Ninguém nunca ficava naquela casa. Ana Clara percebeu isso antes mesmo de cruzar o portão de ferro. Duas enfermeiras despencaram escada abaixo, jalecos brancos voando, olhos vermelhos de choro. Uma delas passou tão perto que o ombro dela se encostou. A moça soluçava, a maquiagem borrada. Eu não volto mais lá dentro, nunca mais”, murmurou como quem saiu de um pesadelo.
A outra só apertava a bolsa contra o peito e andava rápido, olhando por cima do ombro para a mansão antiga no alto do terreno, como se qualquer instante o prédio inteiro pudesse levantar e vir atrás delas. O segurança abriu o portão para deixá-las sair, sem dizer uma palavra, nem se espantou.
voltou a olhar para o celular, apoiado na barriga grande, como se fosse mais uma terça-feira igual às outras. Ana Clara ficou ali parada na calçada, com o coração disparado. O portão continuava aberto, esperando por ela. Um vento frio subiu pela rua, trazendo cheiro de chuva antiga, de asfalto quente, de escapamento de ônibus.
Lá em cima, a mansão Monteiro parecia observar tudo com as janelas escuras, como olhos fechados que ainda assim enxergam. Se ela desse meia volta agora, ninguém ia culpá-la. Mas a imagem da mãe sentada à mesa da cozinha, com a carta do banco tremendo na mão, veio inteira na cabeça de Ana Clara. A casa vai embora, filha.
30 dias é o que diz aqui. Ela engoliu seco, apertou mais forte a alça da bolsa simples, já poída, e respirou o ar pesado de São Paulo, como se fosse encher o corpo de coragem. Eu não tenho para onde correr deu um passo, depois outro.

O barulho do portão se fechando atrás dela soou alto demais, como se o mundo lá fora tivesse sido trancado. O caminho até a entrada principal era de pedra portuguesa, molhada pelo sereno. Os sapatos gastos dela faziam um tac tac taque tímido, no contraste com aquela arquitetura de novela. Colunas altas sacadas com ferro trabalhado, gárgulas de pedra no alto das quinas.
olhando para baixo com bocas abertas, como se quisessem engolir qualquer um que ousasse subir. Não tinha risada de criança, nem música. Só o barulho distante da cidade, abafado, como se viesse debaixo d’água. Quando Ana Clara levantou a mão para tocar a campainha dourada, a porta abriu sozinha com um rangido abafado.
Na moldura apareceu uma mulher mais velha, cabelo preso num coque firme, jaleco também branco, mas impecável, rosto sério, sem batom, sem brinco, sem nada que quebrasse a impressão de pedra. Os olhos dela subiram e desceram pelo corpo de Ana. Repararam na barra da calça um pouco gasta. No tênis simples, no elástico de cabelo meio frouxo. Não disseram nada, mas disseram tudo.
Ana Clara, a voz era grave, seca. Sim, senhora. Eu sou a Dolores, coordenadora de enfermagem. Ela saiu da frente só um pouco, o bastante para a menina passar. Se quiser desistir, é agora. Lá dentro não tem volta fácil. A forma como ela disse lá dentro arrepiou a nuca de Ana Clara. Por um segundo, ela quase deu um passo atrás, quase, mas pensou no pai deitado na cama do hospital em Minas, com o olhar perdido no teto.
Pensou nas contas em cima da geladeira, como uma pilha de ameaças. pensou na mãe, lavando louça até tarde, para não ter que chorar na frente dela. Endireitou a coluna sem perceber como fazia quando precisava disfarçar o medo. “Eu preciso do trabalho, dona Dolores.” A mulher a encarou mais um instante. Um brilho rápido de algo parecido com pena cruzou o olhar e desapareceu.
“Então entra!” O ar da casa bateu no rosto de Ana como uma outra temperatura. Cheiro de produto de limpeza caro, cera de madeira, flor que já foi fresca um dia e agora só restava o perfume insistindo. O som do portão lá fora morreu. Lá dentro era quase silêncio. Nem TV, nem rádio, nem passos. Dolores saiu andando pelo corredor sem esperar, obrigando Ana a apertar o passo.
As paredes eram cheias de quadros a óleo de gente séria, vestidos antigos, ternos escuros. Os olhos dos retratos pareciam seguir Ana Clara. No teto, lustres de cristal jogavam pequenos brilhos pelo chão de mármore. O salto de Dolores fazia um toque toque toque seguro. O tênis de Ana quase não fazia barulho. Aqui não pode perfume. A mulher falou sem virar o rosto. Nada de cheiro forte. Ele odeia.
Ele não o paciente, não o senhor Álvaro, simplesmente ele. Um arrepio subiu pelas costas de Ana. Não fala alto, não entra sem bater, não mexe em nada que eu não mandar. Dolores continuou sempre olhando paraa frente. Se achar que alguma coisa é injusta, guarda. Fala comigo depois, se ainda tiver coragem.
Ana sorriu de canto de boca, um gesto quase automático quando alguém tentava assustá-la. Crescer em hospital público ensina umas coisas. Quanto tempo as outras ficaram? arriscou perguntar a voz baixa. Dolores parou em frente a uma escada de madeira larga, escura. virou pela primeira vez de frente para ela.
A última quase três semanas, foi recorde. Ana sentiu o peso da informação descer pelo estômago, quase três semanas, e o salário quatro vezes mais do que qualquer hospital privado que ela tinha visto. Dinheiro suficiente para em seis meses tirar o nome da mãe da lista de devedores.
Se tivesse estômago para aguentar, subiram à escada. O segundo andar era ainda mais silencioso, tapete grosso que engolia o som dos passos, as portas todas fechadas. Dolores caminhava com costume, sem olhar pros lados. No final do corredor, uma porta dupla de madeira escura, mais alta que as outras, parecia guardar um outro clima atrás dela.
O ar ali era mais frio. Dolores parou diante da porta, inspirou fundo, como quem respira antes de mergulhar num rio gelado. Ana, pela primeira vez, ela usou só o primeiro nome. Lá dentro você não demonstra medo, nem dó, nem raiva. Ele sente de longe e usa contra você. Os olhos de Ana Clara encontraram os dela.
Havia ali uma espécie de aviso, mas também uma pequena torcida. Eu tô aqui para trabalhar, dona Dolores. Só isso. Um canto da boca da mulher mais velha ameaçou um sorriso cansado. Veremos. Ela bateu duas vezes discretas na porta e abriu sem esperar resposta. O choque de temperatura foi imediato. O ar condicionado estava tão frio que fez os pelos dos braços de Ana arrepiarem na hora. As cortinas pesadas, quase pretas, bloqueavam a luz.
