O portão se abriu sem pressa, com um rangido metálico que ecoou pelo jardim perfeitamente podado. Mariana sentiu o som vibrar no peito antes mesmo de dar o primeiro passo para dentro. O sol da manhã brilhava forte lá fora, típico de São Paulo, depois da chuva da madrugada.

 Mas ali dentro, ali dentro o ar era outro. Não era frio de temperatura, era um frio que não vinha do ar condicionado, vinha de algum lugar mais fundo, um frio que não tocava a pele, tocava o silêncio. Mariana segurou com força a alça do saco de pano que trazia pendurado no ombro. Dentro dele tudo o que possuía para aquele dia, uma marmita simples, um terço gasto e a carteira com documentos amassados. Respirou fundo antes de atravessar o portão.

 O cheiro do lugar a atingiu de imediato. Cera de piso, produto de limpeza caro, algo artificial. Nenhum cheiro de comida, nenhum cheiro de casa. Você é a nova faxineira? A voz veio seca, direta. Mariana levantou os olhos. Dona Lourdes estava parada no topo de três degraus de pedra clara, uniforme impecável.

 Cabelos presos num coque rígido. Expressão dura de quem já viu gente demais passar por ali e ir embora sem deixar rastro. Sou sim, senhora. Mariana Santos respondeu baixo instintivamente. Dona Lourdes olhou o relógio. 2 minutos atrasada. Aqui atraso vira hábito e hábito vira demissão. Mariana assentiu, não discutiu.

 Não explicou o ônibus quebrado, nem o trajeto longo desde Capão Redondo. Já aprendera. Fazia tempo que naquele tipo de casa o tempo tinha outro valor e o dela valia pouco. Entrou. O piso de mármore refletia a luz como um espelho gelado. Cada passo de Mariana ecoava grande demais para o corpo pequeno que ela tinha.

 As paredes eram altas, decoradas com quadros de pessoas sérias demais, todas vestidas com roupas elegantes, olhares julgadores acompanhando cada movimento. A casa era linda e morta. Escuta bem”, disse dona Lourdes, caminhando à frente, sem olhar para trás. “Aqui você veio para limpar, não para ouvir, não para olhar, muito menos para falar.

” Mariana engoliu em seco. “O senhor Eduardo não gosta de gente circulando. Se ele entrar num cômodo, você sai. Se ele falar, você abaixa a cabeça. Entendido?”. “Sim, senhora. E o mais importante, dona Lourdes parou subitamente, virou-se. É proibido subir pro andar de cima, só com ordem expressa. O quarto do menino fica lá.

 A palavra menino ficou suspensa no ar por um segundo, a mais do que deveria. O bebê. Mariana começou sem perceber. Ele está doente. O olhar de dona Lourdes endureceu. Isso não é da sua conta. Mariana sentiu o rosto esquentar. Desculpa, senhora. Recebeu um balde, um pano, produtos de limpeza com rótulos em inglês. Vestiu o uniforme cinza, um número maior do que o seu corpo. As mangas cobriam parte das mãos. Ela as dobrou com cuidado.

 Começou pela sala principal. Enquanto esfregava o chão, Mariana percebeu algo que a incomodava mais do que o frio. O silêncio não era completo. Havia um som muito baixo, tão fraco que dava para confundir com o vento passando pelas frestas. Ela parou o pano por um segundo, a testa franzida. Era um choro não alto, não desesperado.

 Era um som contínuo, cansado, um gemido que parecia vir de muito longe, como se estivesse atravessando paredes grossas e portas fechadas para existir. Mariana conhecia choro de criança. Tinha ajudado a criar sobrinhos, filhos de vizinhas. Choro de fome era forte. Choro de birra era escandaloso. Aquele, aquele era diferente. Era um choro que pedia pouco, quase nada. Talvez só presença.

 Mariana, ela se assustou, voltando a esfregar o chão com força. Desculpa, senhora. Foca no serviço resmungou dona Lourdes, já se afastando. Minutos depois, uma jovem de uniforme branco desceu as escadas às pressas, os olhos vermelhos. Maquiagem borrada. Nas mãos uma bandeja de prata. Mariana viu o conteúdo de relance.

