A vela já estava acesa quando a porta automática da garagem se abriu. Um filete de luz amarela escapava da cozinha, projetando no chão de mármore um brilho quente que contrastava com a noite gelada de Morumbi. E naquele instante, antes mesmo de dar o primeiro passo para dentro de casa, Eduardo Farias sentiu algo estranho, um silêncio diferente, quase denso, que parecia pedir para ele prestar atenção.

 no corredor, ele ouviu um sussurro, depois duas risadinhas baixas e uma voz suave, cansada, mas cheia de doçura. Devagar, meninas, segura a vela, Clara. Isso, meu amor. Ele franziu o senho. Por um segundo, esqueceu o celular vibrando sem parar no bolso. Os contratos à espera, os acionistas irritados. O mundo lá fora se apagou. Só restou a luz da cozinha.

Quando virou a esquina, a cena o atingiu como um soco. Primeiro a luz quente, depois o cheiro doce de chocolate. E então elas, Clara e Sofia, com seus vestidos simples de algodão, ficavam na ponta dos pés sobre duas cadeiras empurradas para perto da bancada, os rostinhos iluminados pela chama tímida de uma velhinha torta.

 E atrás delas, respirando com dificuldade, uma mão nas costas e outra na barriga arredondada, estava Ana Luía. Ela tentava sorrir, apesar do cansaço, apesar da dor discreta em cada movimento. Seu olhar, firme e meigo, guiava as meninas como se o mundo todo coubesse naquela pequena cozinha. Eduardo, parado na porta, perdeu o ar. Papai. Clara o viu primeiro.

 O sorriso dela abriu como se tivesse esperado por ele o dia inteiro. Olha o bolo que a tia Ana fez pra gente. Ana virou devagar, como quem tem medo de atrapalhar o momento das meninas. Os olhos dela encontraram os dele por apenas meio segundo. Mas esse meio segundo bastou para que Eduardo visse tudo.

 O inchaço nas mãos, o suor no canto da testa, o esforço para manter a postura reta, apesar da gravidez avançada e a dor, uma dor silenciosa de quem estava ali para as filhas dele, mesmo que a própria vida estivesse desmoronando aos poucos. Eduardo abriu a boca para dizer alguma coisa, qualquer coisa, mas a voz simplesmente não saiu. A garganta queimava seca.

 Aquela cozinha que há meses ele mal pisava parecia menor, quente demais, cheia demais de amor que não vinha dele. Sofia apoiou o queixo na mesa e soprou um pouco de farinha que tinha ficado presa no braço. A poeira branca subiu como um pequeno brilho no ar. Papai, você viu? A gente ajudou. Ela ergueu a mãozinha coberta de chocolate endurecido.

 Eduardo sentiu o peito apertar com força. Tinha esquecido de novo o aniversário das filhas. Aquelas crianças que ele dizia amar acima de tudo tinha simplesmente desaparecido da cabeça dele, engolido por prazos, reuniões, voos, contas, números, números, números. Ana percebeu o desconforto dele e com a gentileza que parecia nascer natural dela, disse baixa, quase num sussurro. Eles mereciam comemorar, senor Eduardo.

 Nem que fosse assim, bem simplesinho, simplesinho. A palavra ecoou nele, bateu em algum canto esquecido da alma. Clara puxou a manga da camisa dele. Papai, a gente pode cantar agora. A vela tá derretendo. A vela. Uma vela torta, presa num bolo morno e imperfeito, coberto de brigadeiro caseiro que escorria para os lados.

 Eduardo deu dois passos para a frente, depois outro. As pernas tremiam como se ele estivesse caminhando sobre o próprio passado. Quando chegou até elas, ajoelhou devagar, o terno caro apertando nos ombros, e abraçou as duas meninas ao mesmo tempo. Os braços pequenas delas envolveram o pescoço dele com uma facilidade que parecia castigá-lo ainda mais.