O pouco que entrava pela fresta criava faixas de claridade no ar, onde partículas de pó dançavam lentas. Muitos móveis escuros, uma poltrona de couro, uma estante cheia de livros, tudo arrumado demais. alinhado demais, menos a cama. A cama tomava quase metade do quarto. Lençóis claros, impecáveis, travesseiros altos.
No meio deles, um corpo magro, espalhado como quem esqueceu o jeito de ocupar o próprio espaço. Ana não via o rosto, só o contorno sob, um braço fora, a mão grande segurando o controle da cama, os dedos ossudos, o punho marcado por veias saltadas. Ela deu um passo, dois. O cheiro de remédio subiu forte.
analgésico, pomada, álcool, aquela mistura de hospital que ela conhecia bem, só que jogada dentro de um cenário de filme de gente rica. O silêncio era tão compacto que ela quase sentia o próprio coração fazendo eco. Só então percebeu que a alguns segundos tinha uma sensação estranha. alguém olhando os olhos dele.
Quando a visão dela se acostumou com a penumbra, ela viu o rosto pálido, barba por fazer, boca firme, a expressão fechada, mas eram os olhos que dominavam tudo, escuros, muito vivos, muito atentos. Ele já estava acordado quando elas entraram observando. Dolor espigarreou, senor Álvaro. A voz dela saiu um pouco mais suave. Esta é a nova enfermeira.
Ele não respondeu, nem mexeu nada além dos olhos. Ficou só olhando Ana dos pés à cabeça, o jaleco simples, a calça sem marca, os cabelos presos num rabo baixo. Ana sentiu a vontade de baixar o olhar, mas decidiu não fazer isso. Se lembrava do pai dizendo na cama do hospital: “Gente que quer te esmagar, filha.
Você olha no olho, nem por cima nem por baixo, no mesmo nível. Ela respirou fundo e sustentou o olhar. Por um instante, alguma coisa passou pelo rosto de Álvaro que ela não conseguiu decifrar. Surpresa, irritação, talvez os dois. A voz dele veio rouca, arranhada, mas firme. Quanto tempo você acha que aguenta aqui? Perguntou em tom quase curioso. Dois dias. Três.
A pergunta era uma corda jogada no meio da sala. Ana podia pendurar ali o medo, a mentira, a tentativa de agradar. Em vez disso, escolheu a verdade nua, crua. “Não sei, senhor”, respondeu com naturalidade. “Meu contrato é por tempo indeterminado. Enquanto a casa pagar certinho, eu fico.
” Dolores fez um micromovimento com a cabeça, como se tivesse levado um susto. O silêncio ficou mais denso ainda. Álvaro arqueou uma sobrancelha. Uma risada seca escapou sem chegar nos olhos. Pelo menos você não finge que veio por piedade”, murmurou. Isso já é diferente. Ana não comentou. Pegou a prancheta, checou o soro, anotou os números de pressão no visor, os gestos automáticos de quem está acostumada com dor, com doente, com emergência.
Por dentro, entretanto, sentia cada pequeno músculo do próprio rosto, como se qualquer expressão errada pudesse virar munição contra ela. Dolores foi se afastando em silêncio. Parou na porta. Qualquer coisa me chama, disse a Ana a qualquer hora. Ana assentiu e então a porta se fechou. O clique do trinco ecoou dentro dela como um veredito. Agora eram só os dois.
a respiração dele, a dela. Ela deixou a bolsa numa cadeira, arrumou rápido o jaleco, tentou aquecer as mãos esfregando uma na outra antes de tocar na pele do braço dele para checar o acesso venoso. O músculo dele enrijeceu no mesmo segundo. “Mãos frias!”, comentou ele sem olhar. “Profissional novata.
Mãos de quem veio correndo do ponto de ônibus, senhor”, respondeu sem perder o ritmo. Esquentam já. Enquanto falava, sentiu o olhar dele voltar para ela. Era pesado, como se quisesse descobrir onde exatamente estava a fraqueza dela. Família, orgulho, vergonha da origem? Ela guardou tudo isso num lugar bem fundo dentro do peito. Do lado de fora, deixou só a técnica, o foco, o ar neutro.
Minutos depois, com os sinais vitais checados, remédios separados, travesseiro ajeitado, Ana colocou um copo d’água na mesa de cabeceira. A superfície do líquido tremia levemente. Primeiro ela achou que fosse por causa do ar condicionado. Só quando se afastou um passo percebeu. A mão de Álvaro apoiada na cama também tremia. Não muito.
Só o suficiente para fazer o copo vibrar. O mesmo tremor corria pelas veias dela, de medo, de cansaço, de tudo o que estava em jogo ali. Mas o copo ficou de pé. Ele não caiu nem ela. A madrugada na Casa Monteiro tinha um som próprio. Não era silêncio.
Era um tipo de vazio que fazia o coração bater mais alto, como se o corpo estivesse tentando preencher o que faltava no ar. Ana Clara acordou com esse vazio. Não sabia se tinha dormido de verdade ou só cochilado, sentada na poltrona do corredor, mas abriu os olhos antes mesmo do grito. Ele veio um segundo depois, um berro cortante, rasgado, como se alguém tivesse sido jogado vivo dentro de um pesadelo.
O som entrou pelos ossos dela, feito eletricidade. Ana levantou com um pulo. o tênis quase escorregando no tapete grosso. Correu pelo corredor sem pensar. As paredes com quadros antigos pareciam acompanhar a corrida, sombra se mexendo no canto dos olhos dela. A porta do quarto dele estava entreaberta e o grito, o grito ainda estava lá dentro, mais cavernoso, mais desesperado. Ela empurrou a porta.
Álvaro estava sentado na cama, a camisa encharcada de suor, o peito subindo e descendo rápido demais, os olhos muito abertos, como se não reconhecessem nada à volta, nem o quarto, nem a própria respiração. A mão dele procurava alguma coisa no ar, como alguém que está afogando e precisa de uma borda para segurar.
Quando viu Ana na porta, ele virou o rosto para ela com uma mistura de vergonha e raiva. Raiva de ter sido visto daquele jeito. Sai daqui ele sussurrou, voz quebrada. Eu não quero testemunha. Ana não respondeu. Andou devagar até a cama. As luzes baixas deixavam a pele dele com um brilho estranho, um brilho de quem está lutando sozinho contra algo maior que o corpo aguenta.
Ele encolheu os ombros quando ela se aproximou, como um animal ferido, que ainda pensa em morder quem tenta ajudar. Álvaro, olha para mim. Ela disse: “Baixa, sem comando, sem pena, só presente. Respira comigo.” Ele tentou levantar a mão para afastá-la, mas o braço tremia demais. Em vez de recuar, Ana se sentou devagar na beirada cama. O colchão afundou um pouco. Ele sentiu.
