Ainda era noite quando um barulho seco cortou o silêncio, o estalo do plástico da janela batendo com vento frio. No quarto apertado, o ventilador fazia um zumbido cansado, girando devagar, como se também tivesse acordado cedo demais. A luz do poste entrava pelas fraselada, riscando o chão como uma lâmina.
E ali, no meio daquela madrugada úmida da Brasilândia, Lúcia acordou com o coração acelerado, sem entender porquê. Por um segundo, ficou imóvel, prendendo a respiração. Sentiu aquele silêncio estranho, pesado, o tipo de silêncio que não combina com bebê. Ela virou o rosto devagar, com medo do que encontraria.
No canto do quarto, o berço improvisado, duas cadeiras, uma tábua, um colchão fino. Parecia escuro demais. A cobertinha estava meio caída, revelando as perninhas miúdas de Ana Clara. Mas a menina não se mexia, nem um suspiro mais forte, nem um resmungo, nada. O peito de Lúcia apertou.
Filha, ela murmurou, a voz embargada, aproximou-se com passos curtos. tentando não fazer barulho, mesmo sabendo que qualquer mãe no mundo preferiria um choro alto àquele silêncio absoluto. Quando tocou a testa da filha, sentiu algo que não soube explicar. Não era febre, não era suor, era ausência.
Aninha respirava sim, mas tão devagar que parecia esforço. Os lábios entreabertos, a cor pálida, os olhinhos semicerrados, como se o sono tivesse puxado a menina para um lugar distante demais. Meu Deus, Aninha, por que você tá assim? Lúcia sussurrou, o medo subindo lento, como água cobrindo os pés.
pegou a filha no colo com a delicadeza de quem segura um passarinho ferido. O corpinho caiu mole contra seu peito, molinho demais, frio demais, quieto demais. Ao fundo, um galo cantou em algum quintal. Outro respondeu. O bairro começava a acordar, mas dentro daquele quarto parecia que o mundo tinha parado. Lúcia respirou fundo, tentando afastar o pânico.
Ela só tá cansada. É isso? Repetiu para si mesma, como se as palavras pudessem virar verdade. Mas a lembrança da fila da creche voltou como uma agulha. Era sempre igual. Mães suadas antes das 6 da manhã, crianças no colo, papelada na mão e a funcionária dizendo pela enésima vez: “Lista de espera, tá grande, mãe? Volta mês que vem, voltar mês que vem e no outro e no outro”.
Por isso ela deixava a Aninha com Neid, a vizinha de porta. Era caro para quem ganhava tão pouco, mas era a única alternativa. E durante um bom tempo, até que parecia funcionar. A menina dormia bastante, comia direitinho, segundo a cuidadora. Uma bênção, diziam. Uma menina que é tinha demais. Quietinha demais.
A frase ecoou na cabeça de Lúcia como uma sirene muda. Ela olhou o relógio. 51. Se não saísse logo, perderia o ônibus das 6. E chegar atrasada na casa do patrão não era a opção. Ricardo Moreira podia até parecer educado, mas educado não era o mesmo que paciente. E Lúcia sabia. Faxineira que falta vira a faxineira desempregada. Colocou Aninha sobre a cama.
Enquanto corria para arrumar a mochila, fraldas, mamadeira, uma muda de roupa, um brinquedinho mordido, tudo em movimentos automáticos. A menina não chorava, nem reclamava. Apenas observava o teto com um olhar distante, como se estivesse tentando focar em alguma coisa que ninguém mais via.
Lúcia voltou, pegou a filha no colo e a abraçou forte demais, talvez. A bebê não reagiu. Na rua, o frio fez Lúcia puxar o casaco até o queixo. Os primeiros ônibus já cortavam a avenida, levantando poeira fina do asfalto gasto. Ela subiu no 174, lotado, segurando o ferro de apoio com uma mão e a filha com a outra. O cheiro de café, suor e desodorante barato misturado preenchia o ar.
Sentiu Aninha pesar no ombro. Dormindo de novo, dormindo cedo demais. Uma senhora encostada à porta sorriu. Nossa, que neném abençoada. Nem se mexe, né? Lúcia forçou um sorriso de volta, mas algo nela travou. Inquietude pura. Ela olhou a filha com mais atenção, viu os cílios imóveis, a boca ligeiramente aberta, a respiração lenta, quase preguiçosa demais, e algo dentro dela, um instinto primitivo de mãe, começou a martelar no fundo da cabeça. Tem algo errado.
O ônibus subiu o viaduto, o céu começando a clarear. Lúcia desceu duas horas depois, já com o corpo doendo nos ombros. O ar do Morumbi era outro. Cheiro de grama cortada, silêncio caro, ruas limpas demais para lembrar qualquer canto da Brasilândia.
O portão de ferro da mansão reconheceu o código e se abriu com um zumbido baixo. Lúcia entrou pela porta de serviço, como sempre. sentiu o contraste imediato, o piso gelado sob, o aroma de produtos caros misturado com o cheiro do café que a cozinheira já tinha deixado pronto para o patrão. Forrou o chão da lavanderia com uma almofada e alguns panos limpos.
Deitou Aninha ali junto dos brinquedinhos coloridos, blocos, um ursinho sem um olho, um chocalho. Fica aqui, tá? A mamãe vai ficar pertinho. Mas a menina não segurou o chocalho, não sorriu, não esticou os braços, apenas olhou para o teto, aquele mesmo olhar vazio.
