O sol se despedia por trás das ladeiras do Santo Antônio, além do Carmo, em Salvador. A luz dourada entrava pelos azulejos azuis da varanda, refletindo no chão como pedaços de espelho quebrado. O vento trazia cheiro de café coado, canela e um restinho de mar.

 De longe, um berimbaal soava como um coração batendo fora de ritmo, mas dentro daquela casa, o ar parecia preso. Alexandre Severo encostou na grade do mesanino e observou o pátio lá embaixo. As folhas da jabuticabeira se moviam devagar, como se até o vento tivesse medo de fazer barulho. A casa era grande, bonita, mas havia algo invisível nela, uma tensão fina, quase imperceptível, como corda de violão esticada demais.

 Na cozinha, Vanessa, sua esposa, falava baixo, mas com aquele tom que cortava. Luía, eu já disse para colocar o guardanapo antes do café. A menina de se anos olhou pro chão. As tranças pendiam dos ombros e as mãos pequenas tremiam enquanto arrumavam a mesa. Desculpa, mãe. O pratinho de Mateus, dois anos, escapou da borda. Caiu no chão, rolando até o pé de Vanessa.

 O barulho foi leve, mas o olhar dela pesou como pedra. “É sempre a mesma bagunça”, murmurou. “Quando seu pai chegar, ele vai ver que eu sei educar. Alexandre engoliu seco. De onde estava ninguém o via. Ele sentiu um frio percorrer o corpo, o tipo de frio que não vem do vento, mas de um pressentimento. O riso das crianças, que antes enchia a casa como passarinho solto, agora era raro, tímido, quase um som de lembrança. Nos últimos meses, algo havia mudado.

 Desde que se casara com Vanessa, o lar que ele sonhou se transformara num lugar de ordens e silêncios. Luía não corria mais para abraçá-lo. Mateus se escondia atrás dos móveis. E naquela tarde, quando ouviu a filha dizer: “Quando você não tá, as regras mudam”. Ele entendeu o que o coração já suspeitava. Havia algo errado demais.

 À noite, no escritório, ele ficou sozinho, encarando o reflexo no vidro. Um homem de terno caro, barba feita, olhar vazio. No fundo da estante, um porta-retrato com os dois filhos sorrindo. Ele passou o dedo sobre o vidro, como quem tenta lembrar o som da risada que não escuta mais. “O que eu deixei acontecer?”, sussurrou.

 Naquele instante, a decisão nasceu como um soco de ar no peito. No dia seguinte, Alexandre ligou pro escritório, disse que viajaria a São Paulo para reuniões importantes. Pediu que ninguém o procurasse. Depois foi até o quarto, abriu o cofre e guardou o relógio de ouro, o cartão preto, os símbolos da vida que o separavam da própria casa.

 no espelho, passou a mão no rosto e sorriu sem graça. Tá na hora de ver quem é quem aqui dentro. Comprou uma calça de brinurrada, uma camisa bege simples, um chapéu de palha, colou uma barba postiça. Quando se olhou de novo, mal se reconheceu. Nascia o jardineiro Beto.

 Chegou à casa pelos fundos com um balde de ferramentas e passos medidos. Quem o recebeu foi Sofia, a nova empregada. jovem, pele morena, olhar tranquilo. Bom dia, seu Beto. A dona Vanessa tá esperando o senhor lá no pátio. A voz dela tinha um tom doce, sem exagero, e o sorriso, ainda que breve, parecia iluminar o ar pesado do lugar.

 Obrigado, moça”, respondeu ele, abaixando a cabeça. Enquanto atravessava o corredor, sentiu o cheiro da cera fresca misturado com o perfume forte de Vanessa. O contraste era gritante, a beleza da casa, os azulejos limpos, os móveis polidos e um frio que vinha do silêncio. Vanessa apareceu na porta impecável, vestido branco, olhar afiado. O jardim tá um caos.

 Quero tudo em ordem antes do fim da semana. Sim, senhora. E mantenha a distância das crianças. Elas já têm regras. Ele sentiu, disfarçando-o incômodo. Mas quando olhou de lado, viu Luía de longe, pela janela do quarto, encostada na cortina. A menina o observava com curiosidade, como quem vê uma esperança nova. Beto sorriu, pequeno, quase imperceptível.