E por dois segundos, aquela presença sólida, o peso dela no mundo real, começou a puxá-lo de volta do lugar escuro onde estava. Ela colocou a mão na nuca dele firme. Acompanha, murmurou de novo. E pela primeira vez ele respirou junto, pouco, torto, quase sem ar, mas respirou.
O dia seguinte não trouxe sol, só um céu cinza, que parecia continuar a madrugada. E trouxe outra coisa, guerra. Álvaro estava completamente desperto agora e irritado. Sempre que alguém o via fraco, ele compensava com violência silenciosa. E Ana era a testemunha que ele não queria. Às 6 dias, ele tocou a campainha ao lado da cama. Às 6:15, às 6:28, às 6:32.
Cada vez que ela entrava, ele inventava um motivo novo. A manta desalinhada. A água está muito fria. Minha dose de manhã está atrasada 3 minutos. O travesseiro está alto demais. Não, agora está baixo demais. Você anda fazendo barulho demais. Você respira alto demais. A voz dele nunca aumentou. Não precisava.
O que havia no olhar dele era muito mais afiado que um grito. Dolores observava tudo da porta ao longo da manhã, só com os braços cruzados. Parecia medir A na Clara como uma peça rara que talvez quebrasse a qualquer instante, mas que até ali não tinha nem trincado. Perto das 10ers, Álvaro encontrou um pretexto novo. Responda para mim.
Qual é a composição exata desse medicamento aqui? Perguntou, levantando um frasco que tremia quase imperceptivelmente na mão dele. Era uma pergunta para fazer qualquer recémformado gaguejar. Ana só ergueu os olhos do prontuário. O senhor quer a composição química completa ou a farmacodinâmica? Ela respondeu: voz neutra. Por um segundo, Álvaro piscou, um micro vazio de surpresa, uma fenda muito, muito pequena na armadura dele.
E Ana viu do jeito que um enfermeiro experiente vê quando um paciente começa a parar de lutar contra a própria melhora. A guerra só piorou quando Renata apareceu. A irmã de Álvaro entrou no quarto como quem entra num tribunal. Perfume caro, blazer branco, cabelo preso num coque perfeito. Ela olhou Ana Clara como se estivesse avaliando uma mancha no tapete.
Você é a nova enfermeira? Perguntou, mas não esperou resposta. Já caminhou até a cômoda, abriu gavetas, tirou caixas, mexeu sem pedir licença. Ana ficou parada, observando até que Renata se virou segurando um relógio masculino de pulso de ouro. “Interessante”, ela disse, balançando o relógio. “Isso estava na gaveta dele ontem.” Olhou Ana dos pés à cabeça.
“E hoje? Está no fundo da sua bolsa”. Dolores arregalou os olhos. Não porque acreditava, mas porque sabia o jogo. Ana não se defendeu, não levantou a voz, não chorou, não disse: “Não fui eu”. Ela só olhou Renata com uma calma que irritaria qualquer pessoa acostumada a ser temida. “Minha bolsa tá aberta na mesa, senhora.
A gaveta do seu irmão? Não,” Ana disse simples. “Nada mais. Quem recolheu o relógio fugido debaixo do travesseiro de Álvaro foi o próprio segurança. Minutos depois, ele entrou no quarto sem bater, segurando o objeto no ar. Dona Renata, achei isso aqui no quarto dele. Um silêncio pesado caiu. Renata ficou imóvel.
Aquilo não era sobre relógio, era sobre perder terreno. Álvaro observou tudo e não disse uma palavra, mas Ana viu quando ele respirou fundo, o pescoço dele relaxando um pouco, como se alguém que vive carregando um muro nas costas tivesse escutado a primeira rachadura. A trégua veio do lugar mais improvável. Café. No fim da tarde, Álvaro mandou chamar Ana no escritório.
Quando ela entrou, estranhou a mesa arrumada como se fosse um ritual. Xícara de porcelana fina, cafeteira antiga italiana, bandeja de prata, tudo alinhado milimetricamente. Parecia que alguém tinha passado uma régua invisível em cada objeto. Ele não olhou para ela quando falou: “Sabe preparar café, Ana?” Sei, senhor.
Não desse jeito. Ele puxou a cadeira devagar, sem olhar. Essa é a forma correta. Aprenda. Era um teste, não era uma armadilha. Ele descreveu o ritual como se recitasse a constituição da família Monteiro. O ângulo exato de inclinar a cafeteira, o tempo de espera do vapor, a velocidade do giro do punho.
Tudo isso com uma frieza que parecia tentar arrancar dela uma falha. qualquer falha. Ana tentou seguir tudo. Tinha mãos firmes, mas o corpo cansado do dia inteiro. O cheiro do café recém-passado encheu o ar quente, forte, quase doce. E foi aí que aconteceu. O fundo da xícara escorregou 1 cm a mais, um só suficiente para o café quente derramar num jato marrom e atingir o tapete persa azul marinho. Caiu como um tiro.
Renata, que havia surgido na porta sem Ana perceber, abriu um sorriso satisfeito. “Olha só”, ela disse com veneno. “Um desastre! Esse tapete custa o salário dela de um ano. Dolores ao fundo prendeu a respiração. Ana olhou pro café no carpete, olhou pra xícara, pro vapor subindo, olhou paraa Renata e depois para Álvaro.
E aí ela fez algo que ninguém na casa esperava. Nada de desculpas, nada de choro, nada de tentar justificar. Ela riu. Um riso baixo, cansado, mas genuíno. Um riso que quebrou o ar imóvel daquela sala. Bom, pelo menos agora a senhora não precisa derrubar nada para me culpar, né? Ana disse ainda sorrindo de leve.
O silêncio virou outra coisa. Não era mais silêncio de ameaça, era surpresa. E na cara de Álvaro, naquela expressão dura que ele carregava como um escudo, algo mexeu, como se uma ranhura tivesse surgido na superfície de uma pedra muito antiga. Renata abriu a boca para xingar, mas ele falou antes. A voz firme, sem hesitação.
Fui eu disse Álvaro, olhando diretamente paraa irmã. Eu derrubei, esbarrei sem querer. Renata travou. Álvaro, você nunca acontece. Ele cortou. Deixa a enfermeira trabalhar. Ana ficou imóvel. Não era defesa aberta dela. Não era gentileza, era outra coisa.
Um homem que não deixava ninguém se aproximar tinha acabado de se colocar entre ela e o mundo. Pelo menos por um instante, a trégua que ele não admitiria em voz alta. A noite caiu lá fora e o cheiro do café derramado ainda pairava leve no ar, como um lembrete de que mesmo no meio de um desastre pequeno, às vezes é ali que começa a primeira fresta de luz.
E nessa fresta Ana percebeu pela primeira vez que o muro do milionário não era inquebrável. No tapete, a pequena mancha marrom já começava a secar, formando um desenho torto, quase como um sorriso mal escondido. Durante o dia, o quarto de Álvaro parecia menos ameaçador.
