Amanhã na mansão Almeida começa como sempre. Vidros enormes deixando a luz gelada entrar devagar. Silêncio pesado, cheiro de café recém-pado escapando da cozinha. Até que um grito cortante, fino e desesperado, atravessa o corredor do segundo andar como uma navalha. É tão alto que parece rasgar o ar.

 Lá dentro, no quarto infantil, o pequeno Lucas, 4 anos, está no meio de mais uma tempestade. Seus brinquedos, carrinhos, blocos de montar, bonecos voam pela parede como projéteis descontrolados. Ele grita rouco, chuta a própria cama, arranha o chão com as unhas. O corpo treme inteiro, como se estivesse lutando contra algo que ninguém vê.

 Do lado de fora da porta fechada, Patrícia, a babá semana, pressiona as costas contra a madeira. Está pálida, os olhos marejados, o braço cheio de arranhões frescos. Ela tenta segurar o choro, mas ele escapa num soluço curto. Eu eu não aguento mais. Ela sussurra para ninguém. Outro estrondo vem de dentro. Um brinquedo pesado acerta à porta. Patrícia pula de susto.

 O corredor ecoa o choro preso dela, misturado ao barulho das patinhas de Lucas batendo no chão. O corredor inteiro parece respirar medo. De repente, passos rápidos, o som de sapatos caros batendo no mármore polido. Ricardo Almeida, 36 anos, aparece apressado na curva do corredor. Terno azul marinho impecável, gravata afrouxada. O rosto marcado por duas olheiras profundas que não combinam com alguém tão jovem.

 O que aconteceu agora? pergunta ofegante, mas já sabendo a resposta, Patrícia mal consegue olhar para ele. Senr. Ricardo, ele ele tentou me morder de novo. Me arranhou, jogou o café no chão. Não consigo mais entrar nesse quarto. Ricardo aperta os olhos como quem tenta despertar de um pesadelo repetido. semanas vive à base de remendos. Remendo de sono, remendo de paciência, remendo de esperança.

 Ele está passando por uma fase difícil. Patrícia o interrompe com a voz trêmula. Ele tem medo de mim? Não, eu tenho medo dele. A frase cai no ar como uma sentença. Um adulto grita de medo de uma criança de 4 anos. Através da porta, Lucas berra. Vai embora. Eu não quero babá, não quero. Ricardo se encolhe por dentro.

 Toda vez que escuta o filho gritar assim, sente como se alguém arrancasse algo dele, pedaço por pedaço. Patrícia junta coragem apenas para concluir. Eu eu vou embora hoje, agora me desculpa. e sai quase correndo pelo corredor, segurando o choro, segurando a bolsa, segurando o último fiapo de dignidade.

 Ricardo fica parado ali sozinho, com o barulho do filho ecoando atrás da porta e o peso de mais uma derrota nas costas. A governanta, dona Zuleide, aparece ao fundo. Ela segura um pano de prato entre as mãos, como se fosse um terço. Senhor, já foram oito babás. Eu sei. O Lucas precisa de ajuda, de um especialista, de alguém que já vieram três psicólogos.

Ela suspira triste. Talvez um internato. Ricardo vira o rosto imediatamente. Ele tem 4 anos. Quatro. Eu não vou internar meu filho. Mas a voz dele sai cansada, fraca, quase derrotada. Do quarto o grito sobe mais agudo. Eu te odeio, papai. Vai embora. O golpe atravessa Ricardo como faca.

 Ele fecha os olhos por um segundo, respira fundo, tenta lembrar do menino doce que Lucas foi um dia, mas a lembrança parece borrada, como foto velha deixada ao sol. Ligue para a agência, dona Zuleide. Qualquer babá, não importa a experiência. A governanta a sente, mas o olhar dela diz: “Ninguém vai aguentar”. O grito de Lucas aumenta. Um objeto pesado cai.

Outro. Ricardo apoia a testa na porta com lágrimas queimando nos olhos. Filho, por favor, abre essa porta. Eu tô aqui. E recebe como resposta. Vou quebrar tudo. Tudo. A casa inteira parece estremecer. Enquanto isso, a 15 km dali, o mundo é completamente outro.

