Lorena começou, mas sua amiga recuou como se tivesse sido queimada. Houve algo entre vocês? A pergunta ecuou pelo corredor. Pessoas da festa começavam a se aproximar curiosas. Cássio deu um passo à frente. Filha, vem comigo. Vamos conversar em particular.

Responde a pergunta. Lorena viu o momento em que Cásio tomou a decisão. Viu quando ele ficou ereto, encarando a filha com honestidade dolorosa. Sim, ouve. Um beijo. Antes de você descobrir que estava grávida, ele olhou para Lorena. Foi um erro, um momento de fraqueza que não se repetiu. As lágrimas escorriam pelo rosto de Clarice. Vocês me traíram, os dois.

 Ela olhou para Lorena. Eu te trouxe aqui. Te acolhi e você com o meu pai. Clarice, por favor, deixa eu explicar. E você? Ela se virou para Cásio. A memória da minha mãe nem esfriou. 10 anos, pai. E você já tá correndo atrás de uma mulher que podia ser sua filha. As palavras foram como bofetadas.

 Ao redor, os convidados observavam chocados, a fofoca já se espalhando como fogo. “Eu sinto muito,” Lorena chorou. “Clarice, eu juro, não foi intencional. Eu nunca quis. Cala a boca!”, Clarice gritou. Não quero ouvir você. Não quero ver você. “Vocês dois?” Ela soluçou. Vocês dois morreram para mim esta noite. E então ela saiu correndo e Estevão atrás dela com expressão de falsa preocupação.

 Lorena e Csio ficaram parados no corredor, as ruínas de sua vida espalhadas aos seus pés, enquanto os convidados sussurravam e apontavam. A verdade tinha vindo à tona e havia destruído tudo, exatamente como sabiam que faria. A festa terminou em silêncio, constrangido. Os convidados foram embora, os músicos pararam de tocar. Lorena trancou-se no quarto, chorando até não ter mais lágrimas.

Cásio bateu na porta várias vezes, mas ela não abriu. De manhã cedo, ouviu o carro de Clarice partir, olhou pela janela e viu a amiga colocando malas no porta-malas, o rosto inchado de tanto chorar. Estevão estava ao seu lado, um braço possessivo em volta dela. Lorena desceu correndo, tropeçando nas escadas em sua pressa. Clarice, espera.

 A amiga se virou e o olhar que deu foi de puro ódio. Não tem nada que você possa dizer. Por favor, me deixa explicar. Não foi assim que aconteceu. Eu nunca quis machucar você. Mas machucou. Clarice entrou no carro. E eu não sei se um dia vou conseguir perdoar.

 Estevã, antes de entrar no carro, passou por Lorena e sussurrou baixo. Obrigado por facilitar as coisas. Agora Cásio vai ter que vender a fazenda para pagar o escândalo. Lorena o encarou horrorizada, finalmente vendo a verdade completa. Ele tinha orquestrado tudo. A explosão durante a festa não foi acidente. Ele tinha provocado querendo exatamente isso.

 O carro partiu em uma nuvem de poeira e Lorena desabou ali mesmo no pátio, soluçando. Braços fortes a ergueram. Cásio a carregou de volta para dentro, sentando com ela no sofá enquanto ela chorava em seu peito. “Isso é minha culpa”, ele murmurou. “Eu devia ter sido mais forte. Devia ter mantido distância.

” “Não, Lorena” disse entre soluços. “A culpa é minha. Eu cheguei aqui, baguncei sua vida, afastei sua filha. Você salvou minha vida.” Ele corrigiu, erguendo seu rosto. Me fez querer viver de novo. E se esse é o preço, eu pago. Mas não deixa ninguém te fazer sentir culpada por sentir o que sente. Clarice me odeia. Ela vai entender eventualmente.

 E se não entender? Sua voz quebrou. Então eu perdi minha filha, mas não vou perder você também. Ele a beijou então, desesperado, triste, como se fosse a última vez. E talvez fosse, porque Lorena já havia tomado sua decisão. Foi antes do amanhecer que ela fez sua mala silenciosamente para não acordar ninguém, deixou uma carta na mesa da cozinha endereçada a Cássio. Cássio, me perdoa.