 Durante o dia, trabalhou em silêncio debaixo do sol baiano. As mãos, antes acostumadas a teclado e reuniões, aprenderam o peso da enchada. Cada golpe na terra parecia tirar dele um pouco do medo. No meio da tarde, ouviu um barulho vindo da sala. O choro contido de Luía. Ele parou, ficou imóvel, só ouvindo. Um copo caiu, mãe. Foi sem querer dizia a menina.

 Os erros têm castigo”, respondeu Vanessa fria, o som de uma cadeira sendo arrastada, um tapa leve na mesa. Logo depois, a voz calma de Sofia: “Deixa que eu limpo, dona. Não se meta, Sofia. Cuide do que é seu.” Alexandre fechou os olhos, sentiu o ar faltar. O instinto gritou, mas ele não podia se revelar.

 O disfarce era a única forma de ver até onde aquilo ia. Quando o sol desceu, ele se despediu de todos e saiu pela lateral. Andou até a pousada, onde se hospedava no pelourinho, subiu pro quarto pequeno e se olhou no espelho. A barba postiça estava torta e o rosto suado parecia o de outro homem. Um homem cansado, mas desperto.

 Pegou um caderno de capa preta e escreveu: “Se o silêncio protege, eu fico mudo. Se a verdade liberta, eu falo quando for hora.” Fechou o caderno devagar, como quem cela uma promessa. Na manhã seguinte, voltou à casa. O sol nascendo refletia no azulejo e fazia o ar parecer dourado. Sofia já estava no pátio regando as flores.

 Trouxe água pro senhor também, seu Beto. O calor hoje promete. Ele sorriu aceitando o copo. Trabalho honesto cansa, mas não mata. Ela respondeu com leveza. É, mas o silêncio mata devagar. Aquela frase ficou nele. Enquanto ela se afastava, Alexandre notou uma flor branca crescendo perto da jabuticabeira.

 “Essa eu plantei ontem”, disse Sofia, percebendo o olhar dele. “Dizem que flores novas ajudam a curar a terra”. Ele assentiu tocando a pétala com os dedos ainda sujos de terra. No fundo, sentiu que talvez não fosse só a terra que precisasse de cura. Mais tarde, quando o sol começou a cair, ele se sentou no degrau da varanda. As crianças já tinham dormido. A casa estava em silêncio.

 Aquele silêncio estranho, grosso, que parece cobrir tudo. Lá dentro, Vanessa caminhava devagar, os saltos batendo ritmados, toque, toque, toque, como um relógio marcando o compasso do medo. Alexandre olhou pra janela do quarto dos filhos. Uma luz fraca vazava pela fresta, tremendo no vidro como uma respiração contida. Ele se perguntou há quanto tempo não ouvia uma risada ali.

 E foi nesse instante que percebeu. A casa prendia o ar, como se todo mundo lá dentro tivesse esquecido como se respira junto. Lentamente, ele se levantou, guardou as ferramentas e passou a mão pela barba falsa, ajustando-a. A noite caía sobre Salvador, misturando o azul das igrejas com o laranja dos postes.

 Antes de sair, viu sobre a mesa da varanda um guardanapo de linho perfeitamente dobrado. No canto, uma mancha minúscula de café, redonda, escura, imperfeita. Ele olhou para aquilo por um longo tempo e entendeu, sem precisar dizer em voz alta, que era ali, naquele detalhe pequeno e sujo, onde a perfeição começava a rachar. O sol da Baia nascia preguiçoso, mas quente.

 A luz entrava pelas folhas da jabuticabeira e riscava o chão em pedaços de sombra. O canto dos passarinhos se misturava ao barulho da cidade despertando lá fora. Buzinas, vozes, panela batendo. Dentro do muro branco, tudo parecia outro mundo. Alexandre, ou melhor, Beto, varria o pátio em silêncio. O som das folhas secas raspando no chão, o lembrava de um tempo distante, quando seus filhos ainda riam livremente.

 Agora a casa parecia ouvir e guardar cada passo. Ele já estava há uma semana ali. Aprendera o peso do sol, o cheiro da terra molhada e o ritmo das ordens de Vanessa. Tudo tinha hora, tudo tinha regra, até o afeto. Vanessa passava pelo jardim sem olhar para ninguém. As palavras dela vinham rápidas, diretas, cortantes. Não quero criança suando no pátio e mantenha o chão limpo, jardineiro.