 Um potinho caro de papinha importada intacto. Nem a tampa havia sido aberta. Não dá, a moça murmurou quase chorando. Ele não abre a boca. O doutor gritou comigo. Fui demitida. Quinta essa semana. Dona Lourdes suspirou. Vai com Deus, filha. A jovem sa pela porta de serviço. Ele não abre a boca. Mariana sentiu um aperto estranho no peito. Continuou limpando, mas agora o pano parecia pesado demais.

 As palavras martelavam na cabeça. Ela mesma já tinha passado fome. Sabia o que era o estômago roncar a noite. Mas uma criança, uma criança que não come, mesmo tendo tudo, o choro voltou mais fraco. Mariana levantou os olhos instintivamente para a escada que levava ao andar de cima.

 Os degraus pareciam longos demais, proibidos demais. A casa inteira parecia prender a respiração. “Deus”, murmurou ela quase sem som. “cuida dessa criança! Três dias se passaram”. Mariana aprendeu a se mover como sombra. limpava sem fazer barulho, entrava e saía dos cômodos antes que alguém percebesse.

 A casa seguia fria, o choro às vezes sumia e isso a assustava ainda mais do que quando ele existia. Na terceira manhã, dona Lourdes apareceu com uma prancheta na mão. A babá nova reclamou do banheiro do andar de cima, derramou o talco. Diz que não é trabalho dela limpar. Mariana sentiu o coração acelerar.

 A senhora quer que eu suba, só o banheiro do corredor”, avisou dona Lourdes, estreitando os olhos. “Nem pense em olhar pro quarto do menino. A babá é indicada da noiva do senor Eduardo, gente poderosa.” Mariana assentiu, subiu as escadas devagar. A cada degrau, o ar parecia mais pesado. O choro ficou mais próximo. Agora não era apenas um som, era quase palpável.

 No corredor, a luz era baixa, persianas fechadas, portas fechadas. Uma delas estava entreaberta. Mariana tentou ignorar, entrou no banheiro, começou a limpar o talco espalhado, mas então ouviu a voz. Para de chorar, garoto irritante. A mão de Mariana parou no ar. Come isso logo? continuou a voz feminina impaciente. Me dá dor de cabeça. O choro se transformou num som entrecortado, um soluço fraco. Mariana sentiu algo revirar dentro dela.

Um instinto antigo, profundo, mais forte que o medo, mais forte que a necessidade do emprego. Ela se aproximou da parede devagar, como quem pisa em terreno proibido. Olhou pela fresta da porta, viu o berço grande demais para um corpo tão pequeno. Viu brinquedos caros jogados no chão.

 Viu uma mulher sentada longe, mexendo no celular, sem olhar para a criança, e viu o bebê tão magro que doía, os olhos inchados, vermelhos, as mãos pequenas se movendo no ar, procurando algo que não vinha. Mariana levou a mão à boca. O bebê fez força para chorar. E o som saiu fraco, quase nada. Foi então que ela soube. Não pensou, não calculou, não planejou, só soube.

 Voltou lentamente para o corredor, o coração batendo tão alto que parecia denunciar sua presença. Desceu as escadas com as pernas trêmulas. No bolso do uniforme, o pano de limpeza ainda estava quente do esforço. Na cozinha, ninguém a observava. Mariana olhou para as próprias mãos vermelhas, ásperas, simples. Apertou o pano com força.

 Lá em cima, atrás de portas caras e paredes grossas, alguém muito pequeno estava desistindo do mundo. E aquela casa enorme e silenciosa, parecia não perceber. O som voltou no meio da manhã, como se a casa resolvesse lembrar do que tentava esconder. Um choro curto, depois outro fraco. Entre um e outro, um silêncio pesado, daqueles que fazem o coração errar o compasso.

 Mariana estava ajoelhada no corredor, esfregando o rodapé com uma escova pequena. O produto de limpeza ardia no nariz. Mesmo assim, ela parou. Ficou imóvel. A escova suspensa no ar. Não era birra, não era fome comum, era cansaço. Ela reconhecia aquele som porque já o tinha ouvido antes, não em casas grandes como aquela, mas em quartos apertados, quando uma criança chora até perder a força, e o choro vira pedido sem voz. Mariana, a voz de dona Lourdes ecoou da cozinha.