Lúcia engoliu seco, começou a limpar a cozinha, esfregando o balcão com força, mas a cada minuto olhava para trás e a cada olhada sentia o peito afundar um pouco mais. Foi no meio desse movimento ansioso que ela ouviu passos firmes no corredor, o som de sapatos caros, seguros, que não conhecem cansaço. Ricardo apareceu na porta, camisa branca com as mangas dobradas, expressão de quem pensa em mil coisas ao mesmo tempo, e nenhuma delas inclui a vida de suas funcionárias.
Ele abriu a boca para cumprimentar Lúcia, mas o olhar caiu imediatamente sobre Aninha, deitada no chão. Um segundo de silêncio. Depois, a sobrancelha dele se arqueou, não de impaciência, de preocupação. Bom dia, Lúcia. B. Bom dia, Sr. Ricardo. Ela tá bem? A pergunta caiu como uma pedra. Lúcia tentou sorrir, mas a voz saiu trêmula. Tá sim, senhor. Ela é quietinha mesmo. Nunca dá trabalho.
Ricardo se agachou ao lado da bebê, encostou a ponta dos dedos na mãozinha dela e Lúcia viu pela primeira vez outra expressão no rosto dele. Um desconforto profundo, quase instintivo. A mão dela tá gelada. Lúcia sentiu o chão afastar um pouco sobre os pés. É do frio, acho”, murmurou já sem acreditar no que dizia. Ele ergueu os olhos para ela.
“Sério, Lúcia, tem certeza que ela está bem?” Aquela pergunta simples atravessou a mãe como um golpe, porque naquele instante ela soube: “Não, não estava tudo bem”. Ela vinha negando para si mesma, mas havia algo errado, muito errado, e a mansão inteira pareceu ficar mais fria. Horas depois, quando Lúcia colocou Aninha no tapete da sala, a bebê tombou para o lado, sem força para manter o corpo ereto, e foi naquela imagem tão pequena, tão frágil, tão errada, que Lúcia sentiu o coração rachar pela primeira vez.
A luz da manhã atravessava o vidro da sala e formava um retângulo claro no chão. Os brinquedos coloridos estavam espalhados ali, prontos para serem tocados. Mas Aninha não tocava, apenas observava aquele pedaço de luz como se fosse distante demais para alcançá-lo.
E nesse reflexo, luz dourada, atravessando os olhos opacos da bebê. Lúcia entendeu que havia um pedido de socorro silencioso ali, um pedido que ninguém tinha ouvido ainda. Amanhã avançava devagar, como se cada minuto tivesse peso. O sol que entrava pela janela da sala. Deixava a mansão mais clara, mas não mais leve, não para Lúcia.
Ela sentia o ar denso, difícil de atravessar, como se cada respiração sua dependesse da respiração fraca de Aninha. A bebê estava novamente caída para o lado, corpo mole, olhos semicerrados, tão pequena, tão silenciosa. E naquele silêncio, Lúcia tinha a sensação de que algo gritava por dentro. Ricardo reapareceu no vão da porta, mas desta vez não vinha apressado, nem com celular na mão. Ele vinha olhando a menina, só a menina.
E isso deixou Lúcia nervosa de um jeito diferente, como se a opinião dele sem querer pudesse mudar a vida das duas. Ele se abaixou ao lado da bebê, atento, colocou a mão perto da barriguinha dela, observando o movimento lento. Ela sempre respirou assim, perguntou quase num sussurro. Lúcia limpou a testa com o dorso do braço. O cheiro suave de desinfetante da casa misturava-se ao suor que escorria pela nuca dela.
Ah, ultimamente ela anda mais cansada, mas achei que fosse normal, sabe? Bebê cresce rápido. Ricardo não respondeu de imediato. Ele a observou como quem monta um quebra-cabeça. E isso só aumentou o desconforto de Lúcia, que engoliu seco. Desde quando? Insistiu. O olhar dela fugiu para o chão uns três, quatro dias, disse baixinho, quase com vergonha. Ela dorme muito quando volta da Nid.
Achei que fosse só porque brincou bastante. Ricardo franziu o senho. Neid, a vizinha boazinha. A única opção que Lúcia tinha. O silêncio que se instalou parecia apontar para algo que Lúcia ainda não entendia, mas que começava a arranhar sua pele por dentro. Foi quando a campainha tocou. Um som curto, mas agudo, que fez Lúcia se sobressaltar.
Ela limpou a mão no uniforme e correu até o portão interno da casa. Era a voz da vizinha, Clara, animada demais para aquela hora. Lúcia, sou eu, a Neid, vim trazer uma coisinha. Lúcia hesitou antes de destrancar o portão. Algo dentro dela, algo que ela não conseguia nomear.
pediu para não abrir, mas ela abriu porque até aquele momento Neid ainda era a pessoa em quem mais confiava. A mulher entrou com passos apressados, segurando uma sacolinha de plástico amassado. O cheiro de perfume doce, forte demais, entrou junto. Menina, achei o macacãozinho rosa da Aninha lá em casa disse sorrindo, mas o sorriso não chegava aos olhos.