 Beto baixava a cabeça, as mãos firmes no cabo da vassoura. Por dentro, um nó apertado. Por fora, apenas o gesto obediente de um homem comum. Mas havia algo, alguém que tornava aquele silêncio suportável. Sofia. A moça parecia se mover de um jeito diferente, leve. O barulho do avental, o som da água caindo no balde, o riso baixo quando as crianças aprontavam alguma travessura. Tudo nela lembrava vida.

 Certa manhã, enquanto ele cortava as cercas vivas, ouviu a voz de Sofia. Seu Beto, quer um pouco de água fresca? O calor batia forte no ombro dele e aquele gesto simples soou como abrigo. “Obrigado, moça”, respondeu tomando o copo. Trabalho honesto cansa, mas não mata. Sofia sorriu de leve. É, mas tem silêncio que mata devagar. Alexandre sentiu a frase entrar fundo, como se alguém tivesse aberto uma janela dentro dele.

 Aquela mulher via o que ele via, sentia o que ele sentia. Nos dias seguintes, a rotina se repetia. O som do balde, o cheiro do sabão de coco, as ordens de Vanessa ecoando pelos corredores. Mas vez ou outra, o riso miúdo de Luía quebrava o ar, e isso bastava para Alexandre aguentar. Uma tarde, ele podava o pé de hibisco quando sentiu um toque leve na calça.

 Luía, posso ajudar, seu Beto? Ele olhou para ela, os olhos grandes, curiosos. Pode sim, mas cuidado com as espinhas. Espinhas, ele sorriu. As flores têm defesa, mesmo as mais bonitas. Ela riu encantada. O som ecoou como uma melodia esquecida. Do alto da varanda, Vanessa observava. Braços cruzados, olhos frios. Luía, para dentro. Agora a menina obedeceu sem discutir.

 Alexandre sentiu o peso de novo no peito, o mesmo de sempre. À noite, no pequeno quarto da pousada, tirou a barba postiça e se olhou no espelho, o rosto suado, cansado, com olheiras fundas, pegou o caderno e escreveu devagar. Ela tem a coragem que eu perdi. Ficou olhando a frase e por um segundo o homem que era Beto deixou escapar uma lágrima que não devia existir. Dois dias depois, um acidente pequeno virou tempestade.

Mateus, o caçula, corria pelo corredor com um carrinho de brinquedo. Escorregou e caiu perto da fonte. chorou assustado. Sofia chegou primeiro. Calma e amor. Foi só um susto. Limpou o joelho dele, beijou o machucado. Vanessa apareceu logo atrás, furiosa. Se você não consegue cuidar de uma criança, eu arrumo outra para fazer o seu trabalho. Sofia tentou explicar.

 Foi um tropeço, senhora. Eu tava ali, eu não pedia explicação. Alexandre do jardim ouviu tudo. A mão dele fechou com força no cabo da enchada. O sangue ferveu. Por um instante, esqueceu o disfarce. Quase entrou, mas parou. Não era hora. A raiva que sentiu naquele momento não era só contra Vanessa, era contra ele mesmo.

Naquela noite, deitado na cama estreita da pousada, o som da fonte ainda martelava na cabeça. Cada gota parecia dizer: “Covarde.” No dia seguinte, o tempo amanheceu abafado e o céu pesado. Beto chegou mais cedo que o normal. Encontrou Sofia dobrando lençóis na varanda. “Dormiu?”, perguntou ela sem levantar os olhos. Quase, ele tentou sorrir.

 Tem noite que nem o silêncio deixa descansar. Ou talvez o silêncio seja o que mais grita, respondeu ela com um olhar que durou mais que a frase. Ficaram ali alguns segundos ouvindo o som distante do sino da igreja. Alexandre quis dizer quem era, quis agradecer, quis tudo, mas calou. Não era o momento. Sofia voltou ao trabalho, ele ao jardim.

 Aquela manhã correu devagar até que Luía apareceu, segurando um pequeno ramo de flores. Trouxe pra mamãe, disse sorrindo. Alexandre olhou com ternura. E por que chama ela assim? Porque quando eu tenho medo, ela canta e eu fico bem. A flor tremia nas mãos da menina. Também pode ficar com uma, seu Beto. Ela estendeu uma pétala branca. Ele aceitou emocionado.

