A chuva caía fina sobre o bairro nobre de Morumbi. As gotas desciam lentas pelos vidros da mansão Monteiro, riscando o reflexo de um lar que parecia respirar por aparelhos. O relógio da cozinha marcava 7:13, o mesmo horário em que o coração de Clarice, esposa de Ricardo, parara de bater há quase um ano.
Desde então, o tempo ali dentro também havia parado. O mármore brilhava, mas o ar tinha cheiro de mofo e desuso. As janelas estavam sempre fechadas. O piano na sala de estar permanecia coberto por um lençol branco, como se alguém quisesse esconder a lembrança do som. Nas paredes fotos antigas.
Clarice sorrindo, as seis filhas em volta, todas em voltas em pó. No andar de cima, Laura, a mais velha, olhava o próprio reflexo no espelho e puxava um fio de cabelo com força. Cada gesto era um grito contido. No quarto ao lado, Isabela, de apenas 5 anos, apertava uma boneca sem um braço e não dizia uma palavra desde o velório da mãe. No escritório, Ricardo Monteiro observava a chuva pela janela.
Terno, gravata, olhar perdido. Um homem acostumado a vencer tudo, menos o silêncio dentro da própria casa. O som do telefone o tirou do trans. Mais uma pediu demissão, senhor, informou a governanta dona Carmen com a voz cansada. Ricardo suspirou fundo. Quantas já foram? 37 em duas semanas.
Ele fechou os olhos, massageando as têmporas. Nem o dinheiro compra paz”, pensou Carmen ao sair. Horas depois, o portão de ferro se abriu e Luía Almeida entrou. Trazia nas mãos uma pequena bolsa de pano e um guarda-chuva quebrado. Vinha do Capão Redondo, dois ônibus e uma caminhada de 15 minutos. A calça jeans estava molhada até os joelhos, mas o olhar firme, tranquilo.
Ela parou diante da casa, respirou fundo e sorriu de leve, como quem tenta ouvir algo além do vento. O motorista curioso perguntou: “Primeira vez aqui?” Primeira vez num lugar que não respira. Quando a porta se abriu, o cheiro de desinfetante e tristeza quase a fez torcir. As luzes brancas da entrada ofuscavam, refletindo nos pisos polidos.
Tudo brilhava e ainda assim parecia morto. Dona Carmen surgiu, braços cruzados, olhar desconfiado. A senhora é a nova empregada? Sou sim, Luía. O Dr. Ricardo não gosta de conversa. Faça o seu trabalho e evite perguntas. Luía assentiu, seguiu os passos pesados da governanta até o escritório. Ricardo mal levantou a cabeça quando ela entrou.
“A senhora é a 38ª”, disse ele seco. “Se durar um dia, já é milagre.” Ela deu um pequeno sorriso. Milagres começam com o que ninguém quer fazer. Abrir a janela. Ricardo levantou o olhar surpreso com a calma dela. Só não toque nas meninas. Elas já sofreram demais. Ninguém cura o que não toca, senhor. O silêncio que se seguiu pesou mais que o som da chuva.
Ele a dispensou com um gesto e voltou ao computador, mas as palavras dela ficaram pairando no ar. No andar de cima, Luía começou a limpar os quartos. passava o pano devagar, observando cada detalhe, os brinquedos esquecidos, os cadernos abertos com letras tremidas, a cama desfeita de uma criança que não voltara a dormir ali desde o luto.
No quarto de Isabela, encontrou a boneca sem braço caída no chão. Ela a pegou, limpou o rostinho e costurou o pano rasgado com linha azul que trazia na bolsa. Pronto, menina, todo mundo pode ser inteiro de novo”, murmurou. De repente, uma risada curta ecoou do corredor. Uma das gêmeas, Beatriz, zombando. A nova empregada fala com boneca. Luía apenas sorriu.
Melhor falar com quem escuta do que gritar para quem não ouve. As meninas riram e sumiram correndo. O som dos passos misturou-se a música distante de um comercial na TV. Era o primeiro somquela casa. em muito tempo. À noite, Luía desceu para a cozinha, encontrou dona Carmen preparando o jantar, o rádio ligado baixinho numa estação de samba antigo. “O doutor não janta com as filhas?”, perguntou Luía.