Falei: “Vou levar rapidinho antes que a Lúcia precise.” Lúcia percebeu que Neid evitava olhar diretamente para ela. Ou talvez fosse impressão. Talvez fosse só cansaço. Tudo era cansaço. “Você veio até o Morumbi só para isso?”, perguntou, tentando que a voz não tremesse.
“Ah, eu tava por aqui, respondeu Neid rápido demais. Resolvi um negocinho ali perto. Lúcia não conhecia ninguém que tava por ali no Morumbi. Ela mesma só vinha porque trabalhava, mas não disse nada. Não ainda. Quando Neid pediu para usar o banheiro, Lúcia apenas apontou o caminho e voltou para a lavanderia pegar mais roupas.
tentou colocar a cabeça no trabalho, mas cada dobra de toalha parecia torta, cada movimento parecia fora de lugar. 5 minutos, 10, 15. Tempo demais para alguém que só ia ao banheiro. O coração de Lúcia começou a bater mais rápido. Ela secou as mãos na calça, caminhou pelo corredor e percebeu a porta do quarto de hóspedes estava encostada e não deveria estar. Com passos leves, como se pudesse assustar o ar, Lúcia empurrou a porta.
Neid estava ali no quarto, onde a bebê tinha dormido, ajoelhada ao lado da cama, vasculhando algo no chão. Quando ouviu a porta ranger, Neid se levantou num pulo, rindo nervoso. “Eu eu só vim ver a princesa”, disse ajeitando a blusa. “Que bebê mais linda, meu Deus! Estava com saudade dela.
Lúcia não disse nada, apenas observou as mãos da vizinha. Trem-. Minutos depois, Neid foi embora com a mesma pressa com que chegou. O zumbido do portão automático se fechando marcou a saída dela, mas não levou a estranheza embora. Ela ficou no ar como cheiro de queimado depois do fogo. Lúcia voltou para a sala.
A ninha respirava devagar, como se cada suspiro lhe custasse um pedaço de energia. A mãe se ajoelhou, abraçou a filha e passou a mão pelas costas dela. Mas o pensamento insistia: “Porque a Neid quarto? Porque estava no chão? Porque tremia?” As respostas começaram a aparecer como sombras que ela não queria ver. Ricardo cruzou o corredor falando ao telefone.
A porta do escritório ficou entreaberta e algumas palavras vazaram pelo vão. Letargia. Sem febre, Paula. Não reage a estímulos. Não come. Lúcia reconheceu o nome da amiga pediatra dele. Chegou mais perto, sem perceber, como se o corpo fosse sozinho. “Já vi isso antes”, disse a voz feminina do outro lado da linha.
“Em casos de intoxicação ou quando cuidadores usam medicamentos para manter a criança quieta.” O chão girou. Lúcia apoiou a mão na parede. Medicamentos quietas. Cuidadores. Ela lembrou das tardes em que buscava a Aninha. A menina sempre dormindo, sempre calma demais. A voz de Ricardo continuou. Você acha que isso poderia ser sedação? Houve um silêncio curtíssimo, pesado.
Pode e deve ser investigado. Lúcia sentiu o coração falhar um segundo. Sedação. A palavra atravessou tudo, as paredes, a razão, a coragem e pousou exatamente onde mais doía, no medo de ter falhado como mãe. Não deu tempo para pensar muito. Ricardo saiu do escritório decidido.
Lúcia, vamos levar a Aninha ao hospital hoje, ainda de manhã. Ela assentiu sem conseguir falar. Os olhos ardiam, o ar parecia não entrar direito. Pegou a bolsa da filha, os documentos, uma fralda extra. Mas enquanto colocava as coisas na mochila, percebeu que estava esquecendo o casaquinho da bebê. Eu pego”, disse Ricardo, já entrando no quarto de hóspedes. Lúcia ficou na porta.
Ele abriu o armário, puxou uma caixa, mexeu nas gavetas e então um som baixo, algo caindo no chão. Ricardo se abaixou, pegou o sapatinho rosa da bebê, aquele que Lúcia sempre guardava em pares, e franziu o senho. Havia um peso dentro. Ele colocou a mão, virou o sapatinho e um pequeno frasco de vidro caiu na palma da mão dele.
Um frasco minúsculo, transparente, com um rótulo escrito em letras pequenas demais para qualquer mãe não tremer ao ler. Ricardo levantou o objeto contra a luz. O líquido dentro balançou devagar e o rosto dele mudou. Lúcia não sabia o nome do remédio, mas sabia reconhecer o pavor nos olhos de um adulto quando vê algo que não deveria existir num sapato de bebê.
Ricardo virou-se para ela, a voz grave: “Lúcia, isso aqui não é remédio de criança. O mundo dela encolheu. O chão pareceu subir e descer. As lembranças se atropelaram. Neid no chão. Neid tremendo. Aninha dormindo pesado demais. Esse frasco Ricardo completou. Estava escondido dentro do sapatinho da sua filha. Lúcia levou a mão à boca e naquele instante pela primeira vez tudo se conectou como uma luz brutal acendendo num quarto escuro.
Não era cansaço, não era fase, não era bênção nenhuma ter uma bebê quietinha. Era perigo. Perigo dentro da própria casa, perigo colocado por alguém em quem confiava. Segurando o frasco pela borda, Ricardo aproximou-se da porta, chamando Lúcia com um gesto calmo, porém urgente. E foi aí quando ela passou pela sala com Aninha nos braços, que percebeu um detalhe.
