A água sanitária escorreu pela junta do azulejo como uma lágrima artificial, e por um segundo o reflexo da luz fria no mármore fez o chão parecer ainda mais gelado, quase cruel. Era começo de tarde, mas ali dentro não existia a hora, só o silêncio pesado e o som ritmado de uma esponja raspando contra a pedra.
Dona Rosa ajoelhava devagar, o corpo pedindo trégua que ela já não tinha para dar. A cada movimento, o cheiro forte de cloro subia, queimando o nariz, a garganta, os olhos. Ela apertou os lábios, tentando não torcir. Tinha medo que o barulho chamasse atenção. Os gêmeos, Lucas e Léo, dormiam amarrados nas costas dela num pano improvisado, um lençol de algodão bem gasto.
O calor dos dois era a única coisa viva naquele banheiro de revista. Às vezes, um deles resmungava baixinho, cabeceando no ombro dela, e Rosa sentia o corpo inteiro dela ir junto, num instinto quase animal de proteger. Ela respirou fundo. Péssima ideia. O cheiro químico invadiu o peito como se entrasse rasgando.
Ainda assim, continuou esfregando, esfregando, esfregando. Queria terminar antes que Camila aparecesse, mas claro, foi aí que ela ouviu. Tac, taque, taque. O eco metálico dos saltos batendo no corredor. Corredor não parecia passo humano, parecia sentença. Rosa fechou os olhos por meio segundo. Sabia o que vinha. A porta se abriu sem aviso. A sombra de Camila entrou primeiro.
Até quando você vai ficar de joelho, Zen? A voz dela cortou o ar como lâmina. Limpa direito isso e vê se esses meninos param de chorar. Eu não aguento essa barulheira. Rosa manteve o olhar baixo. Se olhasse para cima, Camila ia ver o medo. E medo naquela casa era convite para humilhação. Tô quase terminando murmurou Rosa, a voz mais fraca que os joelhos. Camila deu uma risada curta, seca.
Rosa não precisou olhar para saber que ela estava com aquela expressão entediada, sobrancelha arqueada, como quem olha um serviço mal feito. Quase terminando, coluna doendo. Tô cansada. Meu Deus, Rosa, sempre uma desculpa. Ela passou o dedo no canto do box, que já estava limpo. Tá vendo isso? Sujo.
Você acha que tá no interior, que pode deixar tudo pela metade? O coração de Rosa bateu um pouco mais descompassado. Ela tentou levantar só um pouquinho o tronco para aliviar o peso dos meninos. O pano puxou o ombro dela para trás. Doeu. Mesmo assim, ela sorriu. Um sorriso curto, submisso, para não irritar mais. Eu dou um teto para você, dou comida, deixo você ficar com seus netos e o mínimo que espero é que você trabalhe direito”, disse Camila, mexendo no relógio de academia, como se tivesse compromisso importante. Rosa abaixou a cabeça mais uma vez, não porque
concordava, mas porque discordar custava caro naquela casa. Os gêmeos começaram a se remexer, talvez sentindo o clima. Camila bufou alto. Ah, não faz esses meninos calarem a boca. Eu tô com dor de cabeça desde cedo. Rosa deslizou a mão pelas costas dos dois, fazendo carinho, murmurando canções sem voz.
Era impressionante como a presença de Camila deixava o ar do banheiro mais pesado. Parecia que até o ar condicionado perdia força. Por um momento, Rosa pensou no interior de Minas. Nas tardes quentes, no cheiro do café coado no pano, no riacho onde lavava roupa rindo com as vizinhas, ali o chão podia ser de terra batida, mas não a machucava como aquele mármore frio.
E outra coisa, Camila disse, virando-se pra porta. Quando o Rafael chegar, nada de drama, hein? Ela se inclinou um pouco, a voz descendo de volume, ficando mais perigosa. Se você abrir a boca, eu juro que te boto num asilo e os meninos vão ficar comigo, entendeu? O mundo de rosa desabou dentro do peito, silencioso. Ela não respondeu, só assentiu rápido. Camila queria exatamente isso.