 Obrigado, pequena. Lá de cima, Vanessa via tudo. O olhar dela cortante pousou primeiro na flor, depois em Sofia. Desceu devagar, pisando firme. Então é assim, meus filhos te dando flores? Foi um gesto de carinho, dona. Cuidado com seus gestos, Sofia. Nesta casa até flor tem espinho. Silêncio.

 As palavras dela ficaram pairando no ar, venenosas. Mais tarde, quando todos dormiam, Sofia ficou na cozinha terminando de guardar a louça. Alexandre entrou no pátio fingindo recolher ferramentas. Não devia ficar sozinha tão tarde. Às vezes eu ouço as crianças chorarem no sonho. Aí o sono vai embora. Ela sorriu sem alegria.

 Ninguém devia ter medo dentro da própria casa. Ele quis falar, contar, prometer algo, mas o medo do erro prendeu a voz. Então só disse: “Eu sei”. Sofia se levantou, passou por ele e, antes de sair, deixou uma flor branca sobre o parapeito da fonte. “Para curar o jardim”, murmurou Alexandre. Ficou parado, olhando o reflexo da flor na água.

 A superfície ondulava com o vento leve e, por um instante, ele teve a sensação de que a casa respirava de novo. No dia seguinte, o canto dos passarinhos voltou a ser nítido. O cheiro de pão fresco veio da cozinha. As crianças riam e, por um momento, o pátio parecia casa outra vez. Mas dentro de Alexandre algo mudou. Ele entendeu que observar não bastava.

 Aquela mulher, Sofia, estava carregando sozinha um peso que deveria ser dele. No fim da tarde, ele foi até o quarto da pousada, tirou o caderno, o lápis e o pequeno gravador de bolso. Passou o dedo pelo botão de rec. Amanhã, disse baixinho. Eu começo a gravar a verdade. Guardou o aparelho no bolso da camisa do jardineiro e deitou sem dormir.

 Do lado de fora, a chuva fina começou a cair, lavando as ruas, batendo no telhado de Zinco. O som era suave, quase um sussurro. E por alguma razão, Alexandre sentiu que, pela primeira vez em muito tempo, a culpa também chorava junto com ele. No sábado, a casa acordou cedo. Toalhas de linho passadas, louça branca com filete dourado, taças altas alinhadas como soldados.

 Na cozinha, o cheiro de alho dourando na manteiga se misturava à canela que ainda morava no forno do dia anterior. O barulho da bica seguia firme, pingando o ritmo. Tic, tic, tic, como um coração teimoso. Alexandre, Beto, chegou antes do sol bater de frente no pátio, tirou o boné, passou a mão na barba postiça, ajustou o pequeno gravador dentro do bolso da camisa.

apertou o botão e ouviu o clique discreto. O ar parecia pesado, como se a casa soubesse que era dia de espetáculo. Vanessa cruzava corredores com um bloquinho na mão, dando ordens que vinham sem ponto final. As flores sobre a mesa, Sofia. O arranjo precisa de volume. Sem exagero. Sim, dona. E as crianças tão se arrumando.

 Quero eles impecáveis. Hoje as meninas vão ver como essa casa funciona. Alexandre observou de longe quando Luía desceu a escada num vestido azul que prendia a respiração. Mateus, num terninho mínimo, tropeçava com passos curtos. Os dois pareciam menores dentro de tanta formalidade.

 Sofia ajeitou o laço de Luía com cuidado, o gesto suave de quem pede licença para tocar uma ferida. Às 11:45, a campainha tocou. uma, duas, três vezes, até a varanda se encher de risos finos, perfumes caros, óculos escuros que subiam pra cabeça como coroas. As convidadas se acomodaram sob o ombrelone, a luz baiana batendo nos copos como um pequeno carnaval de vidro.

 Meninas”, anunciou Vanessa com sorriso branco. “Hoje vocês vão ver disciplina num lar que funciona.” O garçom terceirizado serviu suco de caju e espumante. Talheres cantavam leve. Conversas sobre academia, escola bilíngue, reformas no orto florestal. Do canto do jardim, Beto varria o mesmo pedaço de chão pela terceira vez, só para ficar perto. O gravador quente no bolso parecia um coração extra.