Desde que a dona Clarice se foi, ninguém senta à mesa, cada uma come no quarto e o piano fechado como o coração dele. Luía olhou para o teto, sentia o peso do silêncio descendo pelos andares. Depois do jantar subiu para recolher os pratos. No corredor viu uma porta entreaberta, o quarto de Laura.
A garota tocava uma única nota no piano elétrico portátil, repetidas vezes até que o som falhava. Luía não entrou, ficou apenas encostada na parede, ouvindo e quando a nota parou, ela sussurrou quase imperceptível. Continua. O som ainda tá aí. Laura olhou de relance pelo espelho e viu a mulher parada, silenciosa, sorrindo de leve. Não disse nada, mas também não fechou a porta.
Na madrugada, a chuva engrossou. Um trovão sacudiu as janelas. Luía levantou, foi até a sala e percebeu que todas as janelas estavam lacradas com fita adesiva. Ela pegou uma espátula e começou a arrancar uma a tiras secas e amareladas. O vento entrou de repente, espalhando o cheiro de terra molhada.
A cortina balançou, um porta-retrato caiu, o vidro se partiu, ela o pegou. Era a foto de Ricardo e Clarice no dia do casamento. Luía limpou o caco com o pano de prato, recolocou a foto no centro da mesa e disse baixinho: “Não dá para esconder o ar para sempre”. Dona Carmen, acordada pelo barulho, apareceu na escada.
“Que loucura é essa? Vai acordar as meninas? Deixa o vento entrar. Dona Carmen”, respondeu Luía, sem virar o rosto. “A casa tá sufocando.” Ricardo desceu alguns minutos depois de pijama, irritado. “O que pensa que está fazendo?” Luía segurou o pano de prato nas mãos, firme. “Só limpando o ar, senhor.” Ele ficou parado, olhando-a por um instante.
O vento bagunçava o cabelo dela e, por trás, a cortina dançava com a chuva. Algo nele por um segundo, pareceu querer respirar também, mas logo ele se virou e subiu sem dizer nada. Luía sorriu sozinha, caminhou até a cozinha, pendurou o pano de prato no fogão e apagou as luzes. Quando o sol da manhã seguinte atravessou o vidro limpo da janela, um feixe de luz dourada cortou o corredor. Pela primeira vez, o chão de mármore refletiu cor.
Do andar de cima, ouviu-se um som suave, um risinho curto, abafado, de criança. Luía ergueu o rosto, olhos fechados, respirando fundo o cheiro de café e chuva. E ali, no meio do silêncio antigo, algo vivo se mexeu outra vez. Amanhã seguinte, amanheceu com cheiro de pano molhado e guache barato.
Quando Luía empurrou a porta da sala, o mundo abriu num campo de batalha colorido. Almofadas rasgadas, farinha como neblina branca no ar, pegadas de tinta pelo mármore. No sofá, seis pares de olhos esperavam uma explosão. Não veio. Bom dia, disse ela apenas. Silêncio. As gêmeas riram por dentro, apertando os lábios para segurar o riso.
Luía calçou as luvas, respirou e começou pelo canto. Movimentos curtos, firmes. A espuma fez desenhos redondos no chão. Ela seguiu o rastro como quem colora um livro. Havia um ritmo ali, quase música. Enquanto limpava, cantarolou baixinho uma cantiga que a mãe costumava cantar no quintal do Capão.
O som atravessou a sala suave, como se não pedisse licença. No corredor, Beatriz coxixou no ouvido de Bianca. Agora a aranha de plástico caiu dentro do balde. Quando Luía mergulhou a mão e a vice, esperavam o grito. Em vez disso, ela pegou a aranha, girou entre os dedos e caminhou até as duas.
tão real que quase respira”, falou devolvendo. “Vocês têm mão boa para truque”. Beatriz desviou o olhar. Bianca perdeu a graça. Era como tentar assustar o mar. Na cozinha, o rádio antigo da dona Carmen chiava um samba de domingo. A geladeira tinha pouco, dois ovos, um resto de arroz, bananas muito maduras, um pedaço de manteiga.
Luía colocou a frigideira no fogo, um fio de óleo, mexeu o arroz, abriu os ovos, salco, manteiga para as bananas. O açúcar queimou no ponto certo, soltando um cheiro doce que subiu pela escada. Isabela apareceu primeiro, ainda de pijama, a boneca sem braço apertada no peito, ficou na porta como um passarinho. Luía fingiu não ver.