Obediência. Os saltos se afastaram pelo corredor. Tac, tac, tac. até sumirem. Rosa esperou 5 segundos antes de soltar o ar preso. Sentiu os braços formigarem, quase deixou a esponja cair. Ela apoiou a mão no chão para se levantar. O mármore gelado tocou o machucado no joelho, arrancando um suspiro de dor.
Devagar, muito devagar, ficou de pé, segurando na borda da pia. O espelho à frente devolveu a imagem de uma mulher que ela quase não reconhecia. Cabelo preso de qualquer jeito, a pele manchada do sol de outros tempos, os olhos cansados. Tão cansados? Vamos, Rosa! Murmurou para si mesma. Só mais um pouco. Só mais um serviço.
Arrumou o pano onde os gêmeos estavam e caminhou pelo corredor. A casa estava silenciosa, um silêncio grande demais, como de igreja vazia. As paredes brancas refletiam a luz clara do fim da tarde. Nas molduras, fotos sorridentes de Rafael e Camila. Em todas, Rosa estava ausente. No coração dela, um fio de culpa a apertou. Se o Rafael soubesse, mas ele não pode saber. Não pode.
Passou o dedo pela foto do filho no casamento. Lembrou do orgulho que sentiu quando ele comprou aquela mansão. Lembrou da primeira vez que entrou ali tremendo, achando tudo chique demais, achando que ia ter um quartinho bom, uma vida tranquila, ajudar com os netos. Mas naquela casa ela era só mais um cômodo esquecido, um objeto útil enquanto não incomodasse. Na cozinha pousou o balde num canto e lavou as mãos na pia.
A água bateu nas rachaduras da pele e ardeu como fogo. Ela respirou fundo, tentando ignorar. Começou a separar arroz, alho, cebola. O som da faca no vidro da tábua era lento, quase cansado. Os gêmeos suspiraram nas costas dela. Ela sorriu pela primeira vez no dia, porque o amor pelos dois era a única coisa que ainda aquecia suas costelas.
Enquanto refogava o alho, ouviu algo no fundo do armário inferior. Se abaixou para pegar a panela grande. Os joelhos tremiam. Abaixar doía. Levantar doía mais. Mas ela foi. A porta do armário rangia baixinho e ali dentro, entre panelas e detergentes, tinha um guardanapo branco esquecido, amassado, manchado de vinho. Rosa o pegou sem pensar, virou-o entre os dedos.
Era de um jantar recente, aquele em que Camila derramou vinho de propósito, só para mandá-la limpar o chão antes que manchasse o mármore, Rosa apertou o tecido. Ainda tinha cheiro de vinho caro e de humilhação. Guardou o guardanapo dobrado no avental, sem saber porquê. Talvez porque, pela primeira vez uma pontinha de coragem, mínima, quase invisível, tivesse nascido dentro dela.
Algo dizia que aquele guardanapo voltaria de um jeito ou de outro. E quando ela finalmente conseguiu se levantar, segurando firme na borda da bancada, o sol da tarde bateu no vidro da janela da cozinha, criando um reflexo inesperado, uma faixa de luz fina atravessando o chão, iluminando exatamente onde os joelhos dela tinham tocado o mármore horas atrás, como se dissesse: “Alguém vai ver isso um dia? Alguém vai ver”.
O arroz ainda estava só começando a dourar no alho quando o silêncio do condomínio foi quebrado por um barulho que dona Rosa reconheceu na hora. O portão automático abrindo. Aqueles unido grave arrastado sempre anunciava a chegada de alguém. Mas naquele horário não fazia sentido. Rosa congelou com a colher no ar. O relógio da cozinha marcava 3:30 da tarde.
Rafael nunca voltava antes das 7, nunca. O coração dela deu um solavanco. Um pensamento único atravessou a cabeça, seco, urgente. Se ele me vê assim com os meninos nas costas, se a Camila descobre. Ela tentou tirar o pano improvisado das costas, mas Lucas deu um gemidinho. Léo virou o rosto no ombro dela e o peso dos dois a fez desistir.
Melhor não acordá-los. Os unido do portão terminou. Logo depois, o bip característico da porta da garagem suou. Rosa apertou a beirada da pia, respirando rápido. O cheiro do alho queimando chegou antes que ela pudesse desligar o fogo. Meu Deus. Ele chegou, sussurrou lá em cima, passos firmes tomaram o corredor. Rafael sempre andava pesado quando estava preocupado.