O ursinho de pano que sempre ficava ao lado da bebê estava virado de bruços no tapete, como se alguém tivesse tentado se apoiar ali, procurando algo que não encontrou. O ursinho, caído de cabeça para baixo, parecia olhar para o chão. E Lúcia entendeu. Aquela casa estava cheia de pistas. Ela é que não tinha visto antes, agora via e nada mais seria silencioso.
O carro cortava a cidade como uma flecha, mas para Lúcia parecia que o tempo tinha virado gelatina. Tudo lento, tudo pesado. O barulho do trânsito chegava abafado, como se ela estivesse debaixo d’água. Na frente, Ricardo segurava o volante com força, a linha do maxilar rígida, os olhos presos na avenida.
No banco de trás, Lúcia apertava a Aninha contra o peito, sentindo o corpinho da filha oscilar a cada buraco, a cada freada. “Fica comigo, meu amor”, ela sussurrava no ouvido da menina. Não dorme mais, não. Acorda, filha. Fala alguma coisa paraa mamãe. Mas Aninha não falava. Só soltava um suspiro pesado, arrastado, como se respirar fosse um trabalho grande demais.
Lúcia encostou a orelha no peito da filha. Sim. O coração batia, mas devagar, devagar demais. Ela ainda tá respirando? Perguntou Ricardo, olhando pelo retrovisor. Tá. Mas parece que tá cansada de respirar”, respondeu ela, sentindo as lágrimas queimarem os olhos. Lá fora, uma sirene de ambulância passou em sentido contrário.
Lúcia pensou que poderia ser a delas, que talvez devesse ser. O hospital particular parecia outro planeta quando o carro encostou na área de emergência. Fachada de vidro, letras de metal brilhando, seguranças na porta. Lúcia quase se encolheu dentro do uniforme simples, sentindo o mundo gritar. Isso aqui não é para você.
Ricardo desceu primeiro, abriu a porta de trás e praticamente puxou Lúcia com delicadeza, ajudando-a a sair com a criança no colo. “Vem”, disse num tom que não deixava espaço paraa discussão. As portas automáticas se abriram com um pxi suave. O cheiro de desinfetante misturado com álcool invadiu o nariz de Lúcia.
Uma TV ligada sem som passava um jornal matinal. Ninguém ali parecia em pânico, só ela. Emergência pediátrica. Ricardo falou direto no balcão, a voz firme, suspeita de intoxicação medicamentosa. Um ano e meio. A moça da recepção ergueu os olhos, viu Lúcia com ainha mole nos braços e a seriedade preencheu o rosto dela. Enfermeira chamou, apertando um botão. Código amarelo na recepção.
Duas enfermeiras surgiram quase instantaneamente com uma maca pequena. Uma delas pegou Aninha dos braços de Lúcia e naquele momento a mãe sentiu um vazio físico, como se alguém tivesse arrancado um pedaço do corpo dela. “Eu vou junto.” Ela tentou seguir. “Senhora, a gente só precisa que a senhora preencha a ficha, tá?”, disse a outra enfermeira com doçura, mas firme.
A gente vai cuidar dela. Vai cuidar dela. Palavras que deveriam trazer paz. Mas tudo em Lúcia era medo. Sentada numa cadeira de plástico da sala de espera, com uma prancheta no colo, ela tentava lembrar o número do CPF, a data de nascimento da filha, o endereço. O caneta tremia na mão, as letras saíam tortas.
Ricardo sentou ao lado com o frasco dentro de um saquinho plástico nas mãos. Não soltava aquilo por nada. Nome completo da criança”, murmurou Lúcia, escrevendo Ana Clara Almeida Souza, como se cada letra fosse uma promessa. Uma mulher de jaleco branco se aproximou, cabelos presos num coque simples, crachá pendurado. “Doutora Paula, pediatria.” O olhar dela era direto, mas sem dureza. “Lúcia”, perguntou já sabendo a resposta. Sou eu.
Lúcia levantou num salto. Eu sou a Paula, amiga do Ricardo. A gente já estava conversando por telefone. Sua filha já está sendo monitorada ali dentro. Tá, disse, apontando para o corredor de portas fechadas. A respiração dela tá estabilizada por enquanto, mas a gente precisa de mais informações. Lúcia sentiu rápido demais.
Ela ela dorme o tempo todo, não quer comer, fica molinha. As palavras engataram de uma vez só, mas não tem febre, não tosse. Eu achava que era cansaço, que era uma fase. Desde quando isso começou? Perguntou Paula com calma. Uns três, quatro dias. Lúcia repetiu sentindo vergonha da frase. Ela fica com uma vizinha enquanto eu trabalho, a Neid, e sempre volta, calma, dormindo. Doutora Paula trocou um olhar rápido com Ricardo.
Lúcia percebeu e aquilo doeu. Vocês trouxeram algum remédio que possa ter sido dado para ela? A médica perguntou. Ricardo levantou o saquinho plástico. O frasco dentro balançou o líquido transparente reluzindo sob a luz branca. Encontrei isso escondido dentro do sapatinho dela disse. Não é remédio infantil. A médica pegou o saquinho, leu o rótulo, franziu a testa.