Montou um prato pequeno, bolinhas de arroz dourado, duas rodelas de banana caramelizada e deixou no canto da mesa. Depois se afastou e começou a organizar a gaveta de panos. de costas. O garfo raspou o prato devagar, uma primeira mordida, outra. O som foi tão leve que só quem estava esperando por ele pôde ouvir. Mais tarde, recolhendo roupas, Luía abriu o armário de Sofia e achou lençóis úmidos e escondidos, embrulhados às pressas. Não havia cheiro que a assustasse. Tinha sido pior.
Antes ela pegou tudo, colocou num saco grande e quando se virou, Sofia estava na porta, o rosto vermelho. “Me desculpa”, disse a menina, quase sem voz. Luía falou baixo, como quem fala para dormir. “A gente vai deixar um balde com água morna e toalha no seu banheiro. Se acontecer, você troca sozinha.
Sem barulho, sem vergonha. Combinado? Sofia assentiu rápido, os olhos cheios de um alívio diferente de alegria. É nosso segredo! Completou Luía, piscando no corredor. Júlia respirava curto, costas na parede, mãos no peito. Luía reconheceu o ritmo do ar quando falta ar. Ajoelhou ao lado sem tocar. Vê cinco coisas, Ju.
Bem aqui. O o lustre, a porta. Sua luva, o tapete, meu tênis. Quatro que dá para tocar. Júlia passou a palma no mármore, no próprio braço, no zíper da blusa, na borda da parede. Três para ouvir: o rádio, seu, seu chinelo, a chuva, duas para cheirar. Júlia cheirou a camiseta, depois o sabonete que alguém tinha derrubado no chão. Uma para provar.
Ela pegou um confete esquecido da guache na língua. fez careta, riu curtinho. O peito desceu, a respiração voltou. Melhorou? A menina assentiu, pingando suor na testa. Não disseram mais nada. Não precisava. Laura evitava lugares com música. Em seu quarto, um piano elétrico portátil descansava sob uma capa cinza.
Luía entrou só para tirar o pó do criado mudo. Deixou sobre o teclado uma flanelinha branca, limpa, com uma palavra bordada à mão. Respira. Não esperou reação. Quando fechou a porta, ouviu um tec tec tímido. Uma tecla testada, duas. Parou ali no corredor, os olhos fechados, o corpo inteiro escutando o som como quem toma água depois de muito calor.
As gêmeas não desistiam. À tarde, posicionaram um balde d’água sobre a porta do lavabo. Quando Luía empurrou, a água desabou fria no corpo todo. O grito que esperavam virou riso, um riso redondo que estourou pelos azulejos. “A engenharia tá boa”, ela disse, torcendo o cabelo. “Mas dá para melhorar esse ângulo”.
Bianca correu, trouxe uma toalha. Beatriz fingiu que não viu, mas viu. No fim do dia, Ricardo chegou mais cedo. Tinha olheiras profundas e a elegância de quem veste tudo certo sem dormir direito. Parou na porta da cozinha, ficou olhando a mesa posta. Pratos simples, talheres alinhados, copos iguais, pequenas coisas que pareciam grandes.
“Quem fez?”, perguntou ele. “Eu”, disse Luía. e elas ajudaram. Ele olhou para as filhas, espalhadas em cadeiras longe uma da outra. Quis dizer alguma coisa, não saiu. Dona Carmen apareceu com uma pilha de roupas para dobrar, as mãos largas e hábeis. chamou Luía num canto. Não se iluda.
Esse lugar engole quem acha que pode arrumar tudo. Eu não arrumo tudo, só o que dá para hoje, respondeu Luía, amarrando o cabelo. A noite desceu pesada, de céu baixo. O rádio ficou mudo. Laura sumiu. Levaram alguns minutos até Luía notar a ausência. alguns passos, a escada de serviço, a porta do terraço aberta, o vento ali era outro, mais frio, mais alto.
Laura estava sentada no parapeito, os pés para fora, a cabeça encostada no joelho. Não olhava para baixo, olhava fixo pra frente, como se não houvesse chão. Luía não correu, caminhou devagar, sentou no piso gelado a dois passos. Tá ventando bonito, comentou como quem fala do tempo. Nada. Às vezes a gente só quer que o barulho que tá dentro pare. Um carro buzinou na rua, um cachorro latiu.