A luz filtrada pelas cortinas novas que Ana insistira em abrir transformava a penumbra num cinza suportável. Era nesses horários que ele conseguia dormir um pouco, esgotado pelos remédios oficiais e pelos fantasmas não oficiais. Naquela tarde, o ronco baixo dele vinha arritmado, pesado. Dolores tinha descido para resolver algo com a cozinha. A casa inteira parecia suspirar.
Era o momento que Ana aproveitava para fazer aquilo que nenhuma das outras enfermeiras tinha tido energia de fazer. Uma limpeza de verdade nos cantos onde ninguém mexia. Se for para ficar presa aqui, que pelo menos esse quarto pareça menos cova. Murmurou pegando o pano de pó. Subiu numa pequena escada de apoio e começou pelo alto da estante.
Os livros antigos estavam alinhados, lombadas desbotadas, filosofia, direito, literatura clássica. O cheiro de papel velho subia, misturado ao perfume discreto de madeira encerada. Ana passou o pano por trás dos livros, empurrando um pouco um exemplar grosso de Dom Casmurro. Sentiu a superfície tocar em algo que não era papel, algo duro, liso, franziu a testa.
enfiou a mão com cuidado. Os dedos fecharam em torno de um frasco. Era de vidro âmbar, tampa branca, etiqueta meio desbotada. O coração dela fez um pequeno solavanco. Desceu da escadinha devagar, os olhos indo da cama para o frasco. Álvaro continuava dormindo, o peito subindo e descendo, uma gota de suor descendo pela têmpora. Apesar do ar frio, ela girou o frasco na mão.
A etiqueta ainda mostrava o nome do medicamento. Ana leu uma vez, leu a segunda. O estômago gelou. Opioide forte, controlado. Data de validade, 3 anos atrás. O nome de Álvaro Monteiro estava ali, na receita grudada embaixo. Não constava em nenhum dos protocolos atuais, nenhuma das prescrições do Dr. Sandoval.
não estava no armário de medicação da casa. Aquilo era escondido e velho e perigoso. Por um segundo, o pensamento veio rápido, cruel e claro. Ele não tá só doente, ele tá se castigando. E o castigo podia a qualquer momento virar uma fuga definitiva. Imagens do pai dela em Minas voltaram todas de uma vez. A morfina, os olhares perdidos, a linha tênue entre aliviar e apagar, o cheiro de hospital no fim de noite. Ana fechou a mão em volta do frasco, sentindo o vidro frio.
Poderia descer com aquilo na mão, mostrar a Dolores, chamar Sandoval, seguir o protocolo, entregar o segredo, se manter correta. Mas a lembrança dos olhos de Álvaro na madrugada do primeiro pesadelo atravou. aquele olhar de bicho encurralado que pela primeira vez tinha pedido socorro sem palavras. Ela respirou fundo, subiu na escada de novo, devolveu o frasco exatamente onde estava, atrás do livro, na mesma posição. “Eu vi, Álvaro, pensou.
Agora é você que vai ter que ver também. No resto do dia, ela passou a observá-lo diferente. Notava quando a pupila dele demorava um segundo a mais para reagir à luz, quando ele ficava ausente no meio de uma frase, quando a mão fria suava sem febre. Na hora do jantar, enquanto cortava a carne em pedaços menores, largou uma pergunta aparentemente inocente.
O senhor já sentiu que os remédios de hoje não alcançam a dor toda? O garfo dele parou a meio caminho. Por que está perguntando isso? O tom veio seco, mas tinha algo extra, um fio de alerta. Ana encolheu os ombros, mantendo os olhos na faca. Vi no prontuário que já tentaram vários esquemas diferentes. Às vezes o corpo acostuma e a cabeça pede outra coisa.
O silêncio que se seguiu não foi igual aos outros. Não era o silêncio de não quero falar com ninguém, era silêncio de pegou em algo que não era para encostar. Ele largou o garfo no prato com um barulho metálico. Você acha que sabe mais do que Sandoval, enfermeira? Rosnou. Acha que porque estudou meia dúzia de apostila, entende o que acontece aqui dentro? e apontou para o próprio peito, mas o gesto era mais amplo que o coração. Ana sentiu o impacto, mas não recuou.
“Eu acho que o senhor sente dor demais para um corpo que não mostra tudo nos exames.” Respondeu: “Calma, só isso.” Os olhos de Álvaro ficaram presos nos dela por longos segundos. Havia ali raiva, mas também medo. Muito medo. Ele afastou o prato. Pode sair. Ela retirou a bandeja, levou para a cozinha, lavou as mãos devagar na água morna.
Enquanto a espuma escorria pelos dedos, o rosto dela estava sério. A mente numa rotação rápida. Naquela noite, Sandoval veio para a visita semanal. Macacão social, gravata, a mesma postura de sempre. fria, distante, mais interessada nos números do que no homem. Ana foi atrás dele com a prancheta, os sinais vitais anotados direitinho. Em vários momentos, sentiu o impulso subir. Mostra o frasco.
Fala. Os lábios chegaram a se entreabrir duas vezes, mas bastava olhar para o jeito mecânico com que Sandoval aumentava uma dose. Aqui adicionava um sedativo ali, sempre na direção de calar mais o corpo de Álvaro. Nunca de ouvir o que o corpo gritava, que Ana engolia de novo as palavras.
Quando desceram à escada, o médico guardando a caneta no bolso, ele comentou com Renata sem nem baixar o tom. O quadro dele é muito mais emocional que físico. É um caso difícil. Talvez seja a hora de pensar numa internação mais restrita, restrita, uma prisão com jaleco.
Ana ficou para trás, parada no meio do degrau, sentindo aquelas sílabas baterem dentro dela. Não era isso que ela queria para ele. Não daquele jeito. À noite, de volta ao quarto, ela tomou uma decisão. Começou a arrumar a estante de novo, em silêncio. podia sentir os olhos de Álvaro seguindo seus movimentos da cama, fingindo desinteresse.
Sem olhar para ele, falou com a voz mais neutra que conseguiu: “Misturar remédio vencido e forte com o resto da medicação pode parar a respiração, sabia?” Ela disse como quem fala sozinha. Às vezes a pessoa acha que está só dando uma ajudinha e quando vê o corpo apagou. Não tem volta. O ar no quarto ficou duro. Ela não precisou virar para saber que ele tinha entendido. O som da respiração dele mudou. Um microengasgo.
Ana continuou passando o pano como se fosse qualquer conversa. Deixou o recado ali no ar. Na madrugada seguinte, antes do plantão da manhã, ela subiu no banquinho de novo. Enfiou a mão atrás do mesmo livro. O espaço estava vazio, o frasco tinha sumido.