 Clara tocou o rosto dele com a ponta dos dedos. Papai, você tá chorando? Ele não conseguiu evitar. As lágrimas vieram quentes, rápidas, inesperadas. Escorreram pelo rosto como se tivessem ficado presas por anos. Não era tristeza, era culpa, era vergonha. Era o início de algo que há muito tempo ele tinha esquecido como sentir.

 Ana ficou parada ali, observando uma mão no balcão para segurar o peso da barriga, a outra limpando discretamente um rastro de farinha no avental. Ela não disse nada, mas o olhar dela, calmo, terno, parecia entender mais do que qualquer palavras. Quando finalmente Eduardo respirou fundo e tentou se recompor, Sofia bateu palminhas. Agora sim, vamos cantar. Papai precisa ajudar.

 E pela primeira vez em muito tempo, ele ajudou. Cantou baixinho, errado, fora do ritmo. Mas cantou. cantou enquanto segurava as duas meninas, como se elas fossem as únicas coisas no mundo capazes de salvá-lo dele mesmo. Quando as pequenas sopraram a vela juntas, a chama vacilou, dançou e se apagou com um fio de fumaça azulada subindo para o teto.

 Eduardo ergueu o olhar e viu no canto da bancada, ao lado do bolo torto, havia um guardanapo amassado com marcas de chocolate e pequenas manchas de água. Talvez suor, talvez lágrimas que Ana não deixou cair na frente das crianças. Aquele guardanapo, esquecido, sujo, simples, parecia carregar toda a verdade que ele evitou olhar por anos.

 Alguém estava cuidando das filhas dele com mais amor do que ele próprio tinha oferecido. E enquanto a fumaça da vela ainda subia devagar, Eduardo percebeu algo que mudaria tudo. Aquela cozinha, aquela noite, aquele bolo imperfeito. Não eram apenas um aniversário, eram um aviso.

 um aviso silencioso, feito de chocolate, cansaço e coragem, de que ele estava prestes a perder aquilo que mais importava, sem nem perceber. Naquela mesma manhã, horas antes da vela acesa, do bolo torto e das lágrimas de Eduardo, a mansão dos farias respirava um silêncio quase desconfortável, um silêncio que não era de paz, era de abandono.

 A luz do sol entrava pelas janelas enormes da sala, refletindo nos móveis impecáveis e nas flores artificiais que nunca murchavam. Tudo bonito, tudo caro, tudo frio. Na mesa da cozinha, próximo ao porta-frutas, uma folha de papel dobrada ao meio esperava, como se fosse só mais um lembrete qualquer. Volto tarde. Não me esperem, Marcela. A letra era fina, elegante e vazia. Foi clara quem viu primeiro.

 Pegou o papel com esforço, sem entender muito bem o que aquilo dizia. Ela sabia ler algumas palavras, mas não todas. Sofia se aproximou, apoiando o queixo no ombro da irmã. É da mamãe. Antes que Clara pudesse responder, Ana Luía apareceu no corredor com um punhado de roupas pequenas nos braços. O cheiro de amaciante fresco a envolvia e os passos dela eram medidos, um pouco lentos demais, como se o peso da barriga estivesse puxando cada movimento para o chão.

 Meninas, tomem cuidado com isso aí. O que é que vocês acharam? Clara estendeu o bilhete. Ela foi embora de novo. Ana leu devagar, respirou. Guardou o ar no peito por um segundo antes de falar. Parece que sim, meu amor. Sofia apertou a mãozinha da irmã. Mas ela volta pro nosso parabéns, né, tia Ana? A pergunta caiu no ar, como um copo escorregando da mão e quebrando no chão. Mesmo sem som, todo mundo pôde sentir.

Ana sorriu, mas seu sorriso tinha uma borda trêmula. Mamãe de vocês, ela deve estar ocupada, né? Às vezes adulto esquece do horário, mas enquanto ela não volta, ela ajoelhou devagar, uma mão na bancada para se apoiar, a outra passando suavemente no cabelo delas. A gente pode fazer alguma coisa só nossa.