 Luía, Mateus. Vanessa chamou sem olhar. Cumprimentem alto. Boa tarde, disse a menina tentando atravessar o ar. Mais alto, Luía. Boa tarde, ela repetiu. E o som que saiu foi quase um pedido de desculpa. Algumas convidadas sorriram. com os lábios, não com os olhos. Alexandre sentiu o músculo da mandíbula travar, respirou pela boca devagar.

 Ao lado, a jabuticabeira deixou cair um fruto roxo que bateu no chão com um ploque discreto. Ele se agarrou a esse som como quem se segura numa quina. O almoço foi servido. Moqueca, arroz branco, farofa, salada fria. Tudo bonito demais. Ninguém parecia mastigar. Era como se todo mundo pousasse para uma foto que ninguém tirava.

 Luía tentou alcançar um copo d’água, o braço esticou além do que podia. O copo escorregou na borda do prato, tombou devagar e num segundo a varanda inteira ouviu o cristal quebrando. Silêncio. O tipo de silêncio que dá na gente quando a onda bate no ouvido e o mundo some por um instante. Vanessa se levantou. O sorriso saiu do rosto dela, como se alguém tivesse apagado a luz.

 Olha o que você fez”, disse sem gritar, mas firme como aço. “Desculpa, mãe.” A voz de Luía veio fina. “Eu já disse que a mesa não é lugar de brincadeira.” Vanessa respirou fundo, controlando cada músculo. “Você precisa aprender.” A mão começou a subir devagar, como se fosse uma regra da casa se materializando. Sofia se moveu antes do pensamento terminar. Um passo, dois.

O corpo dela entrou entre a mão e a menina. O estalo do tapa suou seco, não forte, mas suficiente para deixar a bochecha vermelha. O guardanapo que estava preso ao punho de Sofia caiu no chão. Um quadrado branco que não protegia nada. “Não encosta nela”, ela disse a voz baixa e firme. “É só uma criança”. As convidadas se entreolharam.

 Uma delas derrubou uma gota de espumante no próprio vestido e fingiu que não doeu. “Você tá demitida, Sofia?” Vanessa respondeu, soprando a última sílaba. “E eu faço questão que ninguém te contrate nessa cidade.” Sofia respirou uma vez. “Se for para proteger, eu aceito.” Alexandre sentiu o peso do corpo desaparecer das pernas.

 O mundo estreitou numa linha que ia do rosto de Luía aos olhos de Sofia. Ele largou a vassoura. O barulho que a madeira fez ao encontrar o ladrilho pareceu um tiro que ninguém esperava. Chega. A palavra saiu de um lugar antigo dentro dele. Vanessa virou sem entender de onde aquela voz tinha vindo com tanta autoridade.

 Quem é você para falar aqui? Ela disparou, o dedo apontado, a ira finalmente sem verniz. Beto andou três passos, cada um mais silencioso que o outro. Parou ao pé do degrau da varanda. O sol pegou de lado em seu rosto. A mão subiu devagar até a barba postiça. Um gesto simples, um gesto fatal. A barba saiu numa só peça. As convidadas recuaram meio passo.

Meu Deus, é o Alexandre Severo. Vanessa empalideceu como louça. Você Você tava em São Paulo. Você achou que eu tava? ele disse, sem tirar os olhos dela. Alexandre enfiou a mão no bolso da camisa, sentiu o gravador, o peso pequeno e quente. Virou a palma para cima, como quem oferece um objeto sagrado. Apertou play. A voz de Vanessa explodiu pelo pátio, limpa, sem ruído.

Medo educa melhor que carinho. Ninguém mastigou, ninguém respirou alto. Um pássaro atravessou a luz e foi embora. As palavras ficaram pairando, pesadas, e depois caíram como se tivessem peso de pedra. Alexandre continuou sem elevar o tom. Toda a lágrima dele está aqui.

 Toda frase, toda a humilhação que você achou que a casa engolia. Vanessa deu um passo. Ele levantou a mão apenas o gesto. Nem mais um. A gente pode resolver, ela disse, procurando um lugar seguro para voz pousar. Eu tava nervosa. É muita responsabilidade. Você queria controle? Ele cortou ainda calmo. Aqui dentro ninguém respira quando você fala. Luía correu e abraçou a barriga dele com força.