Um alívio quente subiu do peito, mas veio misturado com outra coisa: medo. Se ele decidiu largar de vez, o corpo ia cobrar a conta e ia cobrar alto. Três noites depois, o mundo parecia estar desabando sobre a casa Monteiro. A tempestade que vinha sendo anunciada a semana inteira finalmente caiu.
Relâmpagos cortavam o céu, banhando a fachada da mansão em flashes brancos. A chuva batia nas janelas com força, como se quisesse entrar. Ana cochilava na pequena poltrona do corredor, enrolada num cobertor fino quando ouviu. Não foi campainha, não foi chamado, foi um grito diferente de todos os outros, um uivo de dor pura, arrancado de um lugar fundo demais.
O tipo de somita, não se finge. Quem escuta uma vez nunca mais esquece. Ela levantou como se alguém tivesse puxado um fio invisível. correu pelo corredor escuro, à luz dos relâmpagos recortando a silhueta dela na parede, empurrou a porta. O quarto parecia uma cena de filme de guerra. Álvaro estava arqueado sobre a cama, corpo inteiro em espasmos, a camiseta colada de suor, os lençóis embolados no chão, os músculos das pernas tremiam descontrolados, as mãos agarravam o ar, procurando qualquer coisa que parasse a explosão dentro dele. Os olhos, os olhos
estavam virados, meio vidrados, meio perdidos.Álvaro Ana correu até a cama. Álvaro, olha para mim. Ele balbuciava palavras soltas, pedindo, suplicando. Me dá, me dá de novo só hoje. Eu não aguento, pelo amor de Deus. A abstinência chegou como uma onda gigante, misturada com o trauma de anos.
O corpo dele, acostumado com a muleta química escondida, estava em rebelião. Ana agarrou os ombros dele para impedir que batesse a cabeça no cabeceira. sentiu a força que ainda existia naquele corpo magro. Ele quase a jogou para trás num espasmo mais forte. Ela voltou, fincando os pés no chão. “Me escuta?”, gritou perto do ouvido dele para atravessar o barulho da tempestade e do desespero. “Sou eu, Ana.
Eu tô aqui”, aplicou com a mão treinada os medicamentos que podia administrar, o que estava autorizado, mas sabia, pelo olhar dele, pela dilatação da pupila, que nenhuma dose daquelas ia substituir o buraco que o cérebro estava sentindo. A porta se abriu com um estrondo.
Renata entrou em camisola de seda, cabelo solto, rosto sem maquiagem, mas mais duro do que nunca. Dolores atrás, pálida. Meu Deus. Renata levou a mão à boca. O que você fez com ele? Ela partiu para cima da cama, tentando segurar o irmão, sacudir, como se fosse possível acordar alguém daquele tipo de tormenta. “Chama uma ambulância agora.” Ela berrava. Ele vai morrer por culpa dela.
Ana se virou suada, ofegante, os olhos em fogo. Se mexer nele assim, ele para. rugiu num tom que ninguém jamais tinha ouvido sair da boca dela. “Sai daqui, dona Renata. A senhora tá atrapalhando os dois para fora.” Renata congelou por um segundo. Dolores também. A tempestade lá fora explodia num trovão que fez tremer os vidros.
“Você tá demitida”, cibilou Renata, recuperando a pose. “Demitida, ouviu? Assim que isso acabar, se eu sair agora, acaba mesmo. Ana cortou, voltando a segurar a cabeça de Álvaro. Ele não precisa de advogado gritando. Ele precisa de alguém para segurar ele aqui. Ouve algo no jeito que ela falou: “Segurar ele aqui”. Que calou Dolores.
E pela primeira vez a própria Renata deu dois passos para trás. Ficaram num canto do quarto assistindo porque não conseguiram fazer mais nada. Foram duas horas, talvez mais. O tempo perdeu forma. Ana alternava entre falar firme e sussurrar, entre orientar a respiração e simplesmente estar ali aguentando o peso de um homem adulto que implorava para morrer.
As unhas dele cvaram no pulso dela em um dos picos da crise. Doeu muito, mas ela não tirou a mão. Me deixa ir. Ele chorava. voz rouca, quase de criança. Eu matei ela. Eu mereço. Me deixa ir. Ela sentiu o coração quebrar um pouco mais a cada frase. Não merece não. Respondeu com a voz embargada, mas firme. E eu não vou deixar. Sinto muito, mas não. O cabelo dela grudava na testa. O jaleco encharcado de suque não era só dela.
Lá fora, a tempestade começou a diminuir, mas aqui importava ainda berrava dentro daquele quarto. Até que aos poucos, o corpo dele foi perdendo força, os espasmos diminuíram. O choro virou soluço espaçado. O peito começou a subir e descer num ritmo mais próximo do humano. Ele ficou ali estendido, exausto, como alguém que atravessou um oceano inteiro anado e finalmente encostou na areia.
Ana ajeitou o travesseiro, limpou a testa dele com uma toalha úmida, checou a respiração, o pulso. As mãos dela tremiam agora que a tempestade interna passava. Foi então que Renata se aproximou da cama, o rosto uma mistura de medo e raiva. Olhou pro irmão, depois para Ana. Isso é totalmente inaceitável, disse gelada. Claramente você não tem controle.
Amanhã de manhã você sai dessa casa com ou sem crise. As palavras entraram em Ana como estilhaços. Depois de tudo. Depois de segurar a vida de Álvaro por um fio aquelas horas todas, ela sentiu algo dentro dela, simplesmente soltar. “Eu fiz o melhor que eu podia”, murmurou sem energia para discutir o melhor que eu sabia. começou a juntar as coisas num gesto automático.
Estetoscópio, bloco, caneta. A mão ainda doía onde as unhas dele tinham cortado a pele. Pensou na mãe, na casa em Minas, nas contas. Pensou nele, deitado ali e, por um momento, considerou aceitar. Ir embora antes de se apegar mais. Virou as costas em direção à porta. Não, a palavra veio baixa, rouca, quase um sopro.
Ana parou, virou lenta, achando que tinha imaginado, mas Álvaro estava com os olhos semiabertos, encarando diretamente ela. Ainda pálidos, ainda cansados, mas lúcidos o bastante. “Não vai”, repetiu. A mão dele levantou alguns centímetros da cama, tremendo, estendida na direção dela. Renata se adiantou. Ele tá delirando, Ana. Não leva isso a sério. Renata cala a boca.