Um avião cortou o céu com um pisca distante. Eu gostei da flanelinha. A voz de Laura saiu baixa, arranhada. Eu tentei. A mão não vai. A mão vai quando a gente deixa ela ir sem prometer nada. Não entendi também não. Luía sorriu sem graça. Só fica aqui comigo um pouco. A gente não decide nada hoje. O vento batia nos fios soltos do cabelo de Laura, colando no rosto.
Luía tirou um elástico do punho e esticou na sua direção, sem a encostar. Segura isso. Quando o vento puxar, você puxa de volta. Laura pegou o elástico. A mão tremia menos. Se eu cair, eu caio junto”, disse Luía. Simples. Laura virou o rosto. Pela primeira vez desde que Luía entrou naquela casa, encarou alguém sem raiva dentro e chorou, um choro feio, molhado, que limpava.
Luía não abraçou, só respirou junto, no mesmo compasso até o pranto secar. Ricardo apareceu na porta do terraço, parado, sem saber se avançava. Viu as duas no chão e não entendeu as poucas palavras, mas entendeu o silêncio. Ficou ali quieto do lado de fora até Laura levantar do parapeito por conta própria. De volta ao corredor, Laura não quis falar com ninguém.
Entrou no quarto, fechou a porta, ligou o piano. A primeira nota saiu fraca e falhou no meio, como se tivesse vergonha. A segunda ficou inteira, a terceira encontrou a quarta. Luía ficou plantada no corredor até a melodia se desfazer num suspiro. Mais tarde, no quarto de Júlia, Luía montou uma gaveta com coisas que acalmam: uma luminária pequena em forma de estrela, um pedaço de tecido macio, um sachê de lavanda, um doce de menta, um sininho. Quando a cabeça gritar, abre aqui.
É para lembrar que tem mundo fora do grito. Júlia fez que sim. Sério? como quem recebe um presente caro. Quase meia-noite. Luía passou pelos quartos devagar, checando respirações, tirando brinquedos pontudos do chão, apagando luzes. No quarto de Sofia, deixou um balde com água morna e duas toalhas. Em cima da cômoda, um bilhete escrito à mão: “Se precisar, tá tudo bem”.
Quando desceu, a cozinha ainda tinha cheiro de banana caramelizada, misturado com café velho. O pano de prato secava pendurado no forno. Luía encostou na pia, cansada, as mãos abertas, sentindo a pedra fria. O relógio marcava 7:13 de novo. Alguém tinha parado o ponteiro sem querer. Ela o empurrou devagar. O tictac voltou.
De repente, passa os miúdos na escada. Isabela apareceu, a boneca no colo, agora com um remendo tosco de braço costurado com linha azul. A menina se aproximou, hesitou, ergueu a boneca como quem mostra um segredo. Clara, sussurrou o nome. O primeiro som desde o velório. Luía piscou para não molhar o olho.
Oi, Clara, respondeu sério, cumprimentando a boneca com a ponta dos dedos. Isabela encostou a cabeça no avental de Luía por um segundo, um toque curto, quase nada, e se afastou correndo, os pés descalços, fazendo barulho de chuva no corredor. No chão, perto da porta, ficou um pequeno fio de linha azul que se soltou do remendo.
Luía pegou, enrolou no dedo, um pedacinho de nada, um fio que amarra, um fio que puxa o ar de volta para dentro da casa. Uma semana passou e a Casa Monteiro parecia respirar um ar diferente. Ainda era uma mansão silenciosa, mas agora o silêncio tinha som. O barulho pequeno de talheres, o assubio da chaleira, o riso contido que escapa quando alguém tenta esconder alegria.
No jardim, as gêmeas brincavam de lavar bonecas dentro de bacias, o sabão formando pequenas nuvens de espuma que voam com o vento. No varal, lençóis brancos tremulavam ao sol. Pela primeira vez, o cheiro da casa não era de mofo, mas de café e sabão em pó. Luía pendurava um pano de prato e pensava no capão, nas paredes descascadas da casa da mãe, nas flores que cresciam entre as rachaduras do cimento.
“Tem coisa que só nasce quando o chão é duro”, murmurou, enxugando o rosto com o antebraço. Na cozinha, Sofia batia ovos com força, concentrada. “Calma, menina, senão o bolo foge”, disse Luía rindo. As pequenas riram também. Júlia trouxe farinha e espalhou metade na pia. Beatriz roubou um pedaço de banana e sumiu. Era um caos doce, diferente do caos antigo.
