A chuva tinha parado fazia pouco tempo, mas o cheiro de asfalto molhado ainda subia da rua lá embaixo, lá na curva da Giovan Gronte. O vento empurrava as folhas das palmeiras do jardim da mansão, fazendo um barulho áspero, quase metálico, contra o vidro da entrada. Quando o portão eletrônico abriu devagar, a câmera mental que seguia Renato Viana mostrou apenas isso.

 Um homem voltando para casa, sem avisar ninguém. Um homem que parecia carregar nas costas o peso de um continente inteiro. Ele empurrou a porta principal com o ombro, nem percebeu que a mala ainda estava na mão. A casa respondeu como sempre respondia, com silêncio.

 O silêncio tão grande que dava para ouvir o ping do elevador do outro lado da sala, o estalar da madeira do piso, o relógio da parede marcando cada segundo, como se quisesse lembrá-lo de tudo o que ele evitava sentir. Renato parou no meio do hall, respirou fundo aquele cheiro, perfume caro, misturado com a frieza de ar condicionado.

 Era o cheiro da casa dele e ao mesmo tempo, era o cheiro de um lugar onde ninguém vivia de verdade há 18 meses. Ele tirou a chave do bolso, largou em cima da mesa de mármore. O som ecoou demais, como se a casa tivesse ficado maior, ele pensou. ou talvez ele tivesse ficado menor. A chuva tinha molhado o cabelo dele no caminho da garagem até ali.

 Uma gota escorreu pela sobrancelha. Ele respirou fundo de novo, tentando se acostumar com a sensação de estar de volta, mesmo sem ter planejado voltar. E foi então que aconteceu um som baixo vindo lá de dentro. Renato congelou como se alguém tivesse apertado pause. Era impossível.

 naquela casa, a casa que não tinha voz, não tinha passo, não tinha vida. Aparecer um som era impossível. Ele inclinou a cabeça, fechou os olhos por um segundo para ouvir melhor. Sim, ali estava. Algo como um ruído suave, um farfalhar, talvez um sussurro vindo do fundo do corredor que levava à cozinha. O coração dele bateu forte, rápido demais. uma parte de preocupação, outra parte de lembrança, porque a última vez que ele ouviu um som inesperado naquela casa foi no dia em que recebeu a notícia da Carolina.

 O silêncio havia engolido tudo desde então, as gargalhadas das trigêmeas, os choros, até a música que Carolina gostava de colocar na vitrola antiga. Renato deu dois passos hesitantes, depois mais dois. As luzes automáticas do corredor se acenderam uma por uma, o sensor acompanhando o corpo dele. Cadaimento iluminava pequenos detalhes que ele nunca reparava.

 O vaso japonês que Carolina trouxe de viagem, o quadro torto que ele prometeu arrumar e nunca arrumou, a manta colorida no sofá, que ainda tinha o cheiro dela guardado em alguma fibra. O ruído voltou. Dessa vez um pouco mais claro. Renato inspirou. Os dedos estavam tremendo. Não pode ser. Por um segundo ele pensou em invasor.

Pensou em funcionário que esqueceu de ir embora. Mas a verdade é que o som tinha alguma coisa diferente, alguma coisa viva. Quando chegou perto da porta da cozinha, a lembrança bateu. Carolina com as trêmeas no colo, fazendo panqueca num domingo, o cheiro de manteiga, as três bebês batendo palminha, tudo aquilo que ele tinha enterrado sob reuniões, viagens e contratos de centenas de milhões. A mão dele pousou na maçaneta. gelada.

 Sua respiração ficou presa na garganta. Se tiver alguém aqui dentro, quem? A casa estava vazia por 18 meses. Só dona Zuleide ficava alguns dias da semana, ninguém mais. Ele empurrou a porta devagar, mas antes que o leitor veja o que está ali dentro, a narrativa volta no tempo.

 Porque para entender o que aquele som significa, é preciso entender o que morreu naquela casa antes dele chegar. Na época do acidente, o sol das 7 da manhã refletia no vidro do prédio, onde Renato estava fechando o negócio mais importante da carreira. Ele só viu a ligação do hospital piscando no celular porque o assistente empurrou o aparelho na mão dele.