A voz dele saiu mais forte, cortando o ar. Ela fica. Você sai. O choque na cara da irmã foi quase palpável. Renata abriu a boca, fechou, virou-se e saiu batendo o salto com força, orgulho ferido mais do que qualquer outra coisa. Dolores ficou um segundo a mais, olhando Ana com um respeito novo nos olhos.
antes de fechar a porta atrás de si. Sobrou só o barulho da respiração deles dois e a chuva agora mansa lá fora. Ana deu três passos de volta até a cama, ainda sem saber onde colocar o que tinha acontecido. Olhou a mão dele, flutuando no ar, pedindo alguma coisa que ia além de técnica, de salário, de contrato.
Ela estendeu a própria mão. Quando os dedos se encontraram, sentiu as marcas das unhas dele no pulso arderem. A dor se misturou com outra sensação, a de que aquele homem, que até ontem parecia querer morrer o tempo todo, tinha acabado de fazer a escolha oposta. Segurar a mão dela era no fundo segurar na vida.
Ela se sentou na beirada da cama sem dizer nada. Ele fechou os olhos de novo, mas não soltou a mão dela. Ficou ali ancorado, como se qualquer correnteza pudesse levá-lo de volta se largasse. Do lado de fora, a tempestade tinha virado garoa. E pela primeira vez em muito tempo, a claridade tímida do amanhecer começou a desenhar uma linha fina de luz por baixo da cortina pesada do quarto.
Entrando devagar, como se pedisse permissão, Ana olhou aquela linha clara tocando a parede e pensou, com o peito ainda apertado, mas aquecido, ele escolheu ficar e me escolheu para ficar junto. Na manhã seguinte à tormenta, a casa Monteiro parecia outra. Não porque tivesse ficado mais leve, pelo contrário. O ar estava denso, pesado, como se as paredes tivessem ouvido coisas que não queriam guardar.
Ana Clara passou o plantão inteiro sem conseguir tirar da cabeça o jeito que Álvaro tinha agarrado a mão dela e mais ainda a frase que ele tinha dito: “Rouco, mas lúcido, não vai”. Ela desceu pra cozinha por volta das 9, chamou um café rápido, mal sentou. Dolores apareceu na porta, expressão fechada. “Dona Renata quer falar com você. Sala de jantar. Não era convite, era intimação.
A sala de jantar parecia uma sala de audiência. Renata sentada na cabeceira da mesa comprida, um advogado ao lado, o Dr. Sandoval mais adiante, mexendo no relógio de pulso como se estivesse atrasado para outra vida. Ana ficou em pé, prancheta encostada no peito, sentindo a mesma sensação de quando chamavam seu nome na escola para falar na frente de todo mundo. Renata ajeitou o blazer, cruzou as mãos.
Vamos ser práticas, Ana Clara, começou. A noite de ontem mostrou que você não tem condições emocionais de lidar com o quadro do meu irmão. Empurrou uns papéis com a ponta dos dedos. Sua rescisão já está aqui. Vamos pagar tudo certinho. Você assina e antes do meio-dia o motorista te leva. Ana olhou pros papéis. As letras dançaram um pouco na frente dos olhos dela.
Achou que fosse cansaço ou fome ou medo. Tentou explicar com voz calma. O que aconteceu ontem era esperado, dona Renata. Ele tirou um medicamento que usava escondido há anos. O corpo cobrou. Eu fiquei com ele o tempo todo. Sinais vitais controlados, nenhuma parada, nenhum dano. Sandoval pigarreou, interrompendo.
Do ponto de vista médico, crises daquela intensidade, ele começou com aquele tom professoral. Evidenciam falta de controle do ambiente, talvez uma internação mais estruturada. Ana sentiu um enjoo leve. Hospital psiquiátrico, camisa de força química. Viu Álvaro completamente sedado, andando pelos corredores com olhar perdido. Não. Ela apertou a prancheta com força.
Ele precisa de continuidade, não de punição. Rebateu baixo, mas firme. O senhor não tava aqui ontem. Eu tava. Renata forçou um sorriso frio. E justamente por isso, não quero você aqui hoje. Cortou. Não vou discutir mais. O advogado empurrou uma caneta na direção de Ana.
A ponta fez um risquinho no papel, um traço pequeno, azul. Foi aí que se ouviu. Tac, tac, tac. O som ecoou pelo corredor antes de a porta abrir. Um som que ninguém ali ouvia há meses. O bater lento, obstinado, de um bastão no mármore. Todos viraram na mesma hora. Álvaro apareceu na porta, apoiado no bastão, o corpo ainda magro, mas em pé. Tinha vestido uma camisa social, calça, sapato.
O esforço estava estampado no suor que brilhava na testa, na respiração pesada, mas os olhos os olhos estavam vivos. Renata levantou num salto. Álvaro, pelo amor de Deus, o que você tá fazendo fora da cama? Ele avançou devagar, cada passo uma batalha silenciosa, mas não parou até chegar ao lado de Ana. Colocou a mão livre sobre o ombro dela. O toque foi firme, quente.
Quem autorizou reunião sobre minha vida sem mim? A voz dele saiu rouca, mas encheu a sala. Ninguém, respondeu. Sandoval recuou meio passo. Álvaro olhou pro advogado, depois paraa folha de recisão à frente de Ana e por último pra irmã. Se ela sair dessa casa, falou devagar, separando cada palavra. Eu saio também hoje e você pode arrumar outro médico, outro advogado, outra pessoa para lidar com o que sobrar de mim.
Renata empalideceu.Álvaro, você está fragilizado. Não devia. Fragilizado. Sim. Burro. Não. Cortou. A única pessoa que me segurou vivo essa noite foi ela. Apertou um pouco o ombro de Ana. Se alguém vai embora, não é Ana Clara. O advogado engoliu em seco. Sandoval endireitou a gravata. Renata tentou reverter. Você está apaixonado pela ideia de ter alguém por perto.
Só isso. Isso vai passar. Essa enfermeira. O bastão bateu no chão com força. O som seco cortou a frase no meio. Ela tem nome. Álvaro disse, olhando fixo pra irmã. E a partir de hoje tudo o que dizer respeito ao meu tratamento passa por ela. Entendido? Dolores que observava da porta mordeu um sorriso. Ana sentia o coração bater no pescoço.
Queria desaparecer e, ao mesmo tempo, gravar cada segundo daquele momento. Renata juntou os lábios, respirou fundo, recolheu a recisão com um gesto brusco. “Muito bem”, disse fria. “Se é isso que você quer, a responsabilidade é toda sua.” Sempre foi. Álvaro respondeu.
Enquanto todos se dispersavam, ele se inclinou um pouco em direção à Ana, o rosto perto o suficiente para ela sentir o cheiro do sabonete, do perfume leve que há muito não sentia nele. “Me ajuda a subir antes que eu desmaie na frente desses abutres”, murmurou com um sorriso de canto de boca. Ela riu, os olhos marejando sem perceber. E foi assim, um apoiado no outro, que eles subiram cada degrau da escada, devagar, ofegantes, mas juntos.