No fim da tarde, o bolo cresceu torto, o cheiro invadiu a casa e as meninas correram chamando o pai. Ricardo, que chegava com o palitó ainda nos ombros, parou na porta da cozinha. Seis rostos esperando. Um prato simples, um riso tímido. É para mim? perguntou como se não acreditasse, Luía secou as mãos no avental. É para todos.
Ele se sentou. As meninas hesitantes o imitaram, os talheres te lintaram e a primeira refeição em família desde o funeral aconteceu sem discurso, sem reza, sem plano, só a presença. Dona Carmen da pia enxugou os olhos disfarçando. Aleluia! murmurou, voltando ao trabalho. Naquela noite, Luía ouviu passos leves pela casa, saiu do quarto e encontrou Laura na sala, em frente ao piano coberto. “Posso?”, perguntou a menina, como se pedisse perdão.
Luía apenas acenou. Laura tirou o lençol. O pó subiu como fumaça antiga. Os dedos tocaram o teclado hesitantes. O som saiu fino, arranhado, mas era música. A mesma canção que Clarice costumava tocar antes do jantar. Ricardo na escada parou para ouvir. As notas atravessaram o corredor e tocaram nele de um jeito que doeu.
Quando terminou, Laura virou-se. Acho que desafinou. Luía sorriu. Então amanhã a gente afina. Ricardo limpou os olhos com o dorso da mão antes de subir, sem dizer nada. Os dias seguintes vieram com ritmo novo. As meninas ajudavam Luía a arrumar os quartos, faziam pulseiras com contas antigas, decoravam a cozinha com desenhos coloridos.
Cada pulseira levava uma palavra: coragem, fé, amor, paciência, perdão. Luía usava a dela, esperança, presa no pulso já meio desbotada. Um sábado de sol, Ricardo apareceu na porta da cozinha. Vamos sair um pouco”, disse todos. As meninas gritaram, correram, buscaram sandálias, foram ao parque Ibirapuera. No gramado, entre pipas e cachorros, parecia que o mundo inteiro se lembrava de rir.
Ricardo observava Luía empurrar Isabela no balanço e algo apertava o peito dele. Uma mistura de gratidão e culpa. No caminho de volta, o rádio do carro tocava um samba antigo. As gêmeas dormiram no banco de trás. Luía olhava pela janela, o sol batendo nas árvores. “Faz tempo que não ouço música assim”, disse ela.
“Clarice adorava essa”, respondeu Ricardo Baixo. Um silêncio gentil se instalou. Na segunda-feira, Helena apareceu, entrou sem bater, perfume caro cortando o ar. “Ricardo, você tá maluco?” A casa virou creche. Ele respirou fundo. São minhas filhas, Helena. E essa mulher, essa tal de Luía, empregada, babá, psicóloga.
O quê? Luía, que estava limpando a mesa, levantou o olhar. Só alguém tentando ajudar. Helena riu seca. Ajudar com essa roupa de feira. No fazano, ninguém vai te servir, nem água, querida. Luía ficou quieta. Ricardo cortou a conversa com um gesto, mas a ferida ficou à noite sozinha.
Ela costurava o avental rasgado e pensava em ir embora. Quando foi guardar a linha, encontrou no bolso um papel dobrado, um desenho feito por Sofia, sete bonecos de mãos dadas e no meio uma mulher com cabelo preso e um coração enorme no peito. Abaixo, em letras tortas, Luía faz a casa rir. Ela chorou baixinho, sem fazer barulho.
Dois dias depois, Ricardo a convidou para jantar. Nada foi mal, só para agradecer. O restaurante era o fazano. Ela hesitou. Eu não tenho roupa para isso. Você não precisa, respondeu ele. É só jantar. O salão era cheio de luzes mornas e taças finas. As pessoas olhavam, algumas com curiosidade, outras com desdém.
Helena estava lá também, por coincidência, ou não. Um olhar bastou para Luía sentir o desconforto subir como calor. Durante o jantar. Ricardo falou de Clarice. Contou como ela fazia bolo nas noites de chuva, como dançavam na cozinha, como tudo parou depois que ela se foi. Eu achei que o amor tinha um fim. Você me fez duvidar disso.