 Me perdoa por entrar na sua vida e destruir tudo. Você merece ter sua filha de volta. Merece a paz que tinha antes de eu chegar. Por favor, não me procure. Vou para algum lugar longe, onde posso ter esse bebê e recomeçar sem machucar mais ninguém que amo. Obrigada por me dar um lar quando eu não tinha nenhum.

 Obrigada por me fazer sentir que valia alguma coisa. Obrigada por esses meses que foram os mais felizes da minha vida, mesmo terminando assim. Cuida da Horizontes Verdes. É onde você pertence. Eu te amo. Sempre vou amar. Mas amor às vezes não é suficiente. Lorena pegou a mochila, a mesma que chegara meses atrás, e saiu na madrugada fria. Caminhou até a estrada principal e pegou o primeiro ônibus que parou.

 Não sabia para onde estava indo. Só sabia que estava deixando seu coração para trás, enterrado nos campos verdes de uma fazenda que nunca poderia chamar de sua. Seis meses haviam-se passado. Seis meses de inferno para Cásio Tavares. Ele acordara naquela manhã e encontrara a carta. Lera e relera até as palavras se borrarem.

 E então, contra tudo que desejava, respeitara o pedido dela. Não a procurara. Cada dia era uma batalha. Trabalhar os campos sem vê-la surgir no horizonte, tomar chimarrão sozinho nas madrugadas, guardar a gaita, porque não conseguia mais tocar, tentara se reconectar com Clarice. Ligava toda semana, ela atendia, educada, mas fria.

Nunca mencionava Lorena, nunca perguntava pelo pai além do básico. Estevão tinha conseguido o que queria, uma família rachada, um pai solitário. Mas Cásio ainda não vendera nenhum centímetro de terra. Foi em uma tarde de maio, durante um leilão de gado em Santana do Livramento, que tudo mudou. Dois fazendeiros conversavam perto de Cásio, enquanto esperavam seus lotes serem leiloados.

 Ele não prestava atenção até ouvir algo que fez seu sangue gelar. Uma pena, tão nova e sozinha, grávida de uns 8 meses trabalhando naquela clínica em Uruguaiana. É a veterinária do Onofre, a paulista. Essa mesmo, coitada, parece que não tem ninguém. Mora num quartinho alugado, trabalha até não poder mais.

 Ontem a vi saindo da clínica, mal conseguia andar de tão inchada. Cássio não ouviu mais nada. O sangue rugia em seus ouvidos. Uruguaiana. Lorena estava em Uruguaiana, grávida, sozinha, trabalhando além da conta. deixou o leilão sem explicações, entrou na caminhonete e dirigiu. 6 horas de estrada, atravessando a noite que caía, o coração batendo tão forte que doía.

Chegou em Uruguaiana quando o sol nascia. Perguntou na praça principal, no mercado, na padaria. Finalmente alguém apontou. A doutora trabalha na clínica do doutor Jofre, ali na rua principal, estacionou em frente à clínica. Eram 7 da manhã, esperou e então a viu. Lorena saiu pela porta lateral, uma mochila nas costas, a barriga enorme sob um vestido simples.

 Estava mais magra no rosto, os cabelos mais longos, olheiras profundas marcando seus olhos. Mas era ela, sua Lorena. Cásio desceu da caminhonete e deve ter feito algum som porque ela olhou. O mundo parou. Os olhos de Lorena se arregalaram, a mão voando para a barriga em gesto protetor. Ela ficou paralisada como um cero assustado. “Lorena”, ele disse e sua voz saiu rouca de desuso. “Você você não devia estar aqui”, ela sussurrou.

 “E você não devia estar sozinha?” Ele atravessou a rua e a cada passo podia ver melhor, as mãos inchadas, os pés inchados dentro de sandálias velhas, o cansaço profundo em cada linha de seu corpo. Quando ficou na frente dela, teve que usar toda sua força de vontade para não tocá-la. Por que você fugiu? Lágrimas encheram os olhos dela. Porque era o certo.

 Porque você precisava consertar as coisas com clarice. Porque eu só trazia problema. Você trouxe vida. Ele disse intensamente. Trouxe luz para uma casa que estava morta e quando você foi embora, levou tudo isso com você. Cáio, eu não posso voltar. Clarice ainda. Clarice não me fala mais mesmo. Não importa se você tá lá ou não. Ele deu mais um passo. Mas eu não aguento mais.