 O que vocês acham? Clara tentou animar a voz. Tipo, o quê? Ana olhou para o calendário pendurado na parede. Um calendário simples, com desenhos de frutas e uma moldura de plástico. E ali, em maio, no dia de hoje, havia um coração feito com canetinha rosa, torto, infantil, mas cuidado com amor. Ana sentiu um aperto fundo no peito.

 Não era só por elas, era por ela mesma também. Ela conhecia bem o peso de esperar alguém que sempre chegava tarde demais. Respirou mais fundo, colocando uma mão por instinto na barriga. O bebê chutou leve, como se estivesse respondendo. Hoje é o aniversário de vocês, né? Clara assentiu. Mas a mamãe disse que ano que vem a gente faz festa de verdade.

 Essa frase ficou ecoando na cozinha silenciosa. Festa de verdade. Como se amor só valesse se fosse grande, caro, cheio de convidado e fotógrafo. Ana sentiu algo dentro dela se partir, bem discreto, mas definitivo. Ela estava cansada, cansada de ver duas crianças esperando um tipo de amor que não chegava. Cansada de se segurar para não se apegar demais.

 Cansada de lutar contra a sensação de que aquela casa precisava dela mais do que admitia. E ao mesmo tempo, enquanto olhava para o calendário, para o coração desenhado por mãos pequenas, ela sentiu nascer algo que nem ela mesma esperava. Coragem. levantou-se, apoiando bem o corpo, ajeitou a camiseta por cima da barriga e anunciou: “Meninas, vocês querem uma festa hoje?” As duas se entreolharam, surpresa e esperança, brigando nos rostinhos. “Uma festa nossa, não grande, não chique, mas nossa.

 Pode, pode mesmo hoje.” Ana riu. Pode. E quem vai fazer o bolo? Somos nós três, a cozinha. Poucos minutos depois já parecia outro mundo. A farinha subia como pequenas nuvens brancas. O cheiro de manteiga derretida tomava o ar. Sofia cantava alguma coisa sem letra, só sílabas felizes.

 Clara tentava quebrar os ovos sem derramar casca nenhuma e falhava lindamente. Ana, mesmo com a barriga pesada e com a coluna latejando, sentia algo que fazia muito tempo que não sentia. Uma alegria simples, quente, quase infantil. Ela lembrava de quando era pequena em Recife, ajudando a avó fazer bolo na cozinha apertada da casa. Lembrava do toque das mãos da avó segurando-a dela.

 Lembrava da mesma sensação que via agora no rosto das meninas. Sofia mergulhou o dedo no chocolate. Aná ficou bom. Ela mostrou o dedo lambuzado. Ana segurou o riso. Não vale comer tudo antes de pôr no bolo, viu? A barriga puxou uma pontada, não forte, mas o suficiente para ela fechar os olhos por um instante. Clara percebeu. Tia Ana, você tá bem? A pergunta veio tão pura que Ana quase chorou. Eu tô, meu amor.

Eu tô bem, só cansada. Mas esse bolo vai ficar tão bonito que nem vou lembrar do cansaço. Ela mentia um pouco, mas mentia por amor. O bolo finalmente entrou no forno. As meninas correram até o sofá para pegar bonecas e cantar parabéns antecipados, enquanto Ana limpava a pia devagar, a mão deslizando pelo tampo frio para aliviar a dor nas costas. O relógio marcava quase 8 da noite.

 O cheiro do bolo assado se espalhou pela casa, aquele cheiro doce, profundo, que sempre pareceu significar lar, mesmo em casas que esqueciam como ser um. Quando Ana tirou o bolo do forno, ele estava torto para um lado. Uma rachadura pequena atravessava o topo. Ela riu sozinha, torto, mas cheio de amor. Igual muita coisa na vida.

 Ela colocou a cobertura de brigadeiro, deixando escorrer como lava quente. As meninas ficaram hipnotizadas. Tá lindo. É o melhor bolo do mundo. Ana colocou uma vela no centro, simples, vermelha, baratinha, mas era o suficiente. Quando ela acendeu a vela, a chama refletiu no inox dos eletrodomésticos, criando pequenas faíscas de luz pela cozinha.