 Já vou, senhora. Mariana retomou o movimento agora mais rápido, como se o barulho da escova pudesse abafar o que vinha de cima. Mas não adiantava. O som atravessava paredes, descia escadas, se infiltrava na pele. Minutos depois, ela viu a babá nova descer. Paula. Uniforme branco, justo demais.

 cabelo preso de qualquer jeito, o celular grudado na mão. “Não aguento mais esse moleque”, reclamou falando com alguém do outro lado da linha. “Se não quiser comer, que fique sem comer. Não sou mãe dele.” Ela passou por Mariana sem olhar, deixando atrás de si um rastro de perfume forte e impaciência. O choro cessou.

 Esse foi o pior momento. Mariana sentiu um frio subir pelas pernas. Parar de chorar não significava melhorar, às vezes significava o contrário. Às vezes o corpo simplesmente desistia. Ela tentou afastar o pensamento. Pensou na mãe, nos remédios caros, no aluguel atrasado. Pensou no aviso de dona Lourdes.

 Pensou no uniforme cinza que ainda cheirava a novo. Pensou em ir embora, mas o choro voltou mais perto. A escada de serviço rangendo denunciava passos acima. Paula tinha ido ao banheiro. Mariana soube disso sem ver, como quem sente a mudança no ar antes da tempestade. Seu corpo decidiu antes da cabeça. Ela subiu dois degraus, parou, escutou.

 Nenhuma voz adulta, apenas o som irregular de uma respiração curta. Subiu mais. O corredor do andar de cima estava mergulhado numa penumbra estranha, apesar do sol lá fora. As persianas fechadas filtravam a luz, criando faixas pálidas no chão. A porta do quarto do bebê estava entreaberta, como antes.

 Mariana encostou a mão na parede, sentindo o frio da tinta sob a pele quente. aproximou o rosto da fresta, viu o berço grande, claro demais, cercado por brinquedos que nunca haviam sido tocados, viu o corpo pequeno dentro dele, se movendo devagar, os olhos inchados, a pele pálida, os lábios secos.

 O bebê tentou chorar, não conseguiu, tuciu um som seco, assustador. Mariana entrou. O quarto cheirava a remédio e ar parado. O ar- condicionado fazia um ruído constante, quase agressivo. Na poltrona distante, o celular de Paula vibrava esquecido sobre o braço do estofado. Ela realmente tinha saído. Mariana se aproximou do berço como quem se aproxima de um animal ferido.

 Devagar, com cuidado, estendeu a mão. “Oi”, sussurrou. Oi, meu anjo. Ao sentir o toque, o bebê abriu os olhos, olhos grandes demais para um rosto tão magro. Ele mexeu a mãozinha, fraco, até alcançar o dedo de Mariana. Apertou. Não foi um aperto forte, foi um pedido. Mariana sentiu o nó se formar na garganta. Tocou a bochecha dele com o dorso da mão. Estava fria, fria demais.

olhou para o canto do berço. O biberão estava ali caído de lado. Ela pegou, cheirou. Um cheiro artificial, metálico, frio. Não é isso murmurou. Ninguém quer isso. O bebê manteve o dedo dela preso na mão, como se tivesse medo de que ela sumisse. Mariana sentiu algo se organizar dentro dela, não como um plano, mas como uma certeza silenciosa. Ela soltou o dedo com cuidado.

 O bebê choramingou de novo. Um som curto de protesto. “Já volto”, prometeu, mesmo sem saber para quem falava. Saiu do quarto no mesmo ritmo em que entrou. O coração disparado, desceu as escadas. Na cozinha, os chefes tinham saído para o descanso. O espaço enorme parecia um laboratório. Aço, luz branca, silêncio.

Mariana olhou ao redor. Havia de tudo. Carnes importadas, frutas exóticas, embalagens caras. Nada daquilo chamava. Ela procurou outra coisa. No fundo de uma prateleira encontrou um pacote simples de aveia. Ao lado, uma caixa de leite integral, um vidro esquecido de canela em pau, um frasco pequeno de essência de baunilha.

 Seu peito apertou, lembrou da cozinha da avó, do fogão antigo, do cheiro que se espalhava pela casa pequena quando alguém estava doente ou triste. Quando o coração aperta, a barriga fecha. A avó dizia: “Primeiro a gente cuida do coração”. Mariana pegou uma panela pequena dessas usadas para o café dos funcionários.