 Não aguento acordar e saber que você tá por aí sozinha carregando esse bebê, precisando de ajuda. Me deixa cuidar de você, por favor. O bebê não é seu. Ela disse, a voz quebrando. É de Caio. É do homem que me traiu. Por que você ia querer? Porque eu te amo. Cásio a interrompeu. Eu te amo, Lorena. Amo você e amo esse guri que você tá carregando. Não me importo de quem é o sangue. Só me importo o que é seu.

 E tudo que é seu eu quero. As lágrimas escorriam livremente. Agora toda a região vai falar. Vão dizer coisas horríveis. Vão julgar. Que falem. Que julguem. Ele finalmente tocou seu rosto, acariciando a bochecha úmida. Não me importo com a fazenda, com o sobrenome Tavares, com o que toda a Serra Gaúcha vai dizer. Só me importo com você. E Clarice. Vou tentar consertar as coisas com minha filha.

 Vou passar o resto da vida tentando, mas não vou perder você também. Já perdi demais. Lorena soluçou se inclinando contra ele e Cásio a envolveu em seus braços, sentindo a barriga redonda entre eles, sentindo-a tremer. “Os campos estão vazios sem você”, sussurrou contra seu cabelo. “Eu tô vazio sem você.” “Eu também”, ela admitiu.

 “Eu tento não pensar, tento esquecer, mas cada dia é mais difícil. E à noite eu sonho com a fazenda, com você, com o chimarrão na varanda. Então volta para casa comigo, vem ter esse bebê em casa. Deixa eu cuidar de vocês dois. Ele sentiu quando ela cedeu, quando o corpo dela relaxou contra o dele em rendição. OK, sussurrou. OK. Cássio beijou seu rosto, sua testa, seus cabelos, segurando-a como se temesse que fosse desaparecer novamente. Pega tuas coisas.

 A gente vai embora agora mesmo. Levou 15 minutos para Lorena juntar suas poucas posses do quartinho miserável que alugava. Cásio teve que engolir a raiva ao ver onde ela estava vivendo. Um cubículo sem janelas, um colchão fino no chão, paredes descascadas. Colocaram tudo na caminhonete. Dr. Onofre saiu da clínica preocupado. “Doutora Lorena, vai embora?” “Vai?” Cásio respondeu possessivo e não volta.

 Na estrada de volta, Lorena adormeceu com a cabeça em seu ombro. Cásio dirigia devagar, uma mão no volante, a outra segurando a dela. Ele a levava para casa e, desta vez, não a deixaria ir nunca mais. A fazenda Horizontes Verdes explodiu em atividade quando Cásio chegou com Lorena. Dona Neusa chorou de alegria. Seu Jacinto deu um sorriso enorme.

 Os peões acenaram respeitosamente. “Bem-vinda de volta, doutora”, disseram. E realmente parecia um retorno para casa. Cássio instalou Lorena no quarto principal, o dele. Não havia mais fingimento, não havia mais esconder. Trouxe suas coisas, arrumou tudo para seu conforto. Você não precisa fazer isso. Ela protestou fracamente.

 Preciso sim. Você vai ter esse bebê aqui nesta casa e eu vou estar do seu lado. Nas semanas que se seguiram, Cásio cuidou dela como se fosse a coisa mais preciosa do mundo. Massage pés inchados todas as noites. Acordava quando ela tinha aia de madrugada tocava gaita para ela e para a barriga, fazendo o bebê chutar. Acho que ele gosta de música gaúcha. Lorena ria.

Ele como sabe que é menino? Não sei, mas sinto que é. Os vizinhos falaram claro. A fofoca se espalhou pela região como fogo. Mas Cásio enfrentou cada olhar torto, cada comentário maldoso com a cabeça erguida. “Lorena é minha família”, disse ao padre local, que veio expressar preocupação.

 “E esse bebê vai ser meu filho, independente de sangue.” Clarice não ligava, não respondia às mensagens. Cássio sofria com isso, mas não se arrependia. Um dia ela vai entender, Lorena dizia, acariciando a barriga. Um dia ela vai ver que amor não é traição.