E aquele ritmo era exatamente esse, tenso, apressado, sem paciência pro mundo. Camila, ele chamou, a voz ecoando pela escada. Mãe Rosa fechou os olhos. Aquilo não era bom, nada bom. O som do salto de Camila veio do lado oposto no andar de cima. Amor! Ela disse com a voz toda ensaiada.
Que surpresa! Você veio cedo hoje? Rosa sentiu o ar faltar. Pelo timbre da Nora ela já sabia. Camila não estava feliz com aquela surpresa. Os passos de Rafael subiram mais rápido do que ela esperava. E então um silêncio abrupto, pesado, como se ele tivesse parado diante de algo estranho. Rosa não via a cena, mas via pela memória.
Via exatamente onde o balde estava. Sabia o cheiro forte que vinha do banheiro. Imaginava a esponja ainda úmida no chão. Ele devia estar olhando tudo, cada detalhe. E ela sentiu. Sentiu como se estivesse sendo enxergada sem querer. Mãe! A voz dele desceu um pouco entre confusa e preocupada. A senhora tá aí embaixo?” Ela engoliu seco e saiu da cozinha devagar, com os gêmeos ainda dormindo nas costas. As pernas tremiam, mas ela se forçou a caminhar.
Rafael apareceu no topo da escada e a viu. O rosto dele mudou na mesma hora. Primeiro surpresa, depois um tipo de dor estranha, como quem olha para algo que não entende, mas sabe que está errado. Ele desceu dois degraus de uma vez só. Mãe, a senhora tava limpando o banheiro lá de cima? Eu eu só dei uma ajeitadinha, respondeu Rosa, segurando o pano no ombro, tentando parecer tranquila. É que a Camila saiu rapidinho. Aí eu fui. Ele interrompeu.
Mas por que a senhora tá assim? O olhar dele desceu pro pano amarrado, depois pras mãos dela. Vermelhas, rachadas, tremendo. Ela baixou o rosto. Nunca foi boa de sustentar o olhar do filho quando ele ficava sério. Do quarto de casal, Camila reapareceu, descendo a escada devagar, como quem controla cada passo para parecer calma.
Rafa, amor”, eu expliquei para ela”, disse Camila, já se posicionando ao lado dele. “A sua mãe não consegue ficar parada. Ela se oferece para ajudar, fica entediada.” Rafael olhou pra esposa sem acreditar, voltou o olhar paraa mãe. “É verdade isso, mãe?” A senhora pediu? Rosa sentiu o peito afundar.
O medo veio inteiro, violento. Ela lembrou da ameaça, do asilo, da promessa de nunca mais ver os gêmeos, da voz sussurrada, fria. Se você abrir a boca, acaba tudo para você. Então ela mentiu. A mentira saiu torta, frágil, mas saiu. Pedi sim, meu filho, só para ajudar. A senhora pediu? Ele insistiu agora mais firme.
Pedi repetiu Rosa, como se repetir pudesse convencer até ela mesma. Camila suspirou exagerado, pousando a mão no ombro de Rafael. Viu? Eu falei. Sua mãe não consegue ficar quieta. Mas Rafael não parecia comprar aquela história. Ele reparou no jeito que Rosa segurava a barra do avental, no arranhão recente perto do cotovelo, no roxo surgindo sob a pele fina do braço.
E Rosa percebeu que ele estava vendo, realmente vendo, pela primeira vez em muito tempo. O silêncio foi ficando denso até que um dos gêmeos se mexeu nas costas dela. Soltando um chorinho curto. Camila virou rapidamente, irritada. “Ah, pronto”, disse ela passando a mão no cabelo. “Ess meninos não podem ouvir uma discussãozinha que já choram”.
Rafael olhou pra esposa com uma expressão que Rosa não lembrava de já ter visto nele. Era como se um pedaço dele tivesse acordado. “Camila, por que eles estão sempre tão sonolentos? Porque bebês dormem, Rafael? pelo amor de Deus. Mas Rosa viu, viu nos olhos dele. Aquela pergunta não veio do nada. O coração dela apertou. Ele percebeu alguma coisa? Camila deu meia volta e subiu à escada com raiva, tacando o salto no degrau como quem ameaça com o som.