 Colocou o leite, acendeu o fogo baixo, quebrou a canela com cuidado, misturou a aveia aos poucos, mexendo sem parar. As mãos tremiam, não de insegurança, mas de pressa contida. Ela escutava tudo. O borbulhar suave do leite, o zumbido distante do ar condicionado, o próprio coração batendo alto demais. Quando acrescentou a baunilha, o cheiro mudou. A cozinha fria e silenciosa ganhou outra vida.

 Um aroma quente, doce, simples, cheiro de casa, cheiro de colo. Mariana fechou os olhos por um segundo, respirou fundo, sentiu coragem. Desligou o fogo, testou a temperatura com a ponta do dedo, esperou esfriar um pouco, pegou uma tigela pequena, cobriu com um pano limpo, subiu. Cada degrau parecia mais longo do que antes.

 O cheiro subia com ela, deixando um rastro invisível no ar da casa. O quarto estava do mesmo jeito, o bebê acordado, os olhos perdidos no teto. “Voltei”, disse Mariana baixinho. Ela o pegou no colo. Era leve demais. Sentou-se na poltrona, ajustou o corpo pequeno contra o seu, sustentando a cabeça com cuidado. Destampou a tigela.

O vapor subiu suave. O bebê franziu o nariz. Mariana sorriu mesmo com lágrimas nos olhos. Só prova”, pediu. “Se não gostar, a gente para”. Ela soprou a colher, encostou de leve nos lábios secos. O bebê virou o rosto. Mariana esperou, não forçou. Encostou de novo, apenas tocando. Uma gota escorreu pelo lábio inferior. O bebê passou a língua instintivamente. Parou.

 Os olhos se abriram um pouco mais. Devagar, como quem aprende algo esquecido. Ele virou o rosto de volta. Abriu a boca só um pouco. Mariana levou a colher. Ele engoliu. Um som pequeno escapou do peito dele. Um quase inaudível. Mariana sentiu as pernas fraquejarem. Continuou colher por colher. O corpo pequeno começou a relaxar. A cor pálida ganhou um tom rosado discreto.

 As mãos antestensas se soltaram. Ela cantar olou. Não uma canção perfeita, apenas uma melodia antiga, quebrada, mas cheia de intenção. Quando a tigela chegou à metade, o bebê bocejou, encostou a cabeça no peito dela, dormiu. Mariana ficou ali sem se mover, com medo de acordá-lo, com medo de ser descoberta. com medo de tudo, mas pela primeira vez desde que entrou naquela casa, sentiu algo diferente do frio. Sentiu calor.

 No corredor, o cheiro de canela continuava no ar, avançando silencioso, como se a própria casa tivesse começado a respirar. O motor desligou lá fora com um estalo seco. Mariana não ouviu. Ela estava sentada na poltrona do quarto, o corpo inclinado para a frente, como se pudesse proteger o pequeno mundo que respirava em seu colo.

 Tomás dormia pesado, a boca entreaberta, um fiapo de leite com canela desenhando um sorriso torto no canto dos lábios. O peito subia e descia num ritmo novo, mais calmo, vivo. Mariana não se mexia, contava as próprias respirações para não acordá-lo. O ar condicionado ainda zumbia, mas agora parecia distante, menos agressivo.

 O cheiro doce permanecia suspenso no quarto, teimoso, como se tivesse decidido ficar. Foi então que o silêncio mudou. Não foi um barulho alto, foi a ausência de um som conhecido. A casa lá embaixo sempre fazia pequenos ruídos, passos apressados, portas abrindo, vozes contidas. Tudo cessou de uma vez. Mariana sentiu antes de entender. A maçaneta girou.

 O que está acontecendo aqui? A voz atravessou o quarto como um golpe, grave, tensa, carregada de algo que Mariana conhecia bem, medo disfarçado de raiva. Ela deu um salto da poltrona instintivamente, protegendo Tomás contra o peito. O coração disparou tanto que pareceu bater nos ouvidos. Eduardo Vilar estava parado na porta, camisa social amarrotada, gravata solta, o rosto marcado por olheiras profundas, o olhar correu rápido pelo quarto.