Os dias seguintes pareceram a primeira semana de um mundo novo. Por ordem de Ana, as cortinas do quarto foram abertas todas as manhãs. No começo, Álvaro reclamou: “Essa luz vai me matar”. O que estava matando o senhor era o escuro. Ela devolveu, puxando mais um pouco a cortina.
O sol entrou em faixas douradas, batendo na madeira, no lençol, na pele dele. Álvaro fechou os olhos ofendido, mas aos poucos o corpo acostumou. A pele perdeu um pouco daquela palidez quase cinza. Ana começou a levar o tratamento para além dos remédios. Alongamentos leves na cama, massagem nos músculos tensos do pescoço, respiração guiada. Ele chamava de bruxaria hip nos primeiros dias.
“Respira, Álvaro”, ela insistia com a mão no peito dele. “Eu tô respirando, mulher”. “Não, o senhor tá só sobrevivendo. É diferente.” Ele rolava os olhos, mas seguia. Quando as pernas aguentaram, ela o convenceu a ir até a varanda. Dois passos, 5 10. Cada conquista comemorada não com fogos nem discurso, mas com um silêncio cúmplice e um sorriso torto.
O jardim que antes ele só via pela janela, começou a fazer parte do dia. Ana colocava uma cadeira de ferro na sombra de um IP, levava um livro, um chá. Álvaro, de casaco, se sentava como se estivesse visitando um planeta estranho. As primeiras vezes que o vento bateu no rosto dele, trazendo cheiro de terra molhada e grama cortada, ele olhou ao redor como uma criança desconfiada.
“Eu tinha esquecido”, murmurou, encarando uma florzinha branca perto do pé. “Que o mundo tem cheiro de coisa viva?” Ana sorriu. Não é só remédio que cura, Senhor. Ainda te odeio quando você fala, senhor. Ele retrucou sem muita força. Então aprende a sobreviver ao Álvaro? Respondeu dando de ombros. Ele riu. Um riso curto e ficou.
Mesmo com a melhora visível, havia uma sombra que não ia embora por completo. Ana via quando ela descia sobre ele, momentos em que o olhar de Álvaro se perdia no nada. O maxilar trava, os dedos apertavam o braço da cadeira sem motivo aparente. Em uma noite de céu limpo, enquanto a cidade lá embaixo piscava como um mar de luzes, Ana o encontrou sentado na cama de costas, encarando o calendário na parede.
Um círculo vermelho marcava aquele dia. Tá na hora do remédio das Ela começou entrando. Hoje faria 5 anos. Ele cortou sem virar o rosto. Ana parou 5 anos. Do quê? Ele soltou o ar devagar, como quem solta uma coisa que vinha segurando o tempo demais. Do dia em que ela sumiu, disse a Valentina. O nome ficou no quarto como uma presença.
Ana sentiu um ciúme estranho de uma mulher que nunca conheceu, misturado com um respeito imediato, porque era claro, pelo jeito que ele pronunciou, que não era qualquer pessoa. Álvaro continuou, os olhos fixos no nada. Ela foi para Paris comprar um vestido ridículo de noiva. Eu insisti para que fosse no meu avião. Era mais rápido, mais seguro. Eu dizia. Rio sem humor. O avião caiu no Atlântico.
Nem pedaço de asa encontraram, nada. As mãos dele tremiam levemente. Eu comprei a passagem. Eu marquei o horário. Eu mandei ela entrar naquele maldito avião. A voz foi ficando mais áspera. Foi a minha decisão que matou ela. Ana sentiu o coração ser puxado para baixo, como se alguém tivesse amarrado uma pedra nele. Andou devagar até ficar de frente para ele. Viu o brilho líquido nos olhos dele.
Não foi o senhor, disse baixa. Foi o acaso. Foi o destino. foi o que quiser chamar, menos você. Ele deixou escapar uma risada nervosa. Você fala isso porque não era sua cara no noticiário, seu nome nos jornais, seu telefone tocando com gente perguntando, mas por que ele deixou ela ir? Uma lágrima escorreu rápida, cortando a linha da barba. Eu me tranquei aqui.
Ele bateu com os dedos no peito, porque era a única forma que encontrei de pagar. Ana sentiu que se ficasse em pé ia cair. Sentou do lado dele na cama devagar, colocou a mão sobre a mão dele e adiantou. Perguntou simples. Ele não respondeu. Ela virou o rosto dele para ela com delicadeza, usando a ponta dos dedos no queixo. Os olhos se encontraram.
A única coisa que essa culpa fez foi matar você junto, devagar, em parcelas”, sussurrou. “Ela já foi, Álvaro. Quem tá indo todo dia é você.” Ele apertou os olhos como se aquelas palavras fossem faca. E então, depois de anos de contenção, alguma coisa cedeu. O choro veio primeiro quieto, só um tremor no queixo. Depois desabou de vez, um soluço pesado, de adulto no limite.
Ele tombou pra frente, a testa encostando no ombro dela. Ana o abraçou sem pensar, uma mão nas costas, outra na nuca, como fez tantas vezes com pacientes, mas nunca assim. Ele chorou a raiva, o luto, a culpa. Chorou o que não chorou nos funerais sem corpo, nos jantares em silêncio, nas noites de travesseiro seco.
Ela não disse calma, não disse passa. Só ficou ali firme, aguentando o peso dele, o peso da história dele. O pijama dela molhou de lágrimas que não eram dela. E ainda assim era como se de algum jeito também fossem. Quando ele finalmente se afastou, os olhos estavam inchados, mas mais limpos. Havia um espaço ali, onde antes só tinha pedra.
“Obrigado”, disse numa simplicidade que pareceu maior que qualquer discurso. Ana secou o rosto dele com as mãos, como fazia com o pai no hospital, e respondeu: “Agora sim, a gente pode começar a falar de cura. Lá fora, uma brisa gelada fez a cortina balançar. Um único raio de luz da rua encontrou um vão e entrou no quarto fina, atravessando o espaço entre os dois.
A notícia da melhora de Álvaro correu mais rápido na alta sociedade do que qualquer crise de saúde. Quando Renata decidiu resgatar a tradição do baile de gala beneficente da família, não foi surpresa. “Vai ser perfeito para sua volta ao círculo”, ela dizia, rodando taças de cristal na mão. “Os investidores vão ver que você está bem”. Ana ouviu tudo de longe do corredor.
Cada vez que Renata falava volta, uma parte dela lembrava que a vida de Álvaro existia antes dela e que teoricamente poderia existir muito bem. Depois, na noite da festa, a mansão estava irreconhecível. Luzes por toda parte, arranjos de flores, garçons indo e vindo com bandejas prateadas. O som da banda, afinando os instrumentos, subia do salão.