Luía segurou o copo d’água firme. Eu não fiz nada, doutor. Só lavei o chão e deixei as janelas abertas. O garçom trouxe a sobremesa, um pudim. Ricardo sorriu. Clarice fazia igual. Luía experimentou o gosto doce e pesado. Então ela devia ter boas mãos.
Na saída, ela agradeceu, recusou o táxi e preferiu voltar de ônibus. No espelho retrovisor do carro, Ricardo a viu desaparecer na chuva. O guarda-chuva quebrado, o cabelo preso, o passo leve. Naquela noite, deitada na cama simples dos fundos, Luía pensou nas palavras de Helena, no olhar do garçom, na voz de Ricardo. Do lado de fora, as meninas dormiam. A casa inteira dormia.
Só ela ficou acordada, ouvindo o som da chuva no telhado. No dia seguinte, quando Ricardo desceu para o café, encontrou um bilhete na cozinha. Obrigada por ontem, mas meu lugar é onde o barulho precisa de ouvido. Ele procurou pela casa inteira, encontrou-a no jardim de joelhos, plantando uma muda de florzinha amarela entre as pedras do calçamento. “Isso vai morrer aqui”, disse ele sem fôlego.
Ela sorriu com a terra nas mãos. Então que morra tentando. O vento balançou o cabelo dela. A florzinha inclinou o caule teimosa. Ricardo abaixou-se, pegou um punhado de terra e ajudou a cobrir a raiz. “O asfalto é duro”, disse. “É”, respondeu ela, mas o sol nasce para todo lado. Eles ficaram em silêncio. As meninas chegaram correndo, rindo, sujando os sapatos novos na lama.
Luía levantou-se, olhou para a flor, pequena, mas viva. O riso das crianças ecoava e, pela primeira vez, o som não parecia fora de lugar naquela casa. E no meio do concreto, uma coisa viva continuava insistindo em crescer. A casa parecia mais leve quando a manhã começou com cheiro de pão quente e café novo. Luía passou pelo corredor acendendo luzes, recolhendo casacos, sentindo nos dedos a textura limpa do mármore.
Aquele mármore que já foi frio e agora devolvia um calor discreto. Mariana vinha melhor nos últimos dias. Menos ferro nos ombros, menos faca no olhar. Mesmo assim, Luía reparou nos silêncios dela. Silêncios que não eram vazios. eram cheios demais. No almoço, as gêmeas discutiram por causa da última fatia de lasanha. Júlia interveio com diplomacia.
Sofia riu e entregou a sua. Isabela trouxe um desenho da família de mãos dadas, clarice como um sol. Mariana observa tudo, distante, apoiada no batente, os braços cruzados, tentando participar sem saber como. Ricardo serviu a si mesmo por último e, antes de sentar, passou a mão de leve no topo da cabeça da filha mais velha, um gesto rápido. Ela fingiu não notar. Notou.
À tarde, o céu armou uma chuva curta e grossa. Luía reorganizou a sala para um cineminha de cobertor. Pipoca, luz baixa, as pequenas amontoadas. Mariana ficou de pé, encostada na estante, fingindo olhar o celular. No meio do filme, Luía percebeu. A menina não piscava, estava ali e não estava. Entre uma cena e outra, Mariana sumiu. Levou poucos minutos para a dor dar notícia.
Dona Carmen apareceu pálida na escada. segurando um frasco aberto. Luía, o banheiro, a Mariana, o mundo encaixou em velocidade. Luía correu. Porta escancarada, cheiro de calmante e azulejo molhado. Mariana sentada no chão, braços pesados, o rosto branco demais, a mão tremendo de frio ou medo, não dava para saber. Ei, tô aqui”, disse Luía ajoelhando.
“Fica comigo, respira comigo.” Eu só queria parar. A voz de Mariana era um fio. “Só hoje? Eu sei. A gente vai juntas.” Ricardo chegou como quem leva um tiro. Viu o frasco na mão da mãe, os olhos de Mariana perdendo o foco. Pegou a filha no colo. A chuva lá fora engrossou. No corredor, as gêmeas choravam sem a entender. Sofia agarrava a Isabela. Júlia tremia.
Luía organizou o caos com frases curtas. Dona Carmen, liga pro hospital. Eu vou na frente com eles. Meninas, daqui a pouco eu volto, prometo. No carro, o semáforo era sempre vermelho. Mário Quintana falaria das noites que não acabam. A de Ricardo era assim, no meio da tarde.