 A poltrona ocupada, a tigela na mesinha, a colher usada, o bebê nos braços de uma mulher de uniforme cinza. Tudo errado, tudo fora do lugar. Larga meu filho”, disse ele avançando um passo. Mariana sentiu as pernas fraquejarem. “Senhor, eu tentou falar, mas a voz não saiu inteira. Eduardo chegou mais perto.

 O cheiro de canela atingiu seu nariz. Aquilo o irritou ainda mais.” “O que é isso?”, apontou para a tigela. “O que você deu para ele?” “É só leite, aveia, canela?” Mariana falou rápido, tropeçando nas palavras. Ele não estava comendo. Eu só quis. Eduardo não deixou terminar.

 Tirou Tomás de seus braços com cuidado brusco, como quem resgata algo precioso de um perigo invisível. Passou a mão pela testa do filho, conferiu os olhos, o rosto, a boca. Você é louca? A voz saiu mais alta. Quem te deu permissão para tocar nele? para dar comida. Você sabe o que fez? Mariana deu um passo para trás. A poltrona bateu levemente na parede. Eu só.

 Os olhos dela ardiam. Ele estava chorando. A babá não estava aqui. Isso não te diz respeito. Eduardo cortou. Você veio para limpar chão, só isso. Tomás se mexeu nos braços do pai, incomodado pelo movimento brusco. Não chorou, apenas fez um som pequeno como um suspiro. Eduardo ficou atento, esperou o choro que não veio.

Tomás encostou a cabeça no ombro do pai, o corpo relaxou. Um arroto suave escapou, quase um pedido de desculpas. Em seguida, algo que Eduardo não via havia semanas. Um sorriso pequeno, desajeitado, real. Eduardo congelou. O tempo pareceu esticar naquele quarto. Ele olhou para o filho, depois para a tigela, depois para Mariana, que estava encostada na parede, o rosto molhado de lágrimas silenciosas.

 Ele A voz de Eduardo saiu diferente, mais baixa. Eh, ele comeu? Comeu? Sim, senhor. Mariana respondeu quase num sussurro. E queria mais, mas dormiu. Eduardo aproximou o rosto do bebê. O cheiro doce estava ali. Canela, leite quente. Algo antigo se mexeu dentro dele. Uma lembrança vaga de infância, de uma cozinha que não lembrava mais.

 Antes que pudesse dizer qualquer coisa, passos apressados ecoaram no corredor. Senhor Eduardo a voz de Paula entrou no quarto antes do corpo. Ainda bem que chegou essa mulher. Ela parou ao ver a cena, ajustou o cabelo, mudou o tom. Eu fui rapidinho buscar um remédio mentiu.

 Quando voltei, encontrei essa faxineira aqui dentro tocando no bebê. vai saber o que ela estava tentando fazer. Eduardo levantou os olhos devagar, olhou para Paula, depois para Tomás. O bebê, ao reconhecer a babá, se enrijeceu, virou o rosto, escondeu a cabeça no pescoço do pai, como quem foge de algo ruim. Eduardo sentiu o peso disso no peito.

“Você saiu do quarto”, disse ele para Paula. Não era pergunta. Eu eu precisei ela tentou sorrir. Ninguém aguenta aquele choro o dia inteiro. Eduardo respirou fundo. Um segundo, 5 minutos falou finalmente. 5 minutos para pegar suas coisas e sair da minha casa. Paula abriu a boca. O quê? Agora repetiu. A voz estava baixa, firme.

 E não volte. Paula saiu batendo o salto no chão, resmungando palavras que ninguém ouviu. O quarto ficou em silêncio outra vez. Eduardo se virou para Mariana. Ela esperava o pior. O corpo ainda tremia. Você, ele começou, parou, olhou de novo para o filho, agora dormindo tranquilo. Como você se chama? Mariana, respondeu.

Mariana Santos. Eduardo a sentiu devagar, como se experimentasse o nome. A partir de hoje, ninguém mais dá comida pro meu filho sem você estar presente, disse. Ninguém mais toca nele sem você. Mariana piscou sem entender. O senhor, você não vai mais limpar chão, completou ele. Sua função agora é cuidar do Tomás.