Isso aqui é sedativo de uso controlado. Falou baixo, mas Lúcia ouviu cada sílaba como um soco. Em dose errada, em criança pequena, pode ser bem perigoso. A visão de Lúcia embaçou. Quer dizer que que ela não conseguia terminar a frase? Quer dizer que a gente vai tratar sua filha. Paula interrompeu com firmeza.
E também quer dizer que isso precisa ser investigado, porque ninguém tem o direito de dar esse tipo de remédio para sua filha sem orientação médica. Ninguém. Lúcia sentiu por um instante uma mistura estranha de culpa e alívio. Culpa por não ter percebido antes. Alívio por ouvir alguém dizer que aquilo era errado, que não era frescura, que não era besteira de mãe preocupada. O tempo dentro do hospital não obedecia relógio.
Era medido em passos de médico, em barulho de maca, em apitos de monitor. Lúcia esperou. Esperou olhando para a porta por onde tinham levado a ninha. Esperou recitando mentalmente as orações que aprendeu com a avó. esperou, lembrando do primeiro choro da filha, do primeiro banho, do primeiro sorriso, até que o médico da emergência saiu com a máscara pendurada no queixo, suor na testa e um olhar cansado, porém mais leve. Mãe da Ana Clara chamou.
Lúcia se levantou num pulo. Como ela tá, doutor? A voz quase não saiu. Ele respirou fundo antes de responder. Está estável. Agora a gente conseguiu reverter o quadro inicial, mas foi por pouco. Mais algumas horas assim e poderíamos estar falando de outra coisa.
Outra coisa? Lúcia entendeu o que outra coisa queria dizer e sentiu as pernas falharem. Ricardo ao lado, segurou o cotovelo dela para que não caísse. “Ela vai precisar ficar em observação, fazer exames”, continuou o médico. “Mas pelo que vimos até agora, a tendência é de recuperação. Não há sinal de dano neurológico imediato. Vamos seguir monitorando.” Lúcia não se segurou, chorou.
Não aquele choro contido de antes, mas um choro aberto, feio, necessário. Chorou pelo susto, chorou pela culpa, chorou pela filha e por todas as vezes em que achou que estava exagerando e se calou. Quando entrou no quarto de observação, sentiu um aperto diferente. A Ninha estava lá, deitada num bercinho de metal, fios grudados na pele, um monitor ao lado mostrando linhas verdes dançando devagar, mas o rosto dela, o rosto parecia mais leve, sem aquela expressão de sofrimento escondido.
Lúcia se aproximou, encostou a mão na mãozinha minúscula da filha, sentiu um calor morno, normal, e isso foi quase um milagre. “Oi, meu amor”, sussurrou, a voz quebrada. “A mamãe tá aqui, tá?” Aninha não respondeu. Dormia de verdade dessa vez. Um sono profundo, mas tranquilo, sem drogas, sem veneno. Lúcia encostou a testa na lateral do berço, deixando as lágrimas caírem em silêncio.
Foi aí que ouviu outra voz. Lúcia. Ela se virou. Na porta, uma mulher de blazer simples, crachá, pendurado. Joana, serviço social. Posso falar com você um pouquinho? perguntou num tom que misturava firmeza e cuidado. Lúcia olhou para a filha, depois para Joana, passou a mão na bochecha de Aninha e saiu devagar, fechando a porta de vidro.
Sentaram-se num banco estreito ali no corredor. Joana mantinha as mãos entrelaçadas, postura aberta. “Eu trabalho com casos como o seu todos os dias”, começou. “A gente tá aqui para proteger sua filha. e para te apoiar também. Lúcia abaixou a cabeça, apertando o tecido do uniforme entre os dedos. “Eu devia ter percebido antes”, murmurou.
Ela tava diferente, quieta demais. Eu achei que era besteira minha. Quem tinha a obrigação de não fazer isso com a sua filha era quem deu o remédio. Respondeu Joana sem rodeios. Não, você ela explicou, em palavras simples, que o hospital era obrigado a notificar o Conselho Tutelar e a polícia quando suspeitava de abuso ou uso indevido de medicamento em criança.
Falou de direitos, não como lei seca, mas como proteção real. Se a gente não registra, outras crianças continuam correndo risco, disse. E você não tá sozinha nisso, Lúcia. Tem muita mãe que confia em quem não deveria e nem por isso deixa de ser boa mãe. Lúcia sentiu algo dentro dela se ajeitar. Não era conforto, mas era menos solidão.
Mais tarde, no mesmo corredor, já com menos gente circulando, Ricardo parou ao lado dela. Tinha ligado para metade da cidade Lúcia imaginava, mas agora estava ali sem celular na mão, só com o rosto sério. A polícia vai ser acionada, informou. Mas até lá, a Neid pode sumir com qualquer coisa que incrimine ela.
Pode continuar cuidando de outras crianças. Eu não vou deixar isso acontecer. Lúcia olhou para ele com os olhos avermelhados e fundos. O que a gente pode fazer? perguntou num misto de medo e raiva. Eu só sei limpar casa, doutor. Eu não sei pegar bandido. Ele respirou fundo, pensativo, antes de responder: “Você sabe uma coisa que ninguém sabe tão bem quanto você.