 Um prédio antigo no centro da cidade, cheio de gente na fila, ventiladores barulhentos, cheiro de suor e papel molhado de café. E ali, no meio de tantas pessoas cansadas, está Lara Santos, 23 anos, barriga de seis meses, empurrando a camiseta simples pra frente. Ela segura uma pasta fina com currículos amassados e uma ultrassonografia dobrada dentro, como se guardasse o próprio coração naquele plástico transparente.

 Seus pés doem dentro do tênis surrado, as costas ardem, mas ela mantém a postura. que é tudo o que tem. Próxima, chama a atendente. Lara dá dois passos, respira fundo, tenta ajeitar o cabelo preso num coque improvisado. Bom dia. Eu vim ver se tem alguma vaga.

 A atendente olha o currículo, depois olha para a barriga, depois volta ao currículo. A sobrancelha levanta num gesto automático de descrédito. Você não tem experiência em nada e ainda está grávida. Lara engole a vergonha com calma, mas a voz sai baixa. Eu preciso trabalhar qualquer coisa. Limpeza, cozinha, cuidar de criança. Criança. A atendente solta um riso curto. As famílias não querem contratar babá grávida, minha filha.

 Acham que você vai quebrar no meio do serviço. O bebê mexe. Lara leva a mão à barriga sem perceber. Eu dou conta. Dou mesmo. A atendente vasculha a tela do computador, resmunga algo e enfim diz: “Tem uma vaga complicada, mansão. Criança difícil, todas as babás fogem. Lara sente o coração acelerar. Eu quero tentar.

 Tem certeza? Dizem que o menino é impossível. Ela pensa no aluguel atrasado, no arroz acabando, no bebê crescendo. Tenho. A atendente dá um suspiro de quem já viu esse filme antes. Tá bom. Eu mando seu nome para lá. A governanta vai ligar. Quando Lara sai, o sol bate forte no rosto dela.

 Ela segura a ultronografia por um instante, como se conversasse com o bebê em silêncio. A gente vai conseguir só mais um pouco. Duas horas depois, Lara está parada diante de um portão automático que parece maior do que qualquer coisa que ela já viu. O bairro cheira a grama recém cortada e carros caros polidos com cera estrangeira. Ela toca a campainha com dedos trêmulos.

 Quando o portão abre, devagar, quase solene, um vento suave passa por ela, mas não esfria o medo que subiu pelo peito. O porteiro pergunta: “É a senhora que veio pra vaga de babá?” Ela segura a pasta com força. Sou eu. Ao entrar na mansão, Lara sente o contraste bater no corpo, o ar condicionado, frio demais.

 O brilho do mármore, o cheiro de rosas frescas misturado com algo metálico, talvez o silêncio tenso da casa. E então, no fundo da escada, ela vê dona Zuleide. O olhar da governanta desce lentamente pela barriga de Lara, depois sobe para os olhos dela. Não é hostilidade, é algo pior. Dúvida.

 Você é a babá nova? Lara tenta sorrir, mas sente a mão suar. Sou sim. Zuleide hesita e antes de levá-la até o quarto de Lucas, diz em voz baixa: “Então se prepare, minha filha, essa casa não é lugar fácil e esse menino menos ainda. As palavras ficam suspensas no ar entre as duas.

 E por um momento breve, breve, mas profundo, Lara tem a impressão de que algo na casa observava tudo em silêncio, como se a mansão inteira estivesse segurando a respiração à espera de alguém que conseguisse abrir a porta que ninguém mais queria tocar. A porta do quarto de Lucas ainda está entreaberta quando Ricardo chega ofegante, a gravata meio torta, o rosto ainda tenso da reunião que terminou mal.

 Ele espera encontrar gritos, brinquedos voando, alguma babá desesperada pedindo demissão. A verdade é que nos últimos meses ele aprendeu a subir aquela escada como quem sobe para um campo de batalha, mas dessa vez ele para no penúltimo degrau. Silêncio. Não o silêncio pesado do medo, nem o silêncio carregado de tensão.

 É um silêncio vivo, um silêncio de respiração baixa, de pequena concentração. Ricardo avança devagar, quase sem acreditar, e então vê no meio do quarto destruído, com blocos quebrados, carrinhos sem rodas, livros rasgados. Lara está sentada no chão, barriga apontada para a frente, uma tesoura infantil numa mão, tiras coloridas de fita adesiva espalhadas no tapete.