 E nesse reflexo, por um momento, Ana viu algo que nunca admitiria em voz alta. um pedacinho do futuro que ela começou a desejar sem querer. Um futuro no qual ninguém esperaria por amor. Ele simplesmente existiria. Nesse instante, a porta da garagem começou a subir. O som ecoou por toda a casa e Ana percebeu que aquilo, o bolo, a vela, as meninas sujas de farinha, iria mudar tudo.

 Talvez não naquele segundo, talvez não dia seguinte. Mas mudaria. Clara segurou a mão dela. Tia Ana, ele vai gostar, né? Ana sorriu. Vai, meu amor. Prometo que vai. A vela balançou com o vento leve que veio da porta se abrindo. E a luz da chama, fraca, insistente, viva, brilhou sobre o bilhete amassado, que ainda estava no canto da mesa. Volto tarde.

 Mas naquele momento a casa não estava mais esperando Marcela. Ela estava esperando outra coisa, outra pessoa, outro tipo de amor. E a chama da vela parecia saber disso antes de todo mundo. Aquela noite caiu pesada sobre a mansão. Pesada do tipo que parece empurrar o peito da gente contra o colchão. Eduardo estava deitado, mas não descansava.

 Virava para um lado, virava para o outro. E a escuridão parecia ainda mais escura, porque a mente dele não parava. A imagem insistia em voltar. Clara segurando o rosto dele com a palma miúda, Sofia batendo palmas coberta de chocolate. Ana ao fundo, exausta, apoiando as costas na pia para não perder o equilíbrio.

 Ele passou a mão no rosto, pressionando os olhos. Como ele, um homem acostumado a controlar tudo, tinha deixado escapar justamente o que mais importava. O celular jogado na mesinha piscou com três notificações. Reunião às 8. Mensagem do diretor financeiro. Alteração urgente no contrato.

 Eduardo virou o aparelho com um tapa seco de costas para a tela. Pela primeira vez em muito tempo, ele não queria ser encontrado. Amanhã seguinte, amanheceu cinza, com nuvens pesadas escondendo o sol. Eduardo desceu as escadas devagar, sentindo algo incomum dentro de si, uma inquietação que não sabia onde colocar. Na cozinha, encontrou Ana sentada à mesa com as meninas.

 Elas comiam pão com manteiga e riam de alguma piada que ele provavelmente nunca entenderia. Ana passava geleia no pão de Sofia com movimentos lentos, cuidadosos, como se cada gesto tivesse um peso diferente, agora que carregava duas vidas ao mesmo tempo. Quando viu Eduardo, ela tentou levantar, mas o movimento foi abrupto demais.

 Uma pontada atravessou a lombar e ela se apoiou na cadeira, respirando fundo. “Calma, Eduardo”, disse sem pensar. A palavra saiu antes mesmo que ele se desse conta. Atravessou a cozinha em dois passos. Não precisa levantar. Os olhos de Ana encontraram os dele. Havia surpresa e algo mais profundo, algo que ela escondeu rápido demais.

 Eu tô bem, senor Eduardo, mas a mão em sua lombar denunciava o contrário. Eduardo puxou outra cadeira, sentou-se diante delas. Clara sorriu. Papai, você vai trabalhar hoje? Ele abriu a boca. Ia responder automaticamente, como sempre. Sim, meu amor. Papai precisa. Mas as palavras evaporaram.

 Ele olhou para Ana, as olheiras, o esforço, a solidão estampada num gesto simples. Depois olhou para as filhas, duas crianças que só queriam que ele estivesse ali, e então disse: “Hoje não. Hoje eu fico com vocês.” O silêncio que seguiu foi quase poético. As meninas ficaram imóveis por meio segundo. meio segundo onde tudo dentro delas parecia segurar a respiração até explodirem num couro de comemoração.