Como a Neid pensa e ela acha que você ainda confia nela.” As palavras ficaram suspensas no ar. “Eu tenho câmeras na mansão”, continuou. A gente pode chamar a Neid para lá, criar uma situação em que ela mesma se entregue. A polícia vai ter mais do que suspeitas. Vai ter prova. Lúcia sentiu o estômago embrulhar. Você quer que eu ligue para ela? A ideia de ouvir a voz da vizinha dava náusea.
Fingindo que não sei de nada. Eu não vou te obrigar a nada, disse Ricardo com calma. Mas outras crianças podem estar passando pelo que sua filha passou e você pode ser a pessoa que impede isso. Ela fechou os olhos por um instante, viu o rosto de Aninha, ainda no berço improvisado da Brasilândia, respirando devagar, viu as outras crianças que ficavam com Neid, que ela mal conhecia, mas agora enxergava como uma extensão da própria filha.
Quando abriu os olhos, havia algo novo ali. Ainda era medo, mas agora tinha uma camada de coragem por cima. Me dá o celular, disse. Eu vou ligar. De volta ao quarto de observação, Lúcia ficou ao lado do berço enquanto o telefone chamava. O som da ligação ecoava fraquinho, misturado ao bip bip bip constante do monitor cardíaco de Aninha.
Alô? A voz de Ne soou do outro lado, familiar e de repente estranha. Lúcia respirou fundo, segurando o aparelho com tanta força que os dedos ficaram brancos. “Nade, é a Lúcia.” começou tentando revestir a voz de um desespero que nem precisava fingir. A Aninha tá com febre de novo. Eu trouxe ela pro hospital, mas esqueci o remédio e o termômetro lá na casa do seu Ricardo. Você consegue passar lá para pegar para mim? Houve um silêncio curto.
Lúcia ouviu o próprio coração misturado ao som das máquinas. Consigo sim, respondeu Neid por fim. Me manda só a hora, eu dou um pulo lá. Quanto antes, melhor, disse Lúcia. Tô com medo dela piorar. Desligou com a mão trêmula. Olhou para o visor do celular, apagando aos poucos, ficando preto como um espelho pequeno.
O reflexo dela apareceu ali, olhos vermelhos, rosto inchado, mas uma firmeza nova na boca. Do lado, no monitor, a linha verde seguia seu desenho ritmado, fiel. Pela primeira vez desde que tudo começou, Lúcia não sentiu que só esperava alguma coisa acontecer com ela. Ela tinha acabado de acender a própria armadilha. O dia seguinte amanheceu diferente no quarto de hospital.
O barulho dos monitores já não parecia ameaçador, só incômodo. Aninha continuava ligada aos fios, mas a cor do rosto era outra. Um rosado tímido aparecia nas bochechas, como se aos poucos a vida estivesse voltando da onde tinha se escondido. Lúcia mal tinha dormido. Sentada na poltrona dura ao lado do berço, ela passava os dedos pelo cabelo da filha, medindo a temperatura com o toque, como toda mãe faz, mesmo quando tem termômetro. A porta abriu devagar.
Ricardo entrou, desta vez sem pressa, com a mesma camisa do dia anterior, amarrotada. Tinha olheiras, mas os olhos atentos. A médica disse que ela tá melhorando bem. Ele falou num tom mais baixo, respeitando o sono da menina. Vai precisar ficar aqui mais um pouco, mas está reagindo. Lúcia assentiu sem tirar os olhos da filha.
E a Neid? Perguntou por fim. Ricardo respirou fundo. Vem hoje à tarde, respondeu. A câmera já tá instalada. Eu vou estar lá. Se você quiser ficar aqui com a Ana, eu entendo. Lúcia olhou para ele pela primeira vez naquele dia. Havia uma determinação nova no rosto dela. Você acha que eu quero ficar longe quando ela engoliu seco.
Quando ela encarar o que fez? Ele não respondeu. Não precisava. Algumas horas depois, com a autorização da médica e a promessa de que voltaria rápido, Lúcia deixou o hospital. Joana, a assistente social, ficou de olho em Aninha, prometendo mandar mensagem a qualquer alteração.
A mansão parecia mais silenciosa do que nunca quando eles chegaram, sem barulho de liquidificador, sem rádio na cozinha, sem ninguém andando pelos corredores. O eco dos passos de Lúcia no piso de mármore soava alto demais. Ricardo mostrou de maneira rápida o que tinha feito. Uma câmera pequena, quase invisível, escondida atrás de um porta-retrato no quarto de hóspedes.
Uma outra já do sistema da casa apontando para o corredor. “Vai gravar tudo”, disse. Som imagem. Lúcia assentiu, o estômago revirando. “Eu vou ficar no corredor”, decidiu. “Não quero ficar cara a cara com ela lá dentro. Mas eu preciso ouvir. Tá bom. Respondeu Ricardo. Eu falo. Você escuta? Ele checou o celular. A mensagem de Neid tinha chegado poucos minutos antes. Tô indo.
O portão eletrônico se abriu às 15:18. Lúcia viu pela câmera, no notebook sobre a mesa da sala, a imagem da rua, o rosto de Neid surgindo atrás das grades, mais abatida do que o habitual, mas ainda com aquele jeito de quem tenta se adaptar a qualquer cenário. A mulher entrou usando a chave reserva, como Lúcia tinha dito que faria em caso de emergência.