 Ao lado dela, com a língua entre os dentes de tanta concentração, Lucas tenta colar a capa de um livro infantil que havia sido rasgado em três pedaços. Assim, ó, segura firme para não ficar torto. Lara murmura com a paciência de quem ajeita a própria vida com muito mais cuidado do que teve para recebê-la. Lucas responde baixinho: “Eu seguro.

Minha mão é mais forte que a sua porque você tá carregando um bebê, né?” Ela ri sem corrigir. E por um instante simples, quase impossível, a cena parece normal, quase banal. quase familiar. Ricardo sente o peito doer, não de aflição, mas de algo que ele havia esquecido como era. Esperança.

 Dona Zuleide, empoleirada no corredor como uma sentinela discreta, sussurra emocionada. Eu nunca vi ele assim, senhor. Nunca. Ricardo engole em seco. Quanto tempo eles estão aí? Duas horas. 2 horas. Sem gritos, sem portas quebradas, sem pânico. Ele limpa uma lágrima que não percebeu cair. Lara percebe a presença na porta, levanta o olhar.

 O modo como ela encontra o olhar de Ricardo é simples, mas firme, como se ela não estivesse ali para provar nada, nem para agradar ninguém, apenas estivesse. Boa tarde, senhor Ricardo. Lucas olha para trás, animado. Pai, a Lara sabe colar coisa quebrada. Olha. Ricardo força um sorriso, mas a voz falha. Eu estou vendo campeão. Ele quer agradecer, quer perguntar como ela fez isso, quer cair de joelhos, dizendo que não aguenta mais viver do jeito que estava vivendo, mas só consegue ficar parado, observando a cena como se temesse que qualquer movimento pudesse quebrar o encanto. Algumas horas depois,

já na cozinha, Lara lava as mãos com cuidado. Lucas, sentado na bancada, balança as pernas. ansioso. O cheiro de chocolate começa a tomar o ambiente. “Você já comeu biscoito morninho?”, ela pergunta: “Não, hoje é dia de aprender. Ela mistura farinha, açúcar e manteiga, mas com movimentos lentos, porque o peso da barriga já incomoda.” Lucas observa cada gesto como se fosse mágica.

 “Esse bebê aí vai comer biscoito também?”, Lara sorri mexendo a massa com a colher de pau. Vai, mas por enquanto quem come é você por ele. Lucas dá uma risadinha curta. O tipo de riso que crianças dão quando estão descobrindo algo que pode ser feliz. Ricardo assiste da porta invisível para os dois. Ele não lembra da última vez que viu o filho rir.

 Mais tarde, na hora do banho, o chão do banheiro fica molhado, como sempre, mas não de luta, de guerra, de cansaço. É molhado de brincadeira. Lara senta devagar no banquinho, as costas doendo, e enche a banheira com água morna. Lucas já entra imaginando histórias que ela inventa de improviso. Hoje você é um peixe lua.

 Peixes lua brilham mais quando ficam limpos. E o bebê, ele é o quê? O bebê é um polvo tímido. Lucas mergulha a mão na barriga arredondada dela, rindo. Povo tímido. Quando ele se levanta, a água escorre pelo rosto dele, como se lavasse também o peso de duas perdas, a mãe e a própria paz. Ricardo observa mais uma vez pelo vão da porta.

 segurando o choro com os dentes no quarto, depois de secar Lucas e ajudá-lo a vestir o pijama, Lara tem dificuldade de se levantar do tapete. O corpo pede descanso, o bebê chuta, mas ela respira fundo e ajeita os ombros, porque naquele momento o que importa é o menino à sua frente. Não há dor latejando na lombar.

 Lucas olha para ela com curiosidade. Por que você não fica brava comigo? Ela pensa por alguns segundos, procurando as palavras mais simples. Porque quando criança chora, é porque tem alguma coisa apertando por dentro. Eu sei como é. Você chorava. Ela ergue lentamente a camiseta, mostrando só um pedacinho da cicatriz antiga no quadril.

 marca de quando caiu ainda pequena, num abrigo apertado demais para tantas crianças. Chorava muito. Lucas fica sério, como se estivesse entendendo mais do que deveria. Você também não tinha mãe? Ela baixa o olhar, mas não desvia. Não, mas aprendi um tipo de amor que não usa sobrenome.