Ana ficou no quartinho de descanso das enfermeiras, olhando pela janelinha o desfile de vestidos longos, ternos sob medida, sorrisos treinados. Alisou o próprio uniforme simples. Sentiu-se pequena, deslocada. “Talvez seja aqui que acaba”, pensou com o peito apertado. Ele volta pro mundo dele. Eu volto pro meu. Bateram na porta. Quando abriu, encontrou Dolores segurando uma caixa grande envolta em papel fino.
Ele mandou, disse sem muito rodeio. Disse que você tem 15 minutos. Ana levou a caixa até a cama com mãos trêmulas. Ao abrir, o ar faltou por um instante. Um vestido azul marinho, simples, elegante, caimento leve. Nada de brilho exagerado. Exatamente o tipo de coisa que ela escolheria se tivesse dinheiro para escolher. Eu não.
Olhou para Dolores, perdida. Veste logo, menina. A mulher mais velha cortou com uma paciência dura. Não faz o homem esperar. 15 minutos depois, Ana descia à escada principal com cuidado, o coração batendo mais rápido que os saltos baixos, que conseguiu arrumar as pressas. O vestido abraçava o corpo dela sem vulgaridade, os cabelos presos com um pouco mais de capricho, um pouco de brilho nos lábios.
Quando levantou o rosto, viu que ele estava ali embaixo, Álvaro de terno perfeitamente cortado, barba aparada. cabelos penteados. Parecia o homem que aparecia nas capas de revista, mas com os olhos de quem passou por incêndios por dentro, ele não olhava para ninguém, só para ela. Enquanto Ana descia os últimos degraus, os coxichos começaram ao redor.
Gente vira pro seu lado, murmurando: “Quem é essa? De onde saiu, por está ali?” Álvaro subiu um degrau na direção dela, estendeu o braço. Achei que não ia ter coragem, murmurou com um meio sorriso. Quase não tive. Ela confessou num fio de voz. Ele se inclinou perto o bastante do ouvido dela paraa voz dele ser só dela. Eu não consigo enfrentar esse povo sussurrou sem o meu motivo para viver do lado.
As pernas dela quase cederam. Entraram no salão juntos. O brilho dos lustres caiu sobre os dois. Cabeças se viraram. Renata fechou os dedos em torno da taça, tão forte que quase quebrou. Durante toda a noite, Álvaro não largou o braço de Ana. Apresentava-a sem títulos rebuscados.
Essa é a Ana Clara, dizia a pessoa que me ensinou a levantar da cama. Na pista de dança, quando a banda começou um bolero antigo, ele se aproximou dela, uma mão na cintura, a outra ainda segurando-a dela, como naquela madrugada. “Você sabe que eu já não tô doente, de verdade?”, falou, olhando nos olhos dela enquanto rodopeiavam devagar. Eu sei. Ela respondeu: “Pelo menos não do corpo.” Ele sorriu de canto.
Então você também sabe. Continuou parando o movimento aos poucos. Que eu não preciso mais de enfermeira. O coração dela apertou. Claro. Era isso. Ali no meio da música, no salão cheio de gente, seria o momento em que ele a agradeceria e soltaria. Ana tentou soltar a mão dele. Eu entendo.
Quando isso acabar, eu Calma. Ele prendeu a mão dela com mais força, o olhar sério. Eu não preciso mais de enfermeira, repetiu num tom que obrigou ela a ficar, mas preciso desesperadamente da Ana Clara. A música continuou, mas para ela o mundo ficou em silêncio. Preciso da mulher que me salvou de mim mesmo, completou.
E diante de todos, sem mais medo de fantasma nenhum, ele a beijou. Não beijo apressado, culpado, um beijo inteiro, claro, de quem finalmente escolheu a vida e escolheu com quem queria vivê-la. Houve um segundo de choque na plateia. Depois, alguns sorriram, outros torceram o nariz.
Renata saiu do salão com passos duros. Ana não viu nada disso. Só sentiu o peito explodir de um jeito novo, misturado com lágrimas que ela nem percebeu escorrendo. Naquele beijo entre o som da banda e os burburinhos, o lugar dela na vida dele deixou de ser uma dúvida. Dias depois, na biblioteca, uma outra reunião foi convocada.
Advogados: Sandoval, Renata, mas agora Ana estava sentada à direita de Álvaro, não mais em pé como ré. Ele falou sobre reestruturar empresas, mudar o testamento. A cada frase, Renata ia perdendo mais cor. Ana não é um capricho passageiro. Ele disse em voz clara. É a pessoa que eu quero ao meu lado em tudo, como conselheira, como esposa.
Ana quase derrubou a caneca de café. Eu não tô pedindo permissão completou, olhando pra família. Só tô informando depois que os papéis foram assinados, que as caras feias foram embora, que a casa voltou a respirar só com eles. Álvaro fechou a porta da biblioteca, virou-se para Ana e tirou uma caixinha de veludo do bolso.
Esse anel, abriu, revelando uma joia simples, bonita. Não é de nenhuma história antiga, é pra nossa. Se você ainda quiser ficar com um paciente complicado por bastante tempo. Ana riu chorando. Complicado. Eu já sei que é, respondeu. Só tô dizendo sim porque sei que tem cura. Ele colocou o anel no dedo dela, desta vez com a mão firme, sem tremer. Alguns meses mais tarde, a antiga suí de Álvaro já não parecia um mausoléu.
Virou um escritório claro, com prateleiras cheias de pastas da Fundação Valentina. O projeto que eles criaram para ajudar gente com dor crônica e trauma. As cortinas estavam sempre abertas. O sol entrava generoso, batendo na mesa, nas plantas que Ana insistia em colocar no canto, nas fotos de paciente sorrindo.
Numa tarde qualquer, ela entrou na sala e o encontrou olhando pela janela, as mãos cruzadas atrás das costas. A cidade se espalhava lá embaixo, viva. Ela o abraçou por trás, encostando o rosto nas costas dele. “Em que tá pensando?”, perguntou, sentindo o cheiro familiar da pele dele, agora sem odor de remédio.
Ele virou só o suficiente para beijar a testa dela. “No dia em que você entrou aqui de jaleco, cara assustada e sapato gasto, sorriu. E em como eu tive sorte de você ser teimosa?” Ana riu, encostando a cabeça no peito dele, ouvindo o coração bater forte e certo. “Sorte minha que você decidiu viver”, respondeu. Do lado de fora, o sol se pôs devagar, derramando uma luz dourada por toda a antiga enfermaria.
A mesma luz que um dia ele rejeitou, agora preenchia cada canto. E naquela mistura de claridade, livros, papéis da fundação e cheiro de café recém-passado, dava para ver com nitidez. A casa que antes engolia enfermeiras tinha se transformado, enfim, no lar de dois sobreviventes que escolheram ficar vivos juntos. M.
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