 Mateus grudou numa perna. Alexandre baixou a mão e passou os dedos no cabelo da filha. Um gesto que ele devia há semanas. Acabou, meu amor. Ele não olhava pro lado, não piscava. Você vai se arrepender, Alexandre. Vanessa sussurrou agora sem plateia, só com medo. Eu já me arrependo. Ele respondeu. Não de tirar você, de ter deixado você entrar.

 Algumas convidadas recolheram bolsas, óculos, silêncio. Foram saindo sem beijo, sem mensagem. O som dos saltos se afastando, desenhou no ladrilho uma linha de fim. Alexandre respirou. pela primeira vez no dia, enchia o peito. Virou-se para Sofia, a bochecha ainda rubra, os olhos firmes que seguravam as lágrimas no lugar certo. “Obrigado.

 Se você não estivesse aqui, eu não veria”. Ela a sentiu apenas isso. Não precisava de fama. O rosto dela trazia aquela dignidade silenciosa de quem segura o mundo com a mão espalmada. Você vai sair hoje?” Ele disse por fim para Vanessa, “suas coisas agora e não vai ver meus filhos”.

 A mulher encontrou resistência no ar. Não havia mais plateia, não havia mais espelho onde ela gostava de se ver grande, apenas a casa, as crianças e uma verdade que não cabia debaixo do tapete. Quando a porta da sala bateu, um vento leve cruzou o pátio. A toalha de linho estufou e uma mancha de vinho que ninguém tinha notado escorreu da borda até o centro. Um mapa torto que dividia a mesa perfeita ao meio.

 Sofia pegou o guardanapo caído, molhado de lágrima e água da bica, e dobrou com cuidado, um branco amassado entre os dedos. Alexandre olhou pro tecido, pro rosto do vinho, que crescia devagar sobre o linho, e entendeu que às vezes a verdade não derruba a mesa, só marca o suficiente para ninguém esquecer.

 E naquele pátio, naquele instante, a casa pareceu soltar o ar que guardava há meses. O sol voltou a nascer sobre Salvador, mas a casa ainda cheirava a ontem. Cheirava a vinho derramado, a lágrima contida e a porta batida com raiva. No chão da varanda, um pedaço do guardanapo branco ainda secava devagar. Marca muda de tudo o que tinha desabado ali dentro. Alexandre estava de pé desde antes do amanhecer.

 Caminhava pelo pátio em silêncio, sentindo a terra úmida sob. O canto dos pássaros soava diferente, como se o ar finalmente tivesse voltado a circular. As jabuticabas no pé brilhavam com o orvalho e a fonte, pela primeira vez, não parecia mais lamentar, parecia respirar. As crianças dormiam.

 Luía, com o braço jogado sobre o travesseiro. Mateus abraçado no boneco. A casa agora tinha um som novo, pais com defeito, uma calma que ainda doía um pouco, como o músculo depois da febre. Sofia chegou cedo. O olhar dela procurou algo que não existia mais, o medo. Ele tinha ido embora junto com Vanessa, na mala preta que ela arrastou sem olhar para trás.

 Sofia a encostou na mesa e passou a mão sobre a mancha de vinho, agora seca. Deixou o pano deslizar e o gesto dela parecia um ato de cura. Mesmo que ninguém tivesse dito isso em voz alta, Alexandre apareceu na porta sem a barba falsa, sem o disfarce, sem a armadura. Vestia uma camisa simples, os botões abertos até o peito.

 “Achei que você não voltava”, ele disse, voz baixa, rouca de tanto silêncio. As crianças me pediram para ficar, ela respondeu sem drama. “E você?” “Eu também.” Por alguns segundos, o som da bica foi o único diálogo, a água batendo no pirína, paciente. Luía entrou na cozinha, os cabelos bagunçados, ainda meio sonolenta. Papai. Alexandre se ajoelhou para ficar na altura dela. Oi, meu amor.

Ela o olhou por um tempo, como se confirmasse se ele era de verdade. Depois sorriu e abraçou o pescoço dele com força. Um abraço quente, demorado, que parecia ter guardado meses dentro. Ele fechou os olhos e segurou o choro no meio da garganta. Sofia atrás virou o rosto discretamente.

 O som de uma panela no fogo mascarou o nó que subia nela também. Hoje eu quero brincar no pátio disse Luía, ainda abraçada. Alexandre riu de leve. Então o pátio é seu. E foi. O resto da manhã foi leve, como se alguém tivesse aberto todas as janelas da casa. Sofia fez pão de queijo e o cheiro invadiu o corredor. Mateus correu até o jardim, tropeçou, levantou rindo.