Ele dirigia em linha reta que balançava, a mão firme no volante, o queixo tenso. Luía no banco de trás, mantendo Mariana acordada. Me conta um lugar bonito, Mari. Ah, a praia. Ela sussurrou. A mamãe? Isso. A areia quente. O barulho certinho das ondas. Só entra quem a gente deixa. O plantão do hospital tinha cheiro de álcool e urgência, lavagem, monitor, soro. Uma médica de voz calma explicou que o tempo tinha sido a favor.
Ricardo apoiou a testa no vidro frio do corredor e deixou que o corpo tremesse. Luía ficou ao lado, mãos no bolso do avental, o pulso batendo na palavra bordada. Esperança. Carmen chegou mais tarde, marcada do susto e de culpa. Olhou Luía de cima a baixo, como sempre, mas havia outra coisa no olhar, algo desarmado.
Não falaram, sentaram, esperaram. Quando Mariana abriu os olhos, parte da noite que morava dentro dela pareceu sair pela respiração. Não estava alegre, estava viva. Ricardo tocou a mão da filha, leve, medo de quebrar. A gente volta para casa quando você quiser disse.
Não quero voltar para ontem, ela respondeu, olhos marejados. Luía segurou a língua para não chorar. Ficou. As meninas receberam a notícia por chamada de vídeo. Luía ajoelhada ao nível delas, explicando com cuidado: “Remédio demais, corpo fraco, cabeça que doeu além do normal, promessa simples. Ela tá aqui, vai ficar” na tela. Isabela encostou a boneca no rosto do celular como beijo de vidro.
As gêmeas mostraram um cartaz de cartolina. “Volta logo, Mari!” Sofia levantou a pulseira. Coragem! Júlia bateu o sininho da gaveta antipânico, um clin limpo que atravessou o corredor do hospital como um convite. No dia seguinte, a casa foi preparada sem barulho. Lençóis passados, cortinas abertas, o piano descoberto. Luía colou bilhetinhos pela casa.
Água, respira agora. Não eram ordens, eram amigos. Mariana voltou sob um céu de pós-chuva. A rua tinha cheiro de terra e gasolina e o portão abriu como um abraço tímido. As irmãs a esperavam no hall, alinhadas em uma confusão linda. Uma por uma, elas encostaram a testa na dela. Gesto que Clarice ensinara quando a voz doía.
Testa com testa, metade da dor para cada lado. Mariana chorou feio de novo, desta vez sem esconder. Ricardo segurou as costas dela com a palma inteira. A mão que sempre resolveu contratos. Agora aprendia a segurar uma filha sem resolver nada. À noite, a família jantou junto.
O fogão assobiava, a frigideira chiava e Luía comandava uma cozinha que respirava como gente. No meio, o telefone vibrou com mensagens de conhecidos, gente perguntando, especulando, sugerindo internato, especialistas, estrangeiros. Carmen pegou o celular e largou de cara para baixo. Foi até a pia, lavou as mãos, respirou três vezes do jeito que viu Luía fazer com Júlia. Voltou à mesa.
Ricardo disse ela pigarreando. Amanhã é a data da Clarice. A mesa ficou em silêncio. A gente planta a cerejeira? Luía perguntou baixinho. No jardim. Plantar dá trabalho”, comentou Ricardo meio rindo. “A gente tem mão”, respondeu a filha mais velha, surpreendendo a si mesma.
“E paciência, a gente aprende? Manhã de cerimônia. O jardim foi ficando bonito com o simples. Uma toalha branca sobre um banco, a foto de Clarice numa moldura limpa, fitas finas penduradas num galho alto que o vento fazia dançar. Helena apareceu com flores caras. e frases barulhentas, mas percebeu que não era sobre ela.
Ficou num canto, segurando a bolsa como quem segura um escudo. Carmen, sem maquiagem demais, sem autoridade de pedra, era só avó. Ricardo falou pouco. Obrigado por ter sido casa pra gente, Clarice. Disse, voz falhando só na última palavra. As meninas contaram memórias curtas. Ela fazia a melhor pipoca. Ela sabia onde doía sem eu falar. Ela errava a letra do samba, mas dançava mesmo assim.