 Carolina não resistiu. O táxi foi atingido por um motorista bêbado. A notícia atravessou Renato como uma lâmina fria. No velório, as trêmeas, Maria, Elisa e Manuela, ficaram as três abraçadas, olhando pro nada. 4 anos de vida e um silêncio que parecia de 100.

 De lá paraa frente, elas simplesmente pararam de falar, de cantar, até de chorar alto. Renato tentou tudo. Psicóloga nos jardins, terapia lúdica, especialistas de Brasília, Disney, praia, fazenda. Investiu mais dinheiro na tentativa de curar o silêncio do que na construção do arranha da Faria Lima. Nada mudou. As meninas caminhavam pela casa de mãos dadas, como três fantasminhas de vestido branco, sempre encostadas uma na outra, sempre com o olhar perdido.

 E quando ele tentava se aproximar, elas só se encolhiam ainda mais. Renato fez o que homens quebrados fazem. Fugiu, se enfiou em reunião atrás de reunião, viagem atrás de viagem, como se não parar fosse a única forma de não sentir. Até que um dia, dona Zuleide entrou no escritório dele com a coragem dos que já viram a vida inteira dessas meninas.

 Seu Renato, sozinho. Eu não dou conta mais. A casa tá grande demais. E elas elas precisam de alguém ali. O senhor me autoriza a trazer ajuda. Renato levantou os olhos do notebook por meio segundo. Contrata quem a senhora quiser, Zuleide. Resolve isso.

 E assim, três dias depois, Morena Silva entrou naquela mansão pela primeira vez. Morena tinha 30 anos, uniforme simples, mochila surrada e um jeito de olhar que carregava mais histórias do que ela dizia. Vinha do Capão Redondo, fazia pedagogia à noite, criava o sobrinho depois que a irmã faleceu. Ela sabia o que era dor e sabia o que era continuar. Mesmo assim, Renato viu Morena uma única vez naquele início.

Ela passou pelo corredor carregando um balde e um pano. Ele assentiu com a cabeça, sem erguer os olhos do celular. Ela sorriu de volta, mesmo sem receber resposta. Mas as trêmeas, elas notaram. Morena não tentou arrancar palavra, não disse fala com a tia. Não tentou brincar à força. Ela apenas fazia o que precisava ser feito.

 Arrumava as camas, dobrava roupas, colocava brinquedos em caixas transparentes e, enquanto fazia isso, cantarolava baixinho um hino antigo que aprendeu com a avó. As meninas começaram a aparecer na porta do quarto. Primeiro Maria, depois Elisa, depois tímida, Manuela. Elas observavam morena, como quem observa a luz entrando devagar num cômodo fechado demais.

 Na segunda semana, Manuela se aproximou só para ouvir o canto melhor. Ficou pertinho, com os pés descalços, segurando a barra da camiseta. Morena olhou para ela como se estivesse olhando paraa coisa mais preciosa do mundo, sem susto, sem pressa. Na terceira semana, Morena encontrou um desenho em cima das roupas limpas, uma borboleta amarela, tortinha, colorida com força de criança.

 Ela pegou o desenho com duas mãos, os olhos brilharam e pela primeira vez desde que entrou naquela casa, ela falou com as meninas não como empregada, mas como alguém que vê vida onde os outros só enxergam bagunça. Que coisa mais linda. Vou colocar na geladeira, tá? e colocou com cuidado, com fita adesiva que quase não grudava no aço gelado.

 O desenho ficou lá sozinho, pequeno, mas vivo. Renato nunca viu, nunca percebeu. Ele estava na Europa naquela semana, fechando mais um contrato. Se tivesse parado por 2 segundos, teria visto o primeiro sinal de que o silêncio estava começando a rachar. Voltamos ao presente. Renato está diante da porta da cozinha. O som do outro lado continua.

 Ele inspira, pressiona a maçaneta e, por um instante, seus olhos se desviam para a geladeira. E ali está a borboleta amarela, ainda colada, tremendo levemente com o vento da coifa. Ele não sabe, mas aquela borboleta é o primeiro aviso de tudo o que está prestes a acontecer e de tudo o que ele mesmo vai quebrar. Renato volta o olhar para a porta. O som do outro lado aumenta e ele empurra finalmente a porta para dentro.