 Ana sorriu, mas era um sorriso misturado com alívio e preocupação. Tem certeza, Sr. Eduardo? Seu trabalho. Eduardo balançou a cabeça devagar. Tem coisas que não podem esperar mais. As horas seguintes foram como uma vida paralela que ele não sabia que existia. Eduardo ajudou as meninas a montar um quebra-cabeça gigante na sala.

 Leu um trecho de um livro infantil para elas, tropeçando nas palavras difíceis. Tentou e falhou miseravelmente em fazer tranças no cabelo de Sofia. As meninas riam tanto que a própria sala parecia rir junto. E Ana, Ana observava tudo com aquele olhar doce, silencioso, que só quem aprendeu a amar devagar consegue ter.

 À tarde, ele a encontrou inclinada, recolhendo brinquedos espalhados pelo corredor. A mão na barriga revelava que algo ali pesava mais do que deveria. Ana, ele chamou, chegando perto. Senta um pouco. Você está muito pálida. Ela tentou sorrir. É só cansaço. Gravidez é assim mesmo. Você não precisa fazer tudo sozinha, ele disse.

 A voz mais firme do que esperava de si mesmo. Ana parou, respirou, olhou para ele com um tipo de vulnerabilidade que o desarmou de vez. Se eu não fizer, quem faz? A pergunta ficou no ar. E Eduardo sentiu cada sílaba entrando como uma verdade que ele nunca quis encarar. Duas semanas depois, Marcela voltou.

 A porta da sala abriu com o clique seco do salto fino batendo no piso de madeira. Ela carregava sacolas de grife, usava perfume forte, o cabelo impecável, como se o mundo fosse um desfile. E ela, a estrela. “Oi, amor”, ela disse, sem olhar para as meninas, exausta. Você não faz ideia. Eduardo estava sentado no sofá esperando. A postura dele era rígida, diferente.

 Marcela, a gente precisa conversar. Ela revirou os olhos. Agora não, Eduardo, por favor. Tô morta. Ele se levantou. A gente precisa conversar agora. Marcela suspirou irritada. Tá. O que foi? Eduardo encarou-a por alguns segundos, como se estivesse calculando o peso exato de cada palavra. Você esqueceu o aniversário das meninas? Ela deu uma risada curta.

 Meu Deus, é isso? Já te falei que ano que vem faço uma festa de verdade. Não, essa palhaçada que a babá inventou. A frase caiu como vidro quebrado. Ana, que vinha do corredor com uma bandeja de suco para as crianças, congelou. O rosto dela ficou num misto de surpresa e dor, um rubor contido. Eduardo respirou fundo.

 O ar parecia ferver dentro dele. Ana não inventou palhaça nenhuma, ele disse baixinho. Aquele bolo fez minhas filhas mais felizes do que qualquer coisa que você já planejou. Marcela riu. Ai, Eduardo, você tá mesmo defendendo a Babá, uma mulher grávida, sem marido, vivendo às custas da gente. O silêncio que se seguiu foi o tipo de silêncio que muda histórias.

 Eduardo deu um passo à frente. Ela deu mais amor às minhas filhas em um dia do que você deu em anos. Marcela piscou surpresa, depois encolheu os ombros. Olha, se isso é ciúme ou crise de meia idade, resolve sozinho. Eu não vim aqui para brigar. Eduardo a cortou. Ana, não é o problema. Você é Marcela abriu a boca indignada. Como você ousa? Eu quero o divórcio.

 A frase ecoou na sala inteira. Ana soltou a bandeja, não forte, não barulhento, apenas, deixou-a escorregar devagar para a mesa lateral, como se suas mãos tivessem esquecido como funcionar. Marcela ficou estática, a expressão fragmentada como porcelana rachada. Você, você tá falando sério? Eduardo assentiu.

 As meninas merecem crescer em uma casa onde amor não é agenda, onde presença não é luxo, onde ninguém é humilhado por cuidar delas. Marcela pegou as sacolas, a fúria, engolhindo qualquer resquício de razão. Você vai se arrepender. Mas a porta bateu antes que a ameaça terminasse. E então, silêncio. Eduardo ficou parado, respirando como se tivesse acabado de emergir debaixo d’água.