Luía pintava no chão uma caixa de lápis espalhada ao redor. O som do lápis riscando o papel era o barulho mais bonito do mundo naquele momento. Alexandre observava da varanda encostado na coluna. tinha um copo de café na mão e uma expressão calma que há muito tempo não morava ali. O gravador, agora desligado, descansava sobre a mesa.

 Um objeto pequeno que de repente parecia velho demais para tudo o que ele tinha visto. Ele pegou o aparelho, olhou e por instinto abriu a gaveta e o guardou. Não por vergonha, por fim. “Vai guardar?”, perguntou Sofia. “É.” Ele deu de ombros. Acho que já não preciso mais provar nada.

 Ela assentiu, mexendo a massa com as mãos, o avental manchado de farinha, o sol batendo no rosto dela, desenhando um contorno dourado. Por um instante, Alexandre pensou em dizer algo, talvez um convite, talvez um agradecimento, mas as palavras sumiram no calor do meio-dia. A verdade ele entendeu, não precisa ser dita quando o ar já mudou. Naquela tarde, a rua parecia curiosa.

 Os vizinhos espiavam discretamente o portão, tentando medir o que tinha restado da casa perfeita do Senhor Severo. Mas quem passava pelo muro só ouvia o riso das crianças e o barulho do regador enchendo de água. E se olhasse com atenção, veria um homem e uma mulher refazendo o jardim. Não para mostrar, mas para viver.

 Mais tarde, quando o sol começou a cair sobre o mar da baía de todos os santos, Alexandre pegou um pequeno vaso e chamou Luía. Vem cá, filha. O que é isso? A flor da mamãe Sofia, a que ela deixou na fonte. Luía segurou o vaso com cuidado, os dedos sujos de tinta azul. E para que serve? para lembrar que até a terra machucada dá flor de novo. Ela sorriu. Então a casa sarou? Tá aprendendo igual a gente.

Sofia observava de longe o olhar manso, cansado. Não havia romance no gesto, havia respeito. Um tipo de amor que se escreve em gestos, não em promessas. Alexandre voltou a trabalhar em casa. Abriu o notebook na varanda, o som das crianças correndo pelo quintal. Descobriu que produtividade também pode ter cheiro de bolo no forno.

 Às vezes parava o que fazia só para olhar. Sofia varrendo o chão, Mateus gargalhando, Luía com a cara toda pintada e pensava: “É isso, sem bilionárias, sem luxo, sem plateia, só isso. Naquela noite, a chuva caiu fina sobre Salvador, o som batendo no telhado da varanda, nos azulejos, na fonte.

 Alexandre se levantou, foi até a cozinha e colocou quatro xícaras de chá de canela sobre a mesa. Chamou os três. As crianças vieram correndo, descalças. Sofia veio devagar, secando as mãos no pano. Sentaram juntos. O vapor do chá subia como fumaça de promessa. Luía abriu a mochila e tirou um desenho. O papel ainda úmido de tinta.

 Olha, pai”, disse ela, “no papel, o pátio, a jabuticabeira, a fonte e quatro pessoas de mãos dadas, cercadas por um sol enorme e torto.” Ela apontou: “Aqui é você. Aqui é o Teteu. Aqui sou eu. E aqui?” Ela sorriu. É a Sofia. Alexandre olhou o desenho por longos segundos. As cores eram desajeitadas, mas a luz estava certa. Tudo ali tinha o tom do recomeço.

 Ele passou a mão sobre o papel devagar, como quem alisa uma cicatriz. Do lado de fora, a chuva já virava garoa. A fonte continuava correndo, sem pressa, sem medo. Alexandre se levantou, abriu a porta e olhou o pátio pela última vez naquele dia. A água refletia as luzes da sala e, pela primeira vez, desde que voltou, ele respirou fundo, sem dor.

 O ar entrou cheio, limpo e, num sussurro quase inaudível, ele disse para si mesmo: “Agora sim, a casa respira. A câmera, se houvesse uma, se afastaria devagar, mostraria o brilho da água, o som dos risos, a flor branca crescendo ao lado da jabuticabeira, e deixaria o espectador com aquela sensação simples, rara, de que o amor quando é real não precisa de palco, só de ar. M.