Rosa ficou ali parada, segurando os meninos sem saber se respirava. Rafael desceu os últimos degraus devagar, parou diante dela, pegou as mãos dela com cuidado, como quem segura algo frágil demais. Mãe, o que tá acontecendo? E Rosa, Rosa quase contou. Quase. A verdade subiu pela garganta, queimando, pedindo para ser dita, mas a imagem dos gêmeos correu na mente.
O medo voltou, a ameaça voltou, ela engoliu tudo. Mais uma vez, nada, meu filho, só cansaço mesmo. Rafael olhou para ela por um longo tempo, como se tentasse decifrar cada pequeno detalhe. Era o olhar de um filho que finalmente começava a enxergar a própria mãe, não como memória, não como conforto, mas como alguém que podia quebrar.
Então ele disse baixinho: “Eu volto em 5 minutos. Não sai daqui”. e subiu à escadas de novo, mais rápido que antes. Rosa ficou parada no pé da escada, segurando no corrimão para não cair. Ouviu portas abrindo, ouviu passos indo direto para o banheiro. Ouviu a pausa longa, exatamente quando Rafael encontrou o balde, a esponja, o cheiro de cloro que ainda impregnava o ar.
Ela fechou os olhos, sentiu o corpo inteiro tremer, o arroz queimava na panela. Ela não se mexeu. Os gêmeos dormiam alheios à tempestade que começava a se formar lá em cima. E quando Rafael desceu de novo, o rosto dele tinha outra expressão, como se uma peça grande demais tivesse se encaixado dentro dele.
Nos dedos ele segurava algo pequeno, mas que fez o estômago de rosa virar. O mesmo guardanapo branco manchado de vinho, aquele que ela guardara no avental horas atrás. O guardanapo que Camila usara para humilhá-la. O guardanapo que Rosa dobrou sem saber porquê. O guardanapo que agora estava na mão de Rafael.
Ele olhou pra mãe, para o pano, depois para a escada que levava ao quarto. E naquele instante, naquele olhar silencioso, Rosa entendeu. A mentira dela não tinha enterrado a verdade, apenas tinha atrasado o momento em que ela seria revelada. A casa estava estranhamente quieta, como se estivesse prendendo a respiração.
O sol já tinha sumido por trás dos prédios do condomínio e a sala principal era iluminada apenas pela luz amarelada que vinha de um abajur. Aquela lâmpada fraca que Rafael sempre dizia que ia trocar, mas nunca trocava. Agora, essa mesma luz criava sombras longas nas paredes, sombras que pareciam acompanhar cada movimento deles.
Rosa estava sentada na beira do sofá, as mãos cruzadas no colo, tentando parecer menor do que era. Os gêmeos dormiam no quartinho, finalmente longe do peso do rebozo. Rafael andava em círculos pela sala com o guardanapo branco amassado entre os dedos. O mesmo guardanapo que tinha encontrado no banheiro, manchado de vinho e humilhação.
Camila, ao lado do barzinho de bebidas, servia uma taça de vinho como quem prepara munição. “Rafa, por favor, você está exagerando”, disse ela, tentando manter a voz suave, mas sem conseguir esconder a impaciência. Rafael parou, virou-se para ela devagar, como se estivesse segurando a si mesmo pelo fio mais fino. Exagerando, o silêncio entre cada sílaba era quase um aviso.
Eu encontrei minha mãe de joelhos no mármore, com os meus filhos amarrados nas costas, sem luvas, limpando o banheiro com produto forte. E você quer que eu ache normal? Camila ergueu o queixo. Ela pediu Rafael, você conhece sua mãe. Ela implora para ajudar. Não é verdade? Ele rebateu. Hoje eu perguntei de novo e ela mentiu. Mas não porque queria limpar.
Ela mentiu porque tem medo de você. A taça de vinho tremeluziu levemente na mão de Camila, mas ela manteve o sorriso firme. Medo? Soltou uma risadinha curta. Rafa, fala sério. Sua mãe é dramática. Ela sempre foi assim. Se eu falo mais alto, ela já acha que estou gritando. Rafael olhou para Rosa.