 A bolsa estourou numa noite de chuva em junho, três semanas antes do previsto. Lorena estava na cozinha ajudando dona Neusa quando sentiu o líquido escorrer pelas pernas. Cássio! Gritou! Ele apareceu correndo do escritório, viu a situação e a calmaria dele foi inabalável. Vamos pro hospital já. A viagem até Caxias do Sul foi tensa. As contrações vinham cada vez mais fortes, mais próximas.

 Lorena agarrava a mão de Cáio, respirando como as enfermeiras tinham ensinado. “Você vai ficar comigo?”, perguntou com medo. “No part?” “Não vou sair do teu lado nem por um segundo.” E ele não saiu. Ficou ali segurando sua mão, limpando seu suor, sussurrando encorajamentos quando a dor ficava insuportável. “Você consegue, meu amor? Você é forte! A mulher mais forte que conheço. Foram 19 horas de trabalho de parto.

 19 horas em que Csio não soltou sua mão, não falhou em seu apoio. E quando finalmente o bebê nasceu, quando aquele choro forte encheu a sala, quando a enfermeira colocou o menino nos braços de Lorena, o mundo parou. É um menino. Ela chorou. Cásio é um menino. Ele olhou para o bebê, minúsculo, vermelho, perfeito, e as lágrimas escorreram por seu rosto marcado pelo sol e trabalho.

 Posso, posso segurar ele? Lorena colocou o bebê em seus braços e Cássio segurou aquela vida pequena contra o peito, tremendo. “Oi, Guri!”, sussurrou em dialeto gaúcho. “Eu sou o Cássio e vou cuidar de ti pro resto da vida. Prometo. Eu prometo. O bebê agarrou seu dedo com força surpreendente e algo dentro de Cásio se curou.

 Uma ferida de 10 anos, desde que perder a Isadora, finalmente começou a fechar. Como vamos chamar ele? Lorena perguntou suavemente. Benjamim. Cásio disse imediatamente. Se você concordar, Benjamim Martins Tavares. Lorena Solussou, você quer dar teu sobrenome para ele? Ele é meu filho agora. Sangue não faz família, amor faz. Beijou a testa do bebê, depois beijou Lorena, suave e reverente.

 Obrigado sussurrou. Obrigado por me dar uma família de novo. Levaram Benjamim para casa uma semana depois. A fazenda Horizontes Verdes ganhou vida nova. Choro de bebê ecoando pelos corredores. Dona Neusa tricotando mantinhas. Seu Jacinto fazendo um berço de madeira de cedro.

 Lorena amamentava Benjamim na varanda, observando os campos verdes que agora eram verdadeiramente seu lar. Cássio sentava ao lado, tocando gaita baixinho, o mate circulando entre eles. “Está feliz?”, ele perguntou uma tarde, mais do que merecia estar. Ela respondeu honestamente: “Você merece tudo, Lorena. Tudo de bom que esse mundo pode dar. Foi então que ouviram o carro. Ambos ficaram tensos, não esperavam visitas.

 Cásio se levantou o protetor, colocando-se entre Lorena e a estrada. O carro parou, a porta abriu e Clarice desceu. Mas não era a Clarice radiante que conheciam. Essa Clarice tinha um olho roxo mal disfarçado por maquiagem. Essa Clarice tinha os ombros caídos, o rosto magro, as mãos tremendo. Carregava uma mala. Filha. Cássio desceu os degraus da varanda. O que? Terminei com Estevan.

Ela disse a voz pequena. Ele ele me bateu, tentou me controlar, me isolou de todo mundo e quando eu finalmente tive coragem de terminar ele, sua voz quebrou. Cásio a puxou para um abraço feroz. Graças a Deus saiu. Graças a Deus você tá viva. Eu te falei que tinha algo errado com ele. Eu sei. Você estava certo, sobretudo.

 Clarice chorou contra o peito do pai. Me desculpa, pai. Me desculpa por te abandonar, por não acreditar em você. Não tem nada para desculpar. Você é minha filha, sempre vai ser minha filha. Então Clariss olhou por cima do ombro do pai e viu Lorena na varanda segurando um bebê. Os dois se olharam por um longo momento. Foi Clarice quem deu o primeiro passo.