Renato empurrou a porta devagar, como quem invade o próprio passado. A luz da cozinha veio primeiro, quente, suave, diferente daquela luz branca e fria que ele conhecia. Depois veio o cheiro. Bolo simples, café passado na hora, sabão neutro. E por fim veio o som que ele não escutava há 18 meses.

 Risos, risos pequenos, tropeçados, bagunçados, mas vivos. Por um segundo, o coração dele parou e quando o olhar finalmente alcançou o centro da cozinha, tudo ficou em câmera lenta. Morena estava com Manuela nos ombros, segurando firme nas perninhas miudinhas enquanto a menina ria tanto que o corpo inteiro balançava.

Maria e Elisa, sentadas na bancada de mármore, com os pezinhos balançando no ar, cantavam uma música antiga em unísono. Você é meu sol, meu raio de sol. Aquelas vozes, aquelas vozes que ele achou que nunca mais ouviria. Renato ficou travado no chão. A visão tremia como se estivesse vendo algo que não deveria existir.

 As lágrimas vieram antes da reação, só não caíram. ficaram ali presas no canto dos olhos, misturando alívio com incredulidade. Ele sentiu um calor no peito, forte, quase dolorido. As meninas estavam falando, cantando, vivendo e quem estava com elas não era ele. Morena ria abaixo com aquele riso que parecia rezar. Havia algo de tão simples naquela cena, tão caseiro, tão verdadeiro, que machucava, como se a casa inteira tivesse se lembrado de respirar ao mesmo tempo, como se a vida tivesse sido devolvida sem pedir permissão a ninguém. Os dedos de Renato escorregaram da maçaneta. A

mala que ele ainda segurava caiu no chão com um baque seco. Morena virou o rosto. Quando viu Renato na porta, o sorriso dela morreu devagar, como vela soprada. As três meninas também pararam, todas no mesmo segundo, como soldadinhas que perderam o comando. Por 3 segundos, o tempo ficou suspenso.

 3 segundos em que Renato sentiu tudo, absolutamente tudo. A alegria, o alívio, a saudade, o amor desesperado, a culpa e logo depois um outro sentimento mais antigo, mais feio, mais humano. inveja, vergonha, raiva. Elas sorriram para ela. Para ela não para mim. Elas voltaram e eu nem estava aqui. O rosto dele queimou por dentro.

 O orgulho ferido subiu pela garganta como ácido e então ele explodiu. Que palhaçada essa há aqui? A cozinha inteira tremeu. Manuela se encolheu sobre os ombros de Morena. Maria puxou Elisa pela mão. O canto parou. A felicidade parou, tudo parou. Morena baixou devagar a menina do colo, como quem devolve um pássaro ao chão com medo de quebrar asas.

 Seu Renato, eu A voz dela era baixa, mas firme. A senhora foi contratada para limpar. Ele cuspiu as palavras, avançando dois passos. Não para montar circo na minha casa. As meninas apertaram as mãos uma da outra até os nozinhos dos dedos ficarem brancos. Morena tentou se explicar. Eu só estava estando com elas, senhor. Elas Eu não quero ouvir. Ele gritou de novo.

Colocar minhas filhas em cima da bancada, carregar nos ombros. E se cai? E se se machuca? Que responsabilidade é essa? Nada aconteceu, senhor. Eu tomei cuidado, disse morena com as mãos trêmulas. Tá demitida. Agora, frio, rápido, cortante. Por um segundo houve silêncio absoluto. Até os utensílios da cozinha pareciam ter parado no ar.

 Morena respirou fundo, não chorou na frente dele, só ajeitou o uniforme, passou a mão no cabelo de Manuela com delicadeza e disse: “Como quiser, senhor”. Ela não implorou, não discutiu, só caminhou até a porta com passos firmes, dignos, enquanto as meninas acompanhavam com os olhos, sem soltar um som.

 Quando ela passou ao lado dele, Renato sentiu alguma coisa apertar no próprio peito, mas ignorou. Morena atravessou o corredor. As lágrimas só caíram quando ela virou a esquina e sumiu. As meninas desceram da bancada devagar, andaram até a porta e fizeram o que sempre faziam antes de congelar por dentro. Deram as mãos.