Mãe a voz dele desceu mais tranquila. Fala a verdade. Alguém te gritou aqui? Rosa puxou o ar, mas ele não saiu. O peito dela subiu e desceu sem que as palavras encontrassem caminho. Ela sabia que qualquer frase que pronunciasse viraria a faca para um lado ou para o outro. Camila cruzou os braços. Aí, tá vendo? Disse ela triunfante.
Ela não fala nada porque não tem nada para falar. Rafael respirou fundo, andou até o bar, pegou a taça da mão da esposa sem pedir permissão. “E isso aqui?”, perguntou, erguendo o guardanapo. “Por que esse guardanapo estava jogado no banheiro?” “Ah, meu Deus”, disse Camila, revirando os olhos. “Deve ter caído. É um guardanapo, Rafael.” “Um guardanapo.
” Mas Rafael jogou o pano na mesa como quem joga uma prova. Esse guardanapo estava sujo de vinho e minha mãe não bebe. Pode ter respingado. Respingo não deixa marca de arrasto. Ele interrompeu. Para fazer aquela mancha, alguém esfregou. Com força. Camila engoliu seco. Talvez por um segundo, talvez por medo real, mas foi rápido demais para ser visto claramente.
Rosa apertou os dedos uns contra os outros. Nunca quis ser centro de discussão. Nunca quis colocar o filho entre ela e Camila. Queria apenas sobreviver ao dia. Mas Rafael continuou. E tem mais. Ele tirou do bolso o frasco pequeno, sem rótulo, com uma etiqueta torta escrita relax. O vinho quase escorregou da mão de Camila.
Onde você encontrou isso? No seu criado mudo. Ele respondeu. Por acaso isso aqui é chá? São gotas naturais”, ela disse rápido. “Homeopatia, todo mundo usa. Bebês de um ano não usam isso.” Rafael rebateu. “E se eu mandar analisar o leite deles, Camila, o que eu vou encontrar?” A tensão finalmente rasgou a máscara dela.
“Você está me acusando de quê, Rafael? De drogar os meus filhos.” A taça caiu da mão dela. O som do vidro se estilhaçando, ecoou pela sala como um tiro. Camila deu um passo para trás, como se o mundo tivesse desabado sob seus pés. Eu drogar. A voz dela saiu trêmula, mas era difícil saber se era arrependimento ou apenas desespero por ter sido pega.
Rosa apertou o braço da poltrona como se quisesse se esconder dentro dela. Rafael se aproximou de Camila, não com violência, mas com uma frieza que doía mais do que qualquer grito. Eu quero a verdade toda. Camila abriu a boca, fechou, olhou para Rosa, como se culpá-la fosse um instinto automático. Ela sempre atrapalhou, disse, sempre. nunca fez nada direito.
Eu tinha que cuidar de tudo sozinha, com duas crianças chorando. E essa mulher, Rafael interrompeu com um sussurro. O tipo de sussurro que congela o ar. Essa mulher é minha mãe. Camila tentou se recompor. Eu Eu só queria um pouco de paz, um dia tranquilo. As gotas só davam soninho. Soninho? Rafael riu. Mas não era humor, era dor.
Camila, quando eu passei a mão no rosto do Léo, ele nem reagiu, nem virou. Você tem noção do que isso significa? Ela ficou pálida. Não foi tão grave assim, Rafael. Se fosse grave, ele gritou pela primeira vez. E se ele não acordasse mais? O eco do grito fez Rosa estremecer. fez Camila pisar para trás, esbarrando no balcão.
Fez a casa inteira parecer menor. Por segundos, apenas a respiração dos três preenchia o lugar e o som distante de um carro passando na rua. Rafael se afastou da esposa, foi até a mãe, ajoelhou-se diante dela, invertendo de forma silenciosa todas as posições de poder daquela casa.
“Mãe, olha para mim!” Rosa levantou o rosto, os olhos úmidos, as mãos tremendo. Aconteceu outras vezes, Rafael? Sim ou não? Uma lágrima quente caiu, traçando uma linha na bochecha dela. Sim. Rafael fechou os olhos, como se aquela resposta tivesse tirado o chão dele também. Ele se levantou devagar, virou-se para Camila, que tentava esconder o pânico torcendo as mãos. Arruma uma mala”, disse ele. A voz agora calma demais.