 Lucas estica o braço e toca a barriga dela num gesto tímido. Você pode ser mãe do bebê. E meio mãe de mim também? A pergunta cai uma chuva morna no coração de Lara. Ela respira fundo, a voz embargando. Posso ser o que você quiser que eu seja. A noite, já cansada, Lara se encaminha para o quarto simples, onde ficará hospedada.

 Mas antes de entrar, ela passa pela porta entreaberta do quarto de Lucas. O menino está dormindo meio torto, segurando o carrinho que eles remendaram juntos. A fita adesiva colorida brilha na penumbra como se fosse um remendo na própria alma dele. Lara observa aquilo por longos segundos. O bebê chuta de leve. Ela apoia a mão na barriga como se dissesse silenciosamente: “É por isso, é por isso que a gente fica.

” E pela primeira vez, desde que entrou naquela casa, ela sente bem no fundo que talvez não seja ela quem está salvando alguém. Talvez ela também esteja sendo salva. A luz do corredor bate de um jeito suave, refletindo naquele carrinho consertado. Parece uma promessa, um recomeço costurado às pressas, mas ainda assim um recomeço. E a mansão, antes fria e tensa, pela primeira vez em muito tempo, respira.

 Amanhã começa tranquila demais, um silêncio bom daqueles que lembram casa de verdade, cheiro de bolo no forno, risadinhas de criança, o som ritmado dos passinhos de Lucas correndo entre a sala e a cozinha. Lara mexe a massa com calma, segurando a colher com uma mão e apoiando a outra na lombar.

 O bebê tinha chutado forte naquela noite, deixando-a cansada, mas também curiosamente leve. Lara, olha, eu fiz o pirata mais bravo do mundo. Lucas exibe um desenho meio torto com tintas coloridas. Ela sorri orgulhosa. Bravo. Esse pirata aí parece que comeu chocolate escondido. Lucas cai na gargalhada, sua risada ecoando pela cozinha como um pequeno milagre.

 E é exatamente nesse segundo, no meio desse clima que nunca deveria ser quebrado, que a campainha toca. Não é uma campainha normal, é um trim longo, insistente, impaciente. O tipo de toque que não pede licença, exige entrada. Dona Zuleide aparece primeiro que Lara. A expressão dela diz tudo antes mesmo das palavras saírem. É a dona Líia. O coração de Lara dá um salto.

 Ela nem conhece a mulher, mas o nome soa pesado, duro, como porta de cofre batendo. Quando Lara chega à sala, segurando a toalha de mão suja de farinha, ela vê a figura. Lígia Almeida, mãe de Ricardo, avó de Lucas, uma mulher de presença, daquelas que entram como se pertencem a qualquer lugar.

 Elegante demais para a hora da manhã. Perfume forte, cabelo impecável, bolsa pequena que custa mais que tudo o que Lara já ganhou na vida. Lígia olha à sala, depois olha Lara. O olhar sobe, passa pela barriga arredondada para no rosto dela, mas não vê Lara completa, só vê o que quer ver. Você é a babá grávida? Não é uma pergunta, é julgamento com forma de frase.

 Lara tenta sorrir educada, mesmo sentindo o estômago apertar. Sou eu, senhora. Lucas surge por trás da perna dela, escondendo o desenho atrás do corpo. Quando vê a avó, abre um sorriso enorme. Vovó. Ele corre para abraçá-la. Líia se abaixa, mas o gesto é calculado. Elegante demais, distante demais. Meu amor, você está grande.

 E então, sem que ninguém espere, Lucas puxa a mão de Líia e arrasta-a até Lara. Vovó, essa é a Lara. Ela tem um bebê e ela é minha mãe de coração. O chão parece tremer, o ar fica denso, o tempo segura o fôlego. Líia congela, não olha para Lucas, olha para Lara.

 E no olhar há uma raiva silenciosa, uma surpresa amarga, uma pergunta não dita. Como você ousa? Mãe, de coração? Ela repete como se mastigasse veneno. Lara sente o rosto esquentar, mas tenta falar. Dona Líia, eu só. Mas Lja se abaixa ao nível do menino. Firme, voz suave demais para ser inocente. Lucas, querido, mãe é só uma, aquela que teve você aqui.

 Ela encosta a mão no próprio coração, depois estende o dedo para a barriga de Lara. Babá não é mãe. Babá é funcionária. Um silêncio duro cai. A palavra funcionária bate como tapa. O rosto de Lucas desaba confuso. Ele olha para Lara como se tivesse feito algo errado. E é isso que dói nela, mais do que qualquer coisa. Lara engole, respira, baixa os olhos, não por concordar, mas por não querer machucar o menino.