Só isso. Mariana levou a mão à boca. As lágrimas vieram fortes dessa vez. Obrigada, senhor, conseguiu dizer. Eduardo desviou o olhar. Não sabia lidar com aquilo. Nos dias que se seguiram, a casa mudou de som. Tomás passou a comer pouco no começo, depois mais. Ganhou cor, ganhou força.

 Riu, disse fome, com a voz ainda torta, arrancando um sorriso cansado do pai. Eduardo começou a chegar mais cedo, a observar, a aprender sem perguntar. Mariana mostrava como segurar a colher, como esperar o ritmo do bebê, como olhar nos olhos antes de oferecer a comida. Nada era explicado, tudo era feito.

 Uma tarde chuvosa, Eduardo chegou e encontrou Mariana sentada no tapete da sala, cercada por almofadas improvisadas como um forte. Tomás gargalhava, escondendo o rosto. Eduardo largou a pasta, tirou os sapatos caros, deitou no chão. “Cabe mais um?”, perguntou. Mariana sorriu. Eles riram, os três. Do alto da escada, alguém observava em silêncio. O som dos saltos finos ecoou no mármore antes que Eduardo percebesse.

Amor, o perfume chegou primeiro, forte, marcado. A presença ocupou o espaço como uma ordem não dita. Verônica Montenegro estava ali perfeita, maquiagem impecável, um sorriso treinado. Ela beijou Eduardo nos lábios, demorando um pouco mais do que o necessário. Depois olhou para o chão. “Ah”, disse vendo Mariana. “E essa é.” Tomás estendeu os braços, pedindo colo para Mariana.

Verônica não sorriu. Mariana sentiu um arrepio subir pela nuca. apertou o bebê contra o peito, sem saber porquê. No pulso de Verônica, um relógio caro brilhou sob a luz fria da sala. E pela primeira vez, desde que entrou naquela casa, Mariana sentiu que o frio estava voltando.

 A chuva começou fina, quase educada, como se pedisse licença para cair. Mariana estava na cozinha quando sentiu o primeiro arrepio, não de frio, mas de pressentimento. Tomás brincava no tapete da sala, batendo duas peças de madeira uma na outra, concentrado no próprio mundo. O som era pequeno, ritmado, um alívio. “Cuidado com o degrau”, ela disse, sem levantar a voz. Ele riu. Um riso curto, claro, vivo.

 O dia seguia assim havia semanas, pequenos progressos, pequenas rotinas, um silêncio que agora era morno. Eduardo passava antes de sair, encostava a testa na do filho. Ficava um segundo a mais do que o necessário. Mariana via, não comentava.

 Quando dona Lourdes apareceu na porta da cozinha, o rosto pálido demais para ser só cansaço, Mariana sentiu o chão inclinar. Mariana, ela começou e parou. O Senr. Eduardo quer falar com todos na sala. Mariana limpou as mãos no avental. Tomás levantou os braços pedindo colo. Ela o pegou, sentindo o peso, ainda leve, mas real. caminhou até a sala grande, onde o mármore parecia sempre frio, não importava o clima.

 Os empregados estavam alinhados, os chefes, o jardineiro, Bia, a ajudante da cozinha, abraçando um tablet como se fosse um escudo. Eduardo estava de pé, o rosto fechado, a respiração curta. “Meu relógio sumiu”, ele disse direto. “Um relógio de família”. Verônica deu um passo à frente, a voz doce demais. Amor, eu não queria dizer nada, mas ontem vi alguém perto do seu escritório.

 Pensei que estivesse limpando. O dedo dela se ergueu devagar. Apontou. Mariana sentiu o sangue gelar. Eu não cheguei perto do escritório. Disse sem gritar. Dona Lourdes pode confirmar. Eu estava na cozinha. Então não vai se importar se olharmos sua bolsa. Verônica falou já vencendo a bolsa de pano foi trazida. Mariana reconheceu o peso antes mesmo de vê-la aberta.

 O rosário caiu, o dinheiro miúdo, a foto da mãe dobrada e então, com um som seco e pesado, o relógio bateu no vidro da mesa. O mundo parou. Não. Mariana balançou a cabeça. Eu não fiz isso. Eu juro. Eduardo não gritou. O silêncio foi pior. Eu confiei em você. Ele disse baixo. Confiei perto do meu filho. Mariana deu um passo à frente. Tomás se agitou, sentindo atenção.