 Três menininhas de pé paradas no meio da cozinha que 5 minutos antes parecia um paraíso. Agora eram três sombras. Quando olharam para Renato, não havia raiva. Havia medo. Medo dele. O que veio depois foi pior. Elas olharam uma para a outra, como se confirmassem silenciosamente um pacto antigo. E então desligaram.

 Foi possível ver o exato momento em que as expressões delas murcharam. Os ombros caíram, os olhos escureceram. Maria puxou as outras duas e saíram andando de cabeça baixa, como três passarinhos que perderam asas no meio do voo. Renato ficou sozinho. O eco dos passos delas desapareceu pelo corredor. Ele se apoiou na bancada.

 A luz quente da cozinha agora parecia clara demais, dura demais, como se iluminasse todos os erros dele de uma vez só. Em cima da bancada estavam as roupas dobradas por morena, vestidos cor- de rosa, cheirando-a amaciante barato, mas com um carinho que nem ele conseguia reproduzir. E ao lado delas um pedacinho de fita adesiva, a mesma fita que segurava o desenho da borboleta amarela na geladeira.

 A fita tinha se soltado e caído no chão. Renato a pegou por impulso, pequena, grudenta, inútil. Mas quando levantou o rosto, viu a borboleta estava torta, pendurada pela metade, como se estivesse prestes a cair. Ele levantou a mão para arrumar, mas a mão tremeu. E pela primeira vez desde o velório da Carolina, Renato Viana sentiu o peso completo do que ele tinha acabado de fazer.

 Não tinha sido só um grito, não tinha sido só uma demissão, tinha sido uma punição ao milagre que ele mesmo não teve coragem de presenciar. O som das risadas que ele tanto esperou tinha morrido de novo, dessa vez pelas mãos dele. Lá fora, um trovão distante ecoou na zona sul de São Paulo. Renato fechou os olhos. O silêncio voltou. A casa voltou ao estado de antes, mas agora era diferente.

 O silêncio tinha um gosto amargo. Ele abriu os olhos devagar. A borboleta amarela, torta na porta da geladeira, balançou com o vento da coifa, como se estivesse tentando segurar o último pedacinho de alegria que ainda restava ali. E naquele instante, Renato percebeu. O milagre tinha acontecido e ele tinha acabado de destruir.

 A noite caiu pesada sobre a mansão, como se cada sombra carregasse um pedaço da culpa de Renato. A chuva voltou fina, batendo suave nos vidros do escritório, deixando rastros tortos que pareciam lágrimas correndo pelo vidro. Lágrimas que ele mesmo ainda não tinha coragem de deixar cair.

 A luz do abajura amarelada iluminava a foto de Carolina, segurando as trêmeas bebês, as três com fraldinhas iguais, bochechas fofas e sorrisos sem dentes. Um sorriso que não existia mais. Renato ficou encarando aquela imagem como quem olha para uma vida em outra dimensão. Ele segurava um copo de whisky, mas o líquido nem balançava. A mão dele tremia demais.

 O que eu fiz? A pergunta ficou latejando. Foi aí que alguém bateu na porta devagar. Senr. Renato a voz de dona Zuleide veio calma, mas firme. Ele não respondeu de imediato. Ela entrou mesmo assim. Zuleide não trazia chá nem bandeja. Não vinha para cuidar, vinha para falar a verdade. O senhor sabe o que fez hoje? Renato inspirou, mas não conseguiu olhar para ela. Eu eu perdi a cabeça.

 O senhor destruiu uma coisa que demorou semanas para nascer, ela disse sem aumentar o tom. Renato levantou os olhos confuso. O quê? Zuleide cruzou os braços, aquela postura de mãe cansada. As meninas, elas estavam falando, falando, cantando, contando coisinhas. Há semanas, o copo escorregou dos dedos dele e caiu de lado na mesa.

 O whisky derramou devagar, formando uma poça que escorreu até encostar na moldura da foto da Carolina. Renato piscou como quem toma um soco. Se semanas? Sim, senhor. Zuleide manteve o olhar firme, mas o senhor nunca estava aqui para ver. Quem escutou tudo fui eu e a morena. O silêncio que caiu foi tão pesado que parecia puxar o ar do cômodo.