 Com licença, ela diz, passando rápido antes que as lágrimas queimem de vez. No corredor, Ricardo chega apressado, ainda ajustando o relógio. Ele vê Lara passando e sente o ar diferente. Tenso, aconteceu algo. Ela balança a cabeça sem conseguir falar. Quando ele entra na sala, vê a mãe parada como uma estátua no centro do tapete. Lia não precisava dizer nada. Ricardo lê tudo na expressão dela.

 Mãe, por favor, não começa. Eu não comecei nada, Ricardo. Quem está começando é você, trazendo para dentro de casa uma babá grávida que se acha mãe do meu neto. Ricardo respira fundo, tentando se conter. Ela não se acha mãe de ninguém. Ela salvou o Lucas. Ligia ri curto, frio.

 Salvou ou se aproveitou? Você sabe como essas moças funcionam? Entram devagar, ganham a confiança da criança, depois ganham o coração do pai e no final chega, Ricardo corta seco. Você não conhece a Lara? Eu conheço o tipo jovem, bonita, pobre, viúvo, rico, carente. É a combinação perfeita para interesseiras. Ricardo sente a raiva subir. Ela não é assim.

 Se fosse, não estaria cuidando do meu filho com o coração que ela tem. Ligia, então, usa a frase que sabe que dói ou o coração que ela finge ter. A raiva de Ricardo estala. Sabe o que dói? A senhora ter medo de perder o controle. A Lara não quer o meu dinheiro. Ela quer o bem do Lucas. E isso? Isso nem a senhora conseguiu dar desde que a Mari morreu. Líja empalidece como se levasse um soco.

 Não responde, só vira o rosto, ferida no orgulho. Algumas horas depois, do lado de fora, Lara está no quintal, ajudando Lucas a regar as plantas. O sol bate nas costas dela. O bebê pressiona suas costelas, mas ela não reclama. Lucas fala sem parar, como se precisasse encher o silêncio recente com qualquer coisa. Lara, a vovó ficou brava com você? Ela respira fundo, sentindo o ar quente entrar devagar.

 Lucas, às vezes os adultos se assustam com coisas que não entendem. Ela disse que você não é minha mãe. Lara se agacha com dificuldade, mas se agacha ficando na altura dele. Eu não quero roubar nada de ninguém, mas se você quiser, posso ser a pessoa que fica do seu lado quando o coração aperta. Lucas abraça a barriga dela. Eu quero.

 Ela fecha os olhos, sentindo ele e o bebê ao mesmo tempo. Dois corações pequenos apoiados no dela, um por fora, outro por dentro. Mas a paz dura pouco. No final da tarde, Ligia chama Lara para uma conversa no escritório. Porta fechada. Lara entra devagar, mãos suadas, barriga pesada.

 O escritório cheira a couro caro e perfume importado. Fotos de família nas prateleiras. Mariana sorrindo com Lucas bebê. Observam tudo em silêncio. Líja não senta, fica em pé entre ela e a porta. Vou ser direta, menina. Meu filho está vulnerável. Meu neto é sensível. E você? Você está se aproveitando disso. Lara tenta respirar fundo.

 Eu nunca Você não tem estudo, não tem família, não tem marido e agora está grávida de um homem que te abandonou. Isso diz muito sobre o tipo de escolha que você faz. Cada palavra pesa como pedra e cada pedra cai direto no peito de Lara. Eu amo o Lucas. Ela consegue dizer voz fraca. Amo. Então prova.

 Líia cruza os braços, pede demissão. Agora Lara sente o chão balançar, um frio sobe pela nuca. O bebê chuta forte, como se reagisse junto. Ah, se você realmente se importa com o Lucas, vai embora antes de machucar ele. Lara segura o choro com todas as forças. Eu Eu não quero machucar ninguém.

 Então saia antes que meu filho perceba o tipo de mulher que colocou aqui dentro. Lara abre a boca querendo responder, mas nada sai. Só fecha a pasta que segurava contra a barriga e se vira para ir embora. A mão dela toca a maçaneta e é nesse momento, nesse gesto pequeno e silencioso que ela percebe.