 Subiu lentamente os degraus, os olhos fixos no bebê. Ele nasceu sussurrou. Sim. Uma semana atrás. Lorena segurou o Benjamim mais perto. Clarice, eu sinto muito por tudo. Por ter Eu também sinto. Clar interrompeu, lágrimas escorrendo. Sinto muito por ter abandonado quando você mais precisava, por ter deixado o orgulho e a raiva falarem mais alto que a amizade. Você tinha direito de ficar brava.

 Tinha, mas não tinha direito de ser cruel. Clarice olhou para o bebê. Posso, posso segurá-lo? Com mãos trêmulas, Lorena passou Benjamim para os braços da amiga. Clarice olhou para o rostinho adormecido e começou a chorar mais forte. Ele é lindo. Parece com você, Clarice. Eu sei que nunca vai ser como era antes entre nós. Sei que estraguei tudo, mas você não estragou nada.

 Clarice disse, olhando para ela com olhos vermelhos. Eu que fiquei presa na ideia de como as coisas deveriam ser. Mas olha para vocês. Ela olhou entre Lorena, o bebê, e o pai que subia os degraus. Vocês parecem certos. Parecem uma família. Somos uma família, Csio disse, colocando a mão no ombro de Lorena. E você sempre vai ser parte dela, filha. Clarice devolveu o bebê para Lorena e abraçou a amiga.

 Um abraço apertado, desesperado, cheio de perdão não dito. “Me desculpa”, sussurraram as duas ao mesmo tempo e riram entre lágrimas. Vocês duas vão me matar de tanto drama”, Cásio disse, mas sua voz estava embargada. Dona Neusa apareceu com mate fresco e biscoitos, os olhos também úmidos. “Família tá em casa”, disse simplesmente. “Tá tudo como tinha que ser”. Sentaram todos na varanda.

Cásio, Lorena, com Benjamim no colo, Clarice. O mate circulou. Conversaram até o sol se pôr, curando feridas, reconstruindo pontes, encontrando um novo caminho. “Vocês vão se casar?”, Clarice perguntou em algum momento. Lorena e Csio se olharam surpresos. “Eu não sei. Não falamos sobre isso, Lorena admitiu, porque eu não queria pressionar.” Cásio explicou.

 Queria que ela soubesse que tá aqui porque quer, não porque precisa. “Mas eu quero te casar, idiota.” Lorena riu entre lágrimas. Quero acordar todo dia ao teu lado. Quero criar Benjamim com você. Quero envelhecer nestes campos. Cásio a puxou para um beijo, delicado por causa do bebê entre eles, mas cheio de promessa.

 Então casa comigo, casa comigo e me faz o homem mais feliz dos pampas gaúchos. Sim, mil vezes, sim. Clarice chorou de novo, mas dessa vez de alegria. Posso ser madrinha do casamento e do Benjamim? Claro que pode. Lorena segurou sua mão livre. Você é família, sempre foi, sempre vai ser. O sol verdes infinitos da fazenda Horizontes Verdes, tingindo tudo de dourado.

 Quatro pessoas na varanda, três gerações, uma família reconstruída das cinzas do que foi. Não era perfeito. Ainda havia cicatrizes, ainda havia história, mas era real, era amor, era perdão, era recomeço. Benjamim acordou e choramingou. Cásio o pegou nos braços, levantando-se para caminhar pelo alpendre, cantarolando baixinho uma canção gaúcha que sua mãe cantara para ele quando criança.

 Lorena e Clarice ficaram sentadas lado a lado, observando dedos entrelaçados. Ele vai ser um pai incrível, Clarice disse suavemente. Já é, Lorena respondeu. A cuia de mate esfriava entre elas, mas o calor humano aquecia a casa centenária, que nos campos vastos, que se estendiam até o horizonte, onde o vento carregava o perfume de terra e possibilidades, uma nova história estava apenas começando.

 Uma história de amor que sobreviveu ao impossível, de família que se reconstruiu mais forte, de segundas chances que valeram cada lágrima derramada, porque no fim o amor sempre encontra o caminho de volta para casa. E esta, a fazenda Horizontes Verdes, com seus campos infinitos e céu sem fim, era lar para todos eles, para sempre. M.