Cada frase batia e voltava como onda em pedra. Chegou a vez de Mariana. Ela tirou um papel do bolso. Mãos tremendo menos do que antes. Eu tinha medo de esquecer. Leu devagar. Agora eu quero lembrar de outro jeito, sem faca, sem culpa, só com o que couber na minha mão. Não era poema, era verdade. Bastou.
Luía pegou a muda de cerejeira, terra escura, raiz fina. As meninas se revesaram no buraco. Pá, mão, pá, mão. Carmen ajoelhou, não por cerimônia, por necessidade. E com as unhas caras sujas de lama, ajeitou um lado da cova. Helena hesitou, tirou a aliança para não sujar e, enfim, ajudou. Pela primeira vez, olhou Luía sem a pergunta: “De onde você veio? só viu o que você tá fazendo.
Quando terminaram, ficaram todos em silêncio. Um vento morno passou. Um único botão rosa se abriu, prematuro, como se dissesse: “Eu consigo”. As gêmeas riram. Ricardo abraçou as seis ao mesmo tempo. Um esforço bonito e torto. Luía deu um passo atrás, os olhos brilhando da mesma água que brilhou no primeiro dia de chuva.
Depois, no varal, ela estendeu um lenço que tinha na bolsa desde sempre. Era da mãe dela, tecido fino, algumas flores bordadas. Preso ao arame, o lenço dançou no vento do jardim da elite de São Paulo, como dançou um dia no quintal do Capão, mesma brisa, outro c, o tru Carmen se aproximou devagar. Eu errei com você”, disse.
Olho no lenço. Não à toa. Achei que a casa precisava de pedigri. Precisava era de pulso e ouvido. Luía sorriu de lado, humilde e teimosa. A casa precisava de gente. “Fica”, pediu a avó baixinho, “Como o que você quiser ser. Eu fico enquanto elas precisarem”. No fim da tarde, as meninas montaram uma mesa no jardim.
Copos diferentes, talheres faltando. O bolo saiu torto como sempre e perfeito como sempre. Ricardo trouxe uma caixa pequena. Não é presente, avisou nervoso. É só um obrigado. Dentro havia um crachá simples. Luía Almeida, acompanhante terapêutica. Nada de ouro, só nome e função.
Ela prendeu no avental, o coração rindo alto, mas por dentro. Quando o sol foi embora, Laura tocou três notas no piano da sala com a janela aberta. A noite respondeu com grilos e um vizinho desafinado cantando alguma coisa de cartola. Isabela adormeceu no colo de Luía, a boneca com os dois braços finalmente costurados. Júlia checou a gaveta.
Estrela acesa, sino pronto. Sofia deixou um copo de água ao lado da cama, sem medo do lençol. As gêmeas, em segredo, plantaram mais duas florzinhas no calçamento. Luía passou pelo corredor apagando luzes. No espelho do hall, viu o próprio rosto, cansado, sim, mas vivo. Tocou o crachá no peito, sentiu o pulso bater em esperança. Na porta de vidro que dava para o jardim, parou.
A cerejeira recém plantada tremia leve. Uma pétala rosa única se soltou. atravessou o ar devagar e pousou na palma da mão dela. Ela fechou os dedos, guardando aquilo que não se guarda e sussurrou para ninguém e para todo mundo. Gente floresce mesmo depois da chuva, mesmo com o asfalto.
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Nos primeiros segundos daquela tarde abafada em São Paulo, antes mesmo que qualquer tragédia tivesse nome, o silêncio na mansão…
💥A BEBÊ DA FAXINEIRA POBRE CHORAVA EM SILÊNCIO… ATÉ O MILIONÁRIO DESVENDAR A VERDADE OCULTA
Ainda era noite quando um barulho seco cortou o silêncio, o estalo do plástico da janela batendo com vento frio….
💥Milionário voltou sem aviso e flagrou a empregada com seus trigêmeos — e o choque foi IMENSO
A chuva tinha parado fazia pouco tempo, mas o cheiro de asfalto molhado ainda subia da rua lá embaixo, lá…
💥FAXINEIRA É DEMITIDA POR AJUDAR UMA IDOSA — SEM IMAGINAR QUE ERA A MÃE DO MILIONÁRIO!
A chuva não caía, despencava. Era o tipo de chuva que transformava São Paulo numa cidade de sombras borradas, faróis…
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