Renato apoiou as mãos na mesa, respirando difícil. Eu eu não sabia. Pois é. Ela deu um passo à frente, porque o Senhor nunca tá e quando finalmente volta, destrói o lugar onde elas se sentiam seguras. As palavras atingiram Renato como tiro. Ele tentou argumentar, mas desistiu no meio da frase.

 Zuleide, eu só eu senti que o senhor sentiu que estava sendo substituído. Ela cortou direto e por causa disso, puniu as únicas pessoas que ainda tentavam te amar. Renato fechou os olhos. Um nó se formou na garganta dele. Que tipo de pai eu me tornei? Zuleide respirou fundo, o rosto cansado, mas cheio de uma sabedoria que Renato nunca aprendeu.

 O tipo de pai que ainda pode escolher ser outro amanhã. E saiu, deixando apenas o som da porta se fechando como ponto final. Renato não dormiu naquela noite. Quando o sol surgiu tímido atrás dos prédios lá ao fundo, ele já estava de pé. Olhos vermelhos, passos decididos, coração embrulhado. Chamou a secretária da casa. Quero que morena venha aqui. Preciso falar com ela agora.

 A cena do reencontro aconteceu na sala de jantar. Um lugar grande demais para uma conversa tão íntima. Mesas longas, cadeiras alinhadas. nada acolhedor. Mas era ali que Renato queria pedir desculpas, não como chefe, mas como alguém que tinha falhado de uma forma que nem sabia explicar. Morena entrou devagar, uniforme limpo, cabelo preso, dignidade intacta. Não olhou muito para ele.

 Ficou de pé, as mãos entrelaçadas, postura firme. Renato tentou começar, mas a voz saiu rouca. Morena, eu eu quero pedir desculpas. Nada daquilo parecia suficiente, mas ele disse mesmo assim: “Eu errei, gritei com você. Fui injusto. Não sabia que que elas estavam falando eu.” Morena ergueu o rosto. Os olhos estavam cheios, não de lágrimas, mas de clareza.

 “O senhor não precisa justificar”, disse. “Calma, eu sei por”, gritou. Renato engoliu seco. Sabe? Sei. O senhor ficou com medo. Achou que eu estava tomando um lugar que é seu, mas ela olhou para a porta como se lembrasse das meninas. Esse lugar só existe se o senhor ocupar. Renato deu um passo na direção dela. Por favor, me permita consertar.

 Morena respirou fundo. Eu não estou voltando. Foram cinco palavras. Só cinco. Mas atravessaram Renato como uma faca. Morena. Ele tentou, mas ela levantou a mão pedindo silêncio. O Senhor não só me demitiu, o Senhor me humilhou na frente das meninas.

 Elas confiaram em mim e naquele momento aprenderam que quando um adulto que elas amam faz uma coisa boa, alguém pode vir e arrancar isso delas. O peito de Renato doeu. Eu sei, eu sei que errei. Eu faço qualquer coisa para você voltar. Ela balançou a cabeça. Eu não posso voltar para um lugar onde carinho vira castigo. Renato abriu a boca, mas nada saiu.

 Morena fez uma leve reverência com a cabeça, virou-se e saiu. Quando ela fechou a porta atrás de si, foi como se a casa inteira tivesse ficado mais fria. Corre atrás”, disse dona Zuleide, horas depois, quando encontrou Renato sentado no sofá, rosto enterrado nas mãos, igual corre atrás de prédio de contrato, vai atrás dela agora. Renato levantou o olhar, ainda perdido. Eu eu nem sei onde ela mora.

Zuleide cruzou os braços com a paciência de quem cria adulto como se fosse criança. Eu sei. E se o senhor pedir direito, eu te digo. Naquela tarde, o carro importado de Renato parou no Capão Redondo. Rua estreita, prédio descascado, roupas no varal balançando num vento quente.

 Não era território dele e cada degrau daquele prédio parecia lembrar isso. Ele bateu na porta. 302. Quem abriu foi Lucas, o sobrinho adolescente. Alto, expressão desconfiada, uma força contida no olhar. A morena está? Perguntou Renato. Lucas o encarou de cima a baixo. Você é o cara que fez minha tia chegar chorando. Renato respirou fundo, vergonhoso. Sou.