 Alguém colocou isso aí. Ela disse a voz quebrada. Eu nunca chega. Eduardo interrompeu. Pegou Tomás dos braços dela. O bebê chorou, esticando as mãos. Vai embora. A palavra cortou como lâmina. Mariana ficou um segundo imóvel, como se o corpo tivesse esquecido como obedecer. Depois se virou, caminhou até a porta de serviço.

A chuva já caía pesada quando ela cruzou o portão. A água fria grudou o uniforme no corpo. Mariana não sentiu. Só ouviu o choro de Tomás ecoando dentro da cabeça, cada passo mais distante. As horas seguintes foram um deserto. Naquela mesma noite, Tomás não comeu. No dia seguinte, rejeitou água.

 No terceiro dia, o corpo pequeno parecia menor. Eduardo tentou de tudo, chamou médicos, gritou, suplicou. É emocional, disse o pediatra, sem rodeios. Se ele não voltar a se alimentar hoje, vamos ter que internar. E mesmo assim, Eduardo entrou no quarto do filho sozinho.

 Tomás estava deitado, os olhos abertos demais, sem foco. A mão fechada segurava algo. Eduardo abriu os dedos com cuidado. Era um pedaço de pano cinza, um retalho do avental de Mariana arrancado no dia em que ela saiu. O cheiro ainda estava ali. Canela, sabão neutro. Eduardo sentou no chão, chorou como não chorava desde o enterro da esposa.

 Segurança ele chamou, levantando de repente. Agora Verônica apareceu na porta, o rosto duro. Se você sair para buscar essa mulher, acabou. Ela disse: “Eu não vou aceitar isso.” Eduardo a olhou, viu finalmente o vazio por trás do brilho. “Saia da minha casa”, respondeu. “Quando eu voltar, não quero ver nada seu aqui.

” Saiu sob a chuva. Capão Redondo não dormia. A água escorria pelas ruas de asfalto irregular, formando rios pequenos. O carro de Eduardo avançava devagar, sujando os pneus caros de lama. Ele perguntou direções, errou caminhos, parou duas vezes. Quando encontrou a casa, reconheceu antes de ler o número. Porta azul descascada, um vaso de planta resistindo na entrada. Bateu.

 Dona Célia, a mãe de Mariana, abriu. Olhou o homem molhado, ajoelhado, antes mesmo de falar. Meu filho está morrendo Eduardo disse. E a única pessoa que ele chama é sua filha. Mariana apareceu atrás da mãe, os olhos inchados, o corpo tenso. “Tomás precisa de você.” Eduardo completou.

 “Eu errei, eu sei, mas agora? Agora não é sobre mim.” Mariana não perguntou nada, pegou o casaco fino da cadeira, saiu. Voltaram correndo. A casa parecia outra, silenciosa demais. No quarto, o médico balançava a cabeça. Chegaram tarde, Mariana não ouviu. Tomou Tomás nos braços, apertou-o contra o peito, pele com pele. O corpo pequeno estava frio. “Eu tô aqui”, disse chorando. Eu voltei. Ela balançou, cantou, chamou pelo nome.

O cheiro do corpo dela misturado à chuva, tomou o quarto. Um suspiro forte rasgou o silêncio. Depois outro. Ma, a voz saiu fraca. Má, o médico correu. O monitor apitou diferente. Tomás abriu os olhos, procurou, encontrou. Mariana riu e chorou ao mesmo tempo. Eduardo caiu sentado na poltrona, cobriu o rosto com as mãos, respirou.

 Mais tarde a chuva diminuiu. Na cozinha, a panela pequena estava no fogo outra vez. O cheiro de canela se espalhava. Mariana estava sentada. Tomás dormindo em seu colo, pesado de sono e comida. Eduardo encostou na porta. Fica. Ele disse sem ordem. Não por trabalho. Fica. Mariana olhou para o filho, depois para a casa, para a porta aberta, deixando o ar da noite entrar.

 Amanhã ele vai acordar com cheiro de casa”, respondeu Eduardo abriu mais a porta. O vento entrou. A casa pela primeira vez respirou. M.