“Você vai sair dessa casa hoje.” “O quê?” “Hoje. Agora?” Camila explodiu. “Você não pode fazer isso comigo. Eu sou a mãe dos seus fi.” “Ex”, ele cortou. “Mãe, cuida, não machuca.” Camila respirou rápido, quase histérica. “Você vai se arrepender. Vai implorar para eu voltar.
Prefiro carregar meus filhos e minha mãe nos braços por uma vida inteira”, disse Rafael, do que continuar vivendo ao lado de alguém que destrói o que diz amar. O silêncio caiu como pedra. Camila, vendo que não havia brecha, não havia manipulação possível, correu para o quarto. As gavetas batiam, cabides caíam, zíperes eram puxados com força.
Rosa ficou parada, boca entreaberta, como se ainda não acreditasse, Rafael, por sua vez, estava imerso em uma calma que não vinha de paz, mas de clareza, como alguém que atravessou um incêndio, e, do outro lado, finalmente enxergou tudo como realmente era. A porta da frente se abriu com violência quando Camila saiu arrastando a mala.
Antes de cruzar o portão, ela virou-se para Rosa, velha, inútil. Você acabou com a minha vida. Rosa recuou como se tivesse levado um tapa, mas Rafael deu um passo à frente e fechou a porta na cara de Camila, devagar, sem pressa, sem medo, e o barulho seco da porta batendo, ecoou por toda a sala, como um veredito final.
A casa tinha se transformado num tribunal e o julgamento terminara. A casa amanheceu diferente. Não era apenas o silêncio, era a ausência do medo. Até o ar parecia mais leve, como se as paredes tivessem finalmente descansado depois de meses, segurando gritos que nunca deveriam ter existido. Rosa acordou antes do sol, como sempre, mas naquela manhã, quando colocou os pés no chão, percebeu algo simples. Ninguém estava esperando que ela errasse.
Ela foi até a cozinha, acendeu a luz amarelada e preparou o café com calma, sem pressa, sem olhar por cima do ombro. Rafael apareceu logo depois, o rosto ainda marcado pela noite sem dormir, mas com os olhos firmes, daquele jeito de quem tomou uma decisão que não tem volta. “Mãe”, disse ele colocando a mão no ombro dela. “A senhora não precisa fazer café.
” Eu quero, meu filho, sorriu Rosa, ajeitando a chaleira. Hoje eu fiz porque queria. Aquela frase, dita com doce simplicidade encheu Rafael de algo que ele não sentia fazia tempo, alívio. Mas ele sabia que aquilo era só o começo. Mais tarde, naquela manhã, enquanto os gêmeos engatinhavam pelo tapete da sala, livres, curiosos, fazendo sons engraçados, a campainha tocou. Rosa tomou um susto.
Por reflexo, levou a mão ao peito, como se esperasse ouvir outra vez a voz cortante de Camila atrás da porta. Mas Rafael chegou primeiro, abriu devagar. Do outro lado, uma mulher de cabelos grisalhos, postura rígida e olhar cansado. “Sou a mãe da Camila”, disse ela sem rodeios. “Vim buscar as coisas dela e pedir desculpas.
Rafael sentiu a mandíbula travar, mas não disse nada. Apenas a sentiu, deixando que a mãe da ex-esposa entrasse para recolher as caixas já separadas. Rosa, ao ver a mulher, ficou tensa, apertou os dedos um no outro, mas a visitante não veio com veneno, veio quebrada.
Eu hesitou, olhando para Rosa como quem procura coragem. Não criei minha filha para isso. Não criei para machucar ninguém. As palavras ficaram suspensas entre elas, como uma pequena tentativa de costurar algo que jamais seria inteiro de novo. Ninguém respondeu, não havia resposta. Pouco depois, a mulher saiu carregando duas caixas pequenas e quando o portão se fechou atrás dela, foi como fechar também o último capítulo daquela dor. Dias se passaram.
A rotina da casa começou a se reconstruir devagar. Com cada gesto, Rosa parecia recuperar um pedacinho de si. Dormia melhor, comia melhor, falava mais alto, mas ainda havia algo dentro dela que tremia às vezes. Uma cicatriz invisível que surgia quando ela via uma sombra passar rápido demais ou quando os meninos choravam alto. Rafael percebeu e sabia que precisava fazer mais.