Olhou em volta, chamando Lúcia, tá aí? Silêncio. O áudio da câmera captava até o barulho do chinelo arrastando no piso. Ne andou pelo corredor, como quem conhece a casa. Passou pela cozinha, olhou rapidamente para a sala, depois foi direto em direção ao quarto de hóspedes. Lúcia sentiu a boca secar. Viu pela tela a mulher fechar a porta atrás de si. É agora.
Ricardo murmurou, levantando-se. Fica aqui. Mas o corpo de Lúcia foi sozinho até o corredor. Ela encostou as costas na parede fria, bem ao lado da porta do quarto, ouvindo tudo a poucos centímetros de distância. Lá dentro, o som dos passos apressados, gavetas abrindo, o colchão sendo levemente arrastado.
Cadê? Cadê? Cadê? A voz de Neid baixa, desesperada. Lúcia fechou os olhos, os punhos cerrados. Foi nesse momento que ouviu o clique da maçaneta. Ricardo entrou. Do lado de fora no corredor. Lúcia não via a cena completa. Ela só via a sombra de ambos projetada no chão pelo recorte de luz da janela. Procurando isso, disse a voz de Ricardo firme, silêncio.
O som de um objeto chacoalhando dentro de um plástico. Doutor, eu eu só vim pegar o remédio da febre, gaguejou Neid, a voz falhando. Remédio da febre? Ele repetiu incrédulo. Interessante, porque esse aqui não é remédio de febre, é sedativo forte. E eu encontrei dentro do sapatinho da Ana Clara. Lúcia ouviu um soluço preso. Não sabia se era dela ou da mulher lá dentro.
Eu eu posso explicar. Neid tentou, a voz ficando mais aguda. Então explica. Ricardo cortou. explica porque uma bebê de um ano e meio estava quase parando de respirar por sua causa. Silêncio, pesado, denso. Lúcia encostou a cabeça na parede, sentindo o coração bater tão alto que parecia que o som iria vazar para dentro do quarto.
Quando a resposta de Neid veio, foi como um desabafo sujo. Eu não queria machucar ela. Chorou. Eu só não dava conta, tá? Três crianças gritando, chorando e eu ainda tinha que lavar roupa, fazer comida, costurar para fora. Eu eu só queria que ficassem quietas um pouco. O ar sumiu dos pulmões de Lúcia. Ela apertou a boca com a mão para não gritar.
“Quietas!”, repetiu Ricardo num tom entre nojo e incredulidade. Você quase matou minha funcionária e a filha dela para ter silêncio. Do outro lado da parede, o som de choro preso, soluços. Era só umas gotinhas. Insistia Neid. Todo mundo faz. Eu ouvi outras mãe falando. Dá isso. A criança apaga, nem sente. Minha filha não é para apagar.
A voz de Ricardo saiu mais alta e Lúcia percebeu que ele mesmo se assustou com o termo: “Ela é uma criança, não um problema para você desligar quando quer.” “Minha filha!” Lúcia ouviu cada sílaba e por um segundo uma coisa estranha aconteceu. No meio daquele horror, no meio da raiva, uma parte do coração dela se aqueceu porque alguém tinha acabado de chamar a Ninha de minha filha com a mesma força que ela sentia por dentro.
Não demorou muito para as sirenes aparecerem na rua. Ricardo tinha ligado antes de entrar no quarto. Quando os policiais chegaram, a gravação já estava feita, a confissão registrada. A porta do quarto se abriu de novo, desta vez para o delegado Farias entrar com dois agentes. Lúcia recuou alguns passos, mas não conseguiu ir embora.
Ficou encostada no corrimão da escada, vendo tudo dali. Neid estava sentada no chão, as costas encostadas na lateral da cama, o rosto vermelho, o rímel borrado. Não parecia mais a vizinha falante de antes, parecia menor. “Ni Souza”, perguntou o delegado a voz cansada.
A senhora está presa por suspeita de abuso contra menor, administração ilegal de medicamento controlado e risco a vida de crianças sob sua responsabilidade. Enquanto ele falava, uma policial feminina se aproximou, puxou as mãos de Neid para trás e colocou-as algemas. O barulho do metal se fechando pareceu ecoar por toda a casa. Lúcia e Neid se olharam por um instante.
Nos olhos da vizinha havia um pedido mudo de alguma coisa. Perdão, talvez, ou só medo. Nos olhos de Lúcia havia uma dor funda, mas também uma certeza. Eu confiava em você. saiu finalmente num fio de voz e você deu remédio para minha filha dormir como se ela fosse incômodo. Neid começou a chorar de novo. Eu cuidava, eu dava comida, eu trocava, tentou argumentar.
Quem cuida não dá veneno Lúcia respondeu pela primeira vez firme, sem titubear. Os policiais a conduziram até a porta. O portão da mansão se abriu mais uma vez. agora para a vizinha sair algemada de cabeça baixa. Lúcia ficou parada na sala, o coração acelerado, ouvindo de longe a viatura se afastando.
Na mesa de centro, o notebook ainda mostrava a imagem congelada do quarto de hóspedes com o frasco em foco. A casa, que sempre pareceu tão grande, nunca tinha sido tão pequena quanto naquele momento. Meses depois, o fórum não era menos intimidante que o hospital. Corredores cheios de gente, passos indo e vindo, vozes em tom baixo.