 As meninas observavam de longe, abraçadas. Ana estava imóvel, uma das mãos sobre a barriga, não em dor, mas em proteção. Eduardo olhou para ela. Pela primeira vez, viu? realmente não como funcionária, não como solução conveniente, mas como alguém que estava ali, apesar de tudo, como alguém que segurava o mundo dele e não reclamava do peso.

 O tapete da sala ainda tinha um grãozinho de chocolate que Sofia deixara cair. Um detalhe bobo, imperfeito. Mas foi exatamente esse grãozinho que fez Eduardo entender. Às vezes, o amor que salva uma família começa de forma pequena. torta, caseira, mas verdadeira. E naquele instante, olhando Ana e as filhas, ele soube que sua vida tinha começado a mudar no exato momento em que aquela vela torta foi acesa.

 Depois daquela noite em que a porta bateu atrás de Marcela, a mansão dos Farias ficou diferente. Não era silêncio de vazio, era silêncio de respiração nova, de página virada. Um silêncio que dizia: “Agora começa outra história”. Nos dias seguintes, Eduardo atravessou a casa como quem tenta aprender a andar de novo.

 Desligava o celular às 6, colocava avental, mesmo sem saber cozinhar. Aprendeu a separar roupa colorida de branca e com o tempo foi percebendo que as meninas não pediam muito, só pediam alguém que escutasse. Clara contava os medos antes de dormir. Sofia mostrava desenhos de arco-íris com o nome da família escrito torto no meio, papai, Clara, Sofia e Ana.

 Sem perceber, Eduardo começou a olhar para esse nome com outros olhos, com uma calma que ele não sentia há anos. Ana seguia firme. Mesmo carregando a barriga cada vez mais grande, ela fazia o possível para não deixar transparecer o cansaço. Mas Eduardo via. via quando ela colocava a mão nas costas devagar, como se escondesse uma fisgada. Via quando ela se sentava para descansar e os dedos dela tremiam um pouco de puro esgotamento.

Um dia, enquanto ela dobrava as roupas das meninas sentada no chão, Eduardo se abaixou perto dela. “Você precisa pegar leve, Ana.” Ela sorriu, passado de leve a mão na barriga. O bebê tá crescendo rápido, às vezes pesa. Eduardo ficou observando.

 A sala estava cheia de peças de roupa miúdas, camisetas, meias, vestidos. Mas de repente o que chamou mais atenção foi outro detalhe. As roupas usadas pelas meninas estavam com cheiro de sol, de conforto, cheiro de cuidado. “Você não faz ideia do quanto ajuda a minha família”, ele disse baixo. Ana ergueu os olhos devagar.

 O olhar dela vacilou como se não tivesse certeza do que responder. Eu só faço o meu melhor. Mas o arre guardava outra verdade, uma que nenhum dos dois ousava tocar ainda. Com o divórcio encaminhado, Marcela assinou papéis com pressa. Não pediu às filhas. Queria apenas sua parte em dinheiro, como se tudo fosse transação. Eduardo saiu da reunião com um peso tirado das costas e outro colocado no lugar.

 Um peso que parecia perguntar: “E agora, o que você faz com essa nova chance?” Quando voltou para casa, encontrou Ana dormindo sentada no sofá, as pernas inchadas, o pescoço torto numa posição desconfortável. As meninas haviam feito um ninho de cobertores ao lado dela, como se tivessem montado vigília. A TV estava passando desenhos em volume baixo.

 Uma panela de sopa ainda morna estava sobre o fogão. Eduardo ficou parado ali, só olhando. A luz suave da sala batia no rosto dela, destacando o cansaço. Sim, mas também aquela paz silenciosa que nunca existiu em Marcela. Ele queria agradecer, mas obrigado. Parecia pouco demais, quase vazio diante do que ela fazia diariamente. Cobriu-a com uma manta, ajeitou o pescoço dela devagar e, pela primeira vez tocou sua mão, não como patrão, mas como alguém que reconhece outra alma cansada.