 A mão está trêmula, mas não de medo, de raiva, de dor, de algo que ela não sentia fazia muito tempo, a vontade de ser defendida por alguém. Ela fecha os olhos e respira fundo. Do lado de fora, no corredor, o desenho que Lucas fez mais cedo, o pirata torto, desliza do bolso dela e cai no chão. A tinta vermelha escorre um pouco na borda. Parece sangue.

 Parece verdade. Parece um aviso de que a tempestade ainda está só começando. A tarde cai na mansão como uma cortina pesada. O céu muda de cor devagar, passando do azul claro para um laranja sujo. Depois um cinza ameaçador, como se o próprio dia soubesse que algo ruim estava prestes a acontecer. Lara está no quarto simples, onde dorme desde que chegou. A mala está aberta sobre a cama.

Não arrumar malas, mas desmontar raízes. Duas roupinhas de bebê dobradas com cuidado. O pote com fitas coloridas que ela usa para arremendar brinquedos. A ultronografia dobrada no bolso lateral. Ela tenta respirar fundo, mas o ar pesa na garganta.

 O bebê mexe inquieto, talvez sentindo o turbilhão de medo que passa pelo corpo dela. A porta se abre devagar. Lucas aparece. Olhos vermelhos, respiração curta. Ele segura o carrinho remendado, aquele que colaram juntos, como se fosse seu escudo. “Você, você tá indo embora?”, ele pergunta sem rodeios. Lara sente o coração despencar, mas não consegue falar.

 Ela apenas se senta na beira da cama e tenta sorrir. Aquele sorriso pequeno que se dá quando o mundo está quebrando. Lucas caminha até ela devagar, como quem se aproxima de um sonho ruim. Você prometeu? A voz dele falha. Prometeu que ia ficar até o bebê nascer. A mala aberta parece gritar mais alto que ele. Eu sei, meu amor.

 Ela tenta tocar o rosto dele, mas Lucas recua, magoado, de um jeito adulto demais. Às vezes, ir embora dói menos do que ficar. Dói menos em quem? Ele dispara com uma honestidade que só criança ferida consegue ter. Lara fecha os olhos, o bebê chuta forte. do corredor. Alguém observa a cena em silêncio. Ricardo, ele dá dois passos para dentro.

 O que está acontecendo? Lara respira fundo, mas a voz sai trêmula. Eu vou embora, Ricardo. Lucas grita. Não. E se joga nas pernas dela, como se pudesse segurá-la na casa com a própria força de menino. Ricardo encara a mala aberta. Depois encara a mãe ligeia, parada atrás dele no corredor, braços cruzados, satisfeita com o caos que plantou.

 “O que você fez?”, ele pergunta à voz baixa, mas tão afiada, que poderia cortar vidro. Eu? Nada, Ricardo. Só mostrei a ela a verdade. Ela mesma entendeu que não pertence a este lugar. Lara aperta os olhos, não contesta, não se defende. A vergonha pesa mais que qualquer palavra. Lígia continua. E mais cedo ou mais tarde, você também entenderia. Ricardo sente algo dentro dele quebrar pela primeira vez em muito tempo.

 Não brinquedo, não um prato, não uma porta. Era a paciência. Ele avança um passo. A verdade é que você está destruindo meu filho de novo. Ele acabou de encontrar um pouco de paz e você veio arrancar isso dele. Lige vacila. Mas antes que responda, uma notificação vibra no celular dela. Ela mostra a tela vitoriosa. Ricardo está em tudo quanto é site. Olha, ele pega o celular.

 Na tela, uma matéria sensacionalista com título gigante. Viúvo milionário se envolve com babá grávida. Casa em crise. Foto da fachada da mansão. Outra foto dele chegando em casa. Nenhuma de Lara. Mas ela sente como se estivesse sendo exposta nua. Ricardo aperta o celular com tanta força que os dedos ficam brancos. Quem mandou isso? Não sei.

 Líia responde, mas os olhos frios dizem o contrário. Ele devolve o celular. Isso é mentira. Mentira ou não é uma vergonha. Líia diz. E você tem um nome a zelar. Lara engole o choro. Ela tem razão, Ricardo. Eu eu não quero destruir a sua vida, nem a do Lucas. Lucas, desesperado, agarra ainda mais forte o vestido dela. Você é minha mãe de coração. Você disse: “Mãe, não vai embora”.