Lúcia, com uma roupa simples, mas caprichada, segurava a mão pequena de Aninha, agora mais firme, mais viva. A menina brincava com um ursinho de pelúcia novo, apertando as patinhas de vez em quando. Ricardo caminhava ao lado delas, sem terno, apenas de camisa, gravata frouxa no bolso. Parecia outro homem. Dentro da sala de audiência, Lúcia sentou num dos bancos do fundo. Não queria ver Neid, mas não queria fugir.
Também precisava estar ali para ouvir o que o juiz ia decidir, não só por ela, mas pelas outras crianças. A sentença veio depois de depoimentos, laudos médicos, vídeos da câmera, relatório do hospital, palavras pesadas como culpada, abuso, risco à vida. Palavras que Lúcia nunca imaginou ouvir ligadas àquela mulher que um dia chamou de amiga. Quando tudo terminou e Neid foi levada de volta.
Lúcia não se levantou. Ficou olhando para a porta por onde ela tinha acabado de desaparecer, como se fosse uma espécie de ponto final. Mas não era o fim, era o começo de outra coisa. Na saída do fórum, Joana caminhou até eles com um sorriso cansado, porém satisfeito. “A história de vocês vai ajudar muita gente”, disse.
“A gente vai usar esse caso em palestras, treinamentos. Tem muita mãe que precisa saber que bebê quietinho demais pode ser sinal de perigo. Lúcia olhou para Aninha, que naquele exato momento dava uma risadinha alta, porque Ricardo tinha feito cóceegas na barriga dela. Quietinha, não. Viva. Dois anos depois, a mansão não parecia mais a mesma.
Não porque os móveis tinham mudado. A maior parte continuava igual. Mas porque o silêncio foi substituído por algo melhor. Barulho de criança correndo, brinquedo caindo no chão, risadas ecoando pelo corredor, o jardim antes impecavelmente aparado. Agora tinha um pedaço reservado para um canteiro de flores meio torto, com plaquinhas coloridas desenhadas à mão.
“Hortinha da Ana”, dizia uma delas com letras tortas e um coração. Lúcia estava ali com um boné emprestado e chinelo de dedo regando as plantas. O sol da tarde batia no rosto dela, marcando algumas linhas novas, de cansaço, sim, mas também de vida. Mamãe! A voz de Aninha explodiu do outro lado do gramado. Vê meu desenho.
Ela vinha correndo, cachos balançando, segurando uma folha de sulfite ainda úmida de tinta guache. Um cachorro vira lata adotado vinha atrás latindo, entrando no meio do caminho. Lúcia riu, secou a mão no short e pegou o papel. O desenho era simples, uma casa, um sol, um cachorro e três figuras de mãos dadas.
Uma maior, de cabelo comprido, uma outra com cabelo curto e uma menorzinha entre as duas. “Quem é esse aqui?”, perguntou, apontando pro desenho. “É você, mamãe?” Aninha disse séria: “Esse é o papai e essa sou eu”. Antes que Lúcia respondesse, Ricardo apareceu na varanda sem gravata, com a camisa meio aberta e um ar de quem tinha corrido para chegar a tempo da cena.
“Tô perdendo a exposição da artista”, brincou. Papai, vai colar na geladeira”, decretou a menina, puxando a mão dele. Na cozinha, a geladeira de Inox já não parecia de catálogo. Estava tomada por desenhos presos com ímã de propaganda, letras coloridas, listas de mercado rabiscadas e um recado escrito à mão. Não esquecer.
Reunião da escola às 18 horas. Ricardo ajudou a Ninha a alcançar mais alto. Ela colou o novo desenho bem no centro, empurrando os outros um pouco pro lado. Lúcia ficou alguns passos atrás, observando aquela mesma geladeira que um dia refletiu um silêncio pesado, agora era um mural de vida, de caos bom, de rotina.
Ricardo se virou, encostou as costas na porta gelada, puxou Lúcia pela cintura e deu um beijo rápido na testa dela. A Ninha se enfiou no meio dos dois, apertando o ursinho contra o peito. Lembra de quando essa casa parecia vazia, mesmo cheia de coisa cara? Ele comentou num tom leve, olhando ao redor. Lúcia deu um meio sorriso. Lembro e lembro de você falando que não se metia na vida de ninguém.
Ele riu baixo. Ainda bem que eu me meti na de vocês. Aninha olhou de um para o outro sem entender nada, mas sentindo o clima bom. “Vem brincar, papai”, ordenou. “A gente vai fazer festa de chá de boneca. Ele abriu os braços, se rendendo. “Quem manda aqui é você, né?”, brincou. “Aqui sim”, respondeu ela, convicta.
Os três saíram da cozinha rindo, deixando a geladeira sozinha por um instante. Na porta metálica, entreãs de pizzaria e lembretes, o novo desenho, ainda úmido, brilhava sob a luz da tarde. Uma família de três pessoas e um cachorro na frente de uma casa.
O papel balançou um pouquinho com a corrente de ar que entrou pela janela, mas continuou ali firme, como se dissesse silenciosamente que aquela casa que um dia foi cenário de medo, agora tinha encontrado sua função mais simples e mais importante, ser lar. M.
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