Vim pedir desculpas. Lucas deu um passo para a frente, bloqueando o caminho. Ela não quer te ver. A porta se fechou devagar. Pela primeira vez, um não se curvou ao sobrenome Viana. No dia seguinte, Renato tentou de novo. Através de Zuleide, conseguiu o endereço da irmã de Morena, um conjunto habitacional simples na zona leste. Nádia, a irmã, abriu a porta com um bebê no colo.

 Ela reconheceu Renato num segundo e a expressão fechada deixou claro que reconhecimento não era admiração. “Eu preciso falar com a morena”, ele disse. “Ela não quer falar com você. Naddia respondeu. Renato segurou a respiração. Por favor, eu só eu preciso pedir perdão, não por mim, pelas meninas. Elas voltaram ao silêncio.

 O rosto de Naddia mudou. Só um pouquinho. Ela virou para dentro. Morena, tem alguém aqui. Morena apareceu no corredor. Olhar cansado, ombros tensos, uma força silenciosa. Renato tirou uma caixinha de papelão do bolso do casaco, estendeu para ela. As meninas fizeram isso para você. Morena abriu a caixa com cuidado.

 Dentro, três desenhos. Uma borboleta amarela, um arco-íris, três bonequinhas de mãos dadas e um papel dobrado escrito com letras tortas. Volta, a gente te ama. Morena colocou a mão na boca. As lágrimas caíram na mesma hora, silenciosas, pesadas, verdadeiras. Renato falou baixo. Não estou pedindo para voltar por mim. Estou pedindo por elas. Elas só falaram com você.

 Morena fechou a caixa devagar, encostou-a no peito, respirou fundo. Eu não devo nada ao senhor, mas talvez eu deva algo a elas. Renato se aproximou um passo. Qualquer condição eu faço. Morena olhou fundo nos olhos dele e naquele instante Renato percebeu. Ela não estava negociando o salário, estava negociando a vida daquelas crianças.

 Eu só volto se o senhor mudar tudo. Trabalho, viagem, rotina. As meninas não precisam de alguém que aparece e some. Precisam de alguém que fica. Renato sentiu a respiração falhar. Eu não sei fazer isso. Morena sorriu triste. Então aprende igual elas estão aprendendo a confiar de novo. Um dia de cada vez. Ela fechou a caixa de desenhos, encostou na mão dele.

 Me dá uma semana, eu penso, mas até lá. Diz para elas que eu vi. Diz que eu senti falta também. E fechou a porta. Renato ficou parado, segurando a caixa no corredor estreito. O barulho distante de panela batendo, vizinhos conversando, uma moto passando na rua. Tudo tão vivo, tudo tão simples, tudo tão diferente da mansão dele.

 Ele olhou para a caixa. Um desenho da borboleta dobrado na tampa balançou com o vento quente que vinha da janela do corredor, como se estivesse tentando voar. E ali, no meio da simplicidade daquela casa, Renato percebeu. Ele tinha corrido atrás de prédios por uma vida inteira.

 Agora estava correndo atrás da única coisa que poderia salvá-lo. A mansão acordou antes do sol, algo que não acontecia há meses. Renato não tinha conseguido dormir, não de ansiedade, mas de medo. Medo de não encontrar as palavras certas. Medo de ver nos olhos das meninas aquilo que mais doía. desconfiança. Ele acordou antes que o despertador tocasse.

 Desceu as escadas devagar, como se o piso pudesse quebrar debaixo dos pés. Na cozinha, tentou fazer café, errou a medida, derramou açúcar na bancada, queimou o pão, mas não desistiu porque, pela primeira vez em muito tempo, ele sabia exatamente porque estava ali. As triêmeas apareceram na porta ainda de pijama. As três de mãos dadas, como sempre. Mas agora havia algo mais.

 Um aviso silencioso, uma espécie de teste. Renato apoiou as duas mãos na mesa, respirando fundo. Meninas, preciso falar com vocês. Elas ficaram paradas. Maria apertou a mão de Elisa. Manuela soltou um suspiro que quase virou soluço. Renato não se aproximou, sentou-se no chão do jeito que tinha visto a morena fazer tantas vezes.