 O grito dele corta a alma dos três adultos. Lara treme. Cada pedaço dela treme. Ela tenta falar, mas só sai. Me desculpa. E se abaixa com dificuldade, com a barriga pesada, com a dor de quem está abrindo mão da própria felicidade, para soltar com carinho os dedos de Lucas agarrados nela, mas ele não solta. Eu não deixo você ir.

 Ricardo fecha os olhos, respira fundo, apertado entre a dor do filho, a pressão da mãe, a vida toda organizada como porcelana frágil e a mulher que devolveu cor à casa. Quando abre os olhos, ele parece outro homem. Lara, ela ergue o rosto. Os olhos dos dois se encontram sem proteção, sem medo, sem escapatória.

 E então Ricardo dá um passo à frente, depois outro. e se ajoelha não no chão, não diante da mãe, não diante da culpa. Ele se ajoelha diante dela, da mulher que ele não pode perder. Lucas para de chorar por um segundo, confuso. Ricardo respira firme, pela primeira vez, sem hesitar.

 Se você acha que ir embora é a única forma de proteger essa família, então vou criar outra forma. Lara arregala os olhos. Ele pega as mãos dela, ambas tremendo, e diz com voz baixa, mas com coragem suficiente para mover paredes. Lara Santos, casa comigo. A casa inteira parece prender o ar. Lígia leva a mão à boca, chocada. Lucas olha do pai para Lara, esperando a resposta, como quem espera o sol nascer.

Que Lara mal consegue respirar. Ricardo fala mais alto agora, mais firme. Casa comigo, fica com a gente, fica comigo e com o Lucas e com esse bebê também, se você deixar. Lara balança a cabeça, lágrimas caindo descontroladas. Ricardo, eu Isso é loucura. Talvez seja.

 Ele sorri pela primeira vez desde que a conheceu. Mas é a primeira loucura que eu quero fazer de verdade. Lucas grita. Diz sim, Lara, e segura a barriga dela como se pudesse convencer o bebê junto. Lara ri no meio das lágrimas, leva a mão ao rosto, olha para a mala aberta, símbolo de fuga.

 Depois olha para Lucas, para Ricardo ajoelhado, para a própria barriga, o mundo pequeno que carrega, e então num sussurro que faz o ar tremer. Sim, o rosto de Lucas explode numa alegria que não cabe no corpo pequeno. Ricardo fecha os olhos como quem agradece por não ter perdido tudo. vira o rosto e pela primeira vez não há raiva, mas um susto silencioso, como se percebesse que sem querer assistiu ao nascimento de uma família.

Meses depois, o jardim está cheio de flores brancas. É o dia do casamento. Nada luxuoso, apenas cadeiras simples, um arco feito com fitas coloridas, as mesmas que Lara usou para arremendar brinquedos. E um Lucas muito orgulhoso segurando as alianças. Ricardo espera Lara no altar improvisado, o coração batendo como se fosse o primeiro dia de vida dele.

 Lara surge usando um vestido leve, simples, que abraça a barriga já grande. Ela não tenta esconder nada, nem o bebê, nem a história dela, nem o amor. A cerimônia é curta, mas cada palavra parece costurar algo que antes estava em pedaços. Depois, já na casa de praia, durante a lua de mel improvisada, Lucas corre pela areia, enquanto Ricardo segura Lara pela cintura, beijando a barriga.

 E aí ele pergunta: “Algum chute hoje?” Lara ri. Vários. Esse bebê vai ser danado. Lucas de longe grita. Eu ensino ele a ser legal. Prometo. O vento leva a promessa como música. Dois anos depois, numa manhã clara, o pequeno Caio, filho de Lara e Ricardo, engatinha pelo tapete da sala. Lucas, já maiorzinho, tenta ensinar origami para ele.

 Lara observa preparando café, quando sente uma mão pequenininha tocar sua perna. “Mãe, ele comeu meu papel”, ela ri. Ricardo chega por trás, abraça os dois com um beijo demorado. Por um instante, ninguém fala nada. É só barulho de casa viva. Risada infantil, panela chiando, passos na escada. A mesma casa que um dia ecoou gritos, agora respira como se tivesse finalmente encontrado o seu ritmo.

 Lara, parada na cozinha com café na mão, olha para a fita colorida colada no cantinho da geladeira, a mesma cor do remendo do carrinho, e percebe que no fim ela não consertou apenas um brinquedo, consertou um lar inteiro.