Numa noite tranquila, sentado ao lado da mãe na varanda, ele respirou fundo. Mãe, eu tenho uma surpresa paraa senhora amanhã. Eu não preciso de surpresa nenhuma, meu filho. Já tenho tudo o que quero. Tem sim. Rafael sorriu olhando o céu escuro. A senhora sempre quis. Rosa franziu o senho, curiosa, mas ele não explicou.
Na manhã seguinte, Rafael levou Rosa e os gêmeos de carro. O dia estava claro. O sol brilhava como se tivesse sido lavado pela chuva da noite anterior. Rosa olhava pela janela com um sorriso tímido, sem entender exatamente para onde estavam indo. Passaram por ruas arborizadas, casas simples, crianças brincando na calçada, até que o carro estacionou diante de uma casinha branca com telhado de barro e um jardim cheio de buganvilhas, estalando em tons de rosa e roxo. Uma casa pequena, mas viva. Uma casa que parecia sorrir.
“Rafael, o que é isso?”, perguntou Rosa devagar, como se tivesse medo de tocar o ar. Rafael saiu do carro. abriu a porta para ela e colocou uma chave pequena e pesada na mão dela. Isso é seu, mãe, uma casa só sua, do jeito que a senhora sempre sonhou. Rosa ficou olhando para a chave como se fosse feita de luz.
Minha da senhora confirmou ele inteirinha. Os olhos dela encheram de lágrimas. Rafael a guiou até a porta. Quando ela entrou, encontrou móveis simples, aconchegantes, uma cozinha com janela grande, um quarto com cortinas leves, uma mesa com toalha nova e, no quintal, um pequeno pedaço de terra, terra fofa, terra que pedia para ser tocada.
Rosa caminhou até ali, sem perceber os próprios passos, ajoelhou-se, pegou um punhado da terra na mão, aquele cheiro de chão molhado, de vida começando, trouxe lembranças que ela tinha esquecido das manhãs no interior, das hortas do pai, dos dias em que a pobreza existia, mas o medo não. “Meu filho,” ela disse, a voz quase não saindo. “Eu eu não mereço tudo isso.
” Rafael se ajoelhou ao lado dela. Merece sim. Merece muito mais. Merece paz. Rosa passou a mão pelo rosto, secando as lágrimas. E os meninos? Eles vão vir aqui todo dia”, sorriu ele. “Isso aqui também é casa deles.” Como se entendessem, Léo e Lucas balbuciaram algo e começaram a bater palminhas. Rosa riu. Um riso cheio, verdadeiro, daqueles que fazem o peito abrir.
Alguns meses depois, a horta de rosa já estava crescendo. Ela cultiva coentro, cebolinha, alface, uns pés de girassol que os gêmeos tinham ajudado a plantar com a mãozinha cheia de terra e alegria. Rafael visitava todos os dias, às vezes para levar comida, às vezes para pedir comida, às vezes só para sentar no quintal e respirar. Os gêmeos corriam atrás das borboletas enquanto Rosa os chamava. Vem cá, meus amores.
Cuidado com a cerca. Era uma cena tão simples e tão bonita que fazia Rafael sentir aquela velha culpa dissolver devagar, como nevem ao sol. Num fim de tarde, enquanto Rosa regava os giraçóis, Rafael se aproximou e beijou sua testa. Obrigado, mãe. Por que, meu filho? Por nunca ter desistido, nem de mim, nem da vida. Ela sorriu, olhando para o sol, descendo atrás das árvores.
A vida da gente demora, mas uma hora floresce. Os girassóis, altos e amarelos, balançaram com o vento. Os gêmeos riam no chão de terra, as mãozinhas sujas, o rosto feliz. E quando o sol caiu devagar no horizonte, iluminando a casinha branca, Rosa percebeu que aquele era o momento que ela tinha pedido a Deus tantas vezes.
Um lar sem medo, um lar onde ela fosse respeitada, um lar onde o amor não doesse. Rafael, vendo a mãe tão inteira, tão dona de si, respirou fundo. A casa antiga tinha sombras, a nova tinha luz. E naquele pedaço de terra simples, cercado de giraçóis, começou a nascer o que nenhum luxo do mundo poderia comprar. Liberdade.