 Ana abriu os olhos por um instante surpresa, mas depois fechou de novo e sorriu daquele jeito mínimo, involuntário. Aquela noite, Eduardo entendeu que estava se apaixonando, não por alguém perfeito, mas por alguém real. O tempo correu rápido. O barrigão de Ana cresceu tanto que as meninas falavam com ele como se fosse pessoa.

 Bebê, a gente vai ser suas irmãs, tá? Você vai brincar de boneca com a gente?” Ana ria e chorava quase ao mesmo tempo. Hormônios, talvez. Ou talvez fosse o fato de que pela primeira vez ela não estava sozinha. Numa tarde de domingo, enquanto Eduardo preparava suco de laranja, Sofia fez a pergunta que abriu um caminho novo sem pedir licença.

 “Tia Ana, você vai casar com o papai?” Ana ficou vermelha na hora. O copo quase escapou da mão. Eduardo, vindo da sala, ouviu e parou. O olhar dele encontrou o dela no exato instante em que Clara completou. Seria tão legal a gente virar uma família de verdade. Ana não sabia onde colocar os braços, as mãos, os olhos e Eduardo finalmente tomou coragem. Ele sentou ao lado dela.

 A casa estava silenciosa, com apenas o barulho das meninas brincando no quintal. Ana, eu sei que a gente passou por muita coisa e eu sei que você não esperava isso, mas ele respirou buscando firmeza. Eu não consigo imaginar esta casa sem você. Ana ficou imóvel. As palavras batiam nela como ondas, uma atrás da outra. Eduardo, eu não quero que você fique aqui por trabalho.

 Quero que fique porque é aqui que seu coração se sente em casa. Ele tocou levemente a mão dela. Quente, trêmula, honesta. Depende só de você. Você aceita ficar comigo, com as meninas. Era quase um pedido de casamento sem ser. E ainda assim era mais profundo do que muitos pedidos de joelhos. Ana levou a mão até o rosto, escondendo o choro.

 Ela não conseguia falar, então só balançou a cabeça devagar, com força suficiente para deixar claro: “Sim, ela aceitava.” As meninas correram até eles sem entender direito, só felizes porque sentiram a energia no ar. Eduardo abraçou as três e entre lágrimas, Ana pensou que algumas famílias não nascem de sangue, nascem de escolha. Poucos meses depois, o casamento simples aconteceu em Recife.

 Um jardim pequeno, luzes penduradas, música suave vinda de um violão. Ana estava linda num vestido leve, a barriga já quase pronta para o mundo. Clara e Sofia eram as daminhas. Eduardo não tirava os olhos da nova família, como se tivesse medo de que tudo não passasse de sonho. E o bolo do casamento não era alto, nem perfeito, nem cheio de camada.

 Era um bolo de brigadeiro torto, igual ao primeiro, feito por Ana e pelas meninas. Quando Eduardo provou o primeiro pedaço, riu. Foi isso aqui que me acordou. Anos se passaram. A bebê de Ana, Lara, agora corria pela casa com o mesmo brilho nos olhos das irmãs. Num fim de tarde preguiçoso, Clara e Sofia, já adolescentes, conversavam na cozinha enquanto ajudavam a mãe a fazer outro bolo.

 Lembra do primeiro? Como esquecer? Foi o dia que tudo mudou. Eduardo escutava da porta e sorriu sozinho. A luz do pôr do sol entrava pela janela, batendo no bolo simples sobre a mesa, e ao lado dele um guardanapo manchado de chocolate que Lara tinha deixado cair. Eduardo pegou o guardanapo, sentiu a textura grudenta e sorriu mais forte.

 A vida inteira dele tinha mudado por causa de um bolo imperfeito. E naquele fim de tarde quente, com cheiro de brigadeiro pelo ar, ele entendeu que algumas coisas, as mais importantes, não precisam ser perfeitas para serem eternas. Elas só precisam ser verdadeiras. M.