 Eu fui atrás dela disse ele, a voz baixa, quebrada, da tia morena. Fui no Capão, fui na casa da irmã dela, mostrei os desenhos que vocês fizeram. As três levantaram os olhos ao mesmo tempo. Ela viu, viu tudo. A respiração dele falhou e pediu. Pediu para eu dizer que sentiu saudade de vocês. As meninas não choraram, mas algo nelas. Abriu uma fresta. Renato continuou. Ela vai voltar. Ele esperou que a frase tivesse algum efeito.

 Daqui a dois dias. Foi como se o ar mudasse de cor. Elisa soltou a mão de Maria só por um instante. Maria deu um passo pequenininho à frente. Manuela deixou escapar um sorriso involuntário, tímido, quase imperceptível. E naquele sorriso minúsculo, Renato entendeu aquilo era esperança, tão frágil quanto uma asa de borboleta. Mas ainda assim, esperança.

 Os dias seguintes foram um desafio silencioso. Renato cancelou reuniões, adiou viagens, desligou o celular, passou o dia inteiro com elas, mesmo quando elas não falavam com ele. Ele sentava no chão do quarto de brinquedos, brincava errado com as bonecas, trocava as roupas delas ao contrário, lia histórias tropeçando nas palavras porque estava nervoso demais.

 Mas ele ficava mesmo quando elas não riam, mesmo quando ignoravam. À noite deitava no corredor, encostado na parede, observando a luz embaixo da porta, enquanto elas coxixavam entre si. Ele não entendia tudo, mas ouvia fragmentos. Será que ela vem mesmo? Ele disse que sim, mas ele já disse coisas antes. Essas frases atravessavam Renato como farpas.

 Mas ele não interrompia, não chorava na frente delas, ficava, porque ficar, ele estava descobrindo, era mais difícil do que correr. Chegou o dia. Renato preparou a mesa do café com as próprias mãos, pôs o suco em potinhos coloridos, ajeitou o pão, fritou o ovo mexido. O resultado ficou feio, mas sincero. As meninas desceram as escadas dear, como quem entra num lugar desconhecido. Sentaram-se, mas não tocaram no prato. Só observavam esperando.

 Hoje é dia especial, disse Renato tentando controlar a voz. Ela chega logo. Maria levantou os olhos. Ela vem mesmo, pai. Foi a primeira vez em semanas que ela falou diretamente com ele. Renato sentiu o peito abrir. Vem, filha. Ela vem, eu prometo. Maria olhou para as irmãs. Elisa puxou o ar. Manuela apertou os lábios.

 A confiança, aquela que eles tinham quebrado tantas vezes, tremia ali na beira do olhar delas, mas estava voltando. O interfone tocou ao meio-dia. Zuleide correu para abrir o portão. Renato parou no meio da sala, mão no peito, como se precisasse se segurar para não cair. As triêmeas estavam no sofá, as três juntas. Olhar fixo na porta de entrada. Pareciam pássaros prestes a virar vento.

 Quando a porta se abriu, Morena entrou devagar. Ela estava com a mesma roupa simples, a mochila velha no ombro, o cabelo preso num coque meio torto, mas havia algo diferente, um brilho contido, um cuidado no passo, como se ela estivesse pisando em território sagrado. As meninas ficaram congeladas por um segundo, só um segundo. Depois disso, o mundo andou rápido demais.

 Tia Morena! As três gritaram ao mesmo tempo. Correram tão rápido que pareciam três riscos de luz atravessando a sala. Bateram no corpo dela com tanta força que morena quase caiu para trás, mas segurou. Abraçou todas ao mesmo tempo, como quem recolhe as partes de um coração que foi quebrado, e finalmente voltou inteiro. As meninas choravam e falavam ao mesmo tempo, as palavras atropeladas.

 A gente achou que você não vinha mais. Pai falou que você viu os desenhos. A gente estava com saudade. Manuela soluçou. Saudade que dói. Morena as apertou com força, lágrimas escorrendo no silêncio do abraço. Renato assistia de longe e pela primeira vez não sentiu ciúme, sentiu gratidão.

 Quando Morena ergueu o rosto, os olhos dela encontraram os de Renato. Ele deu um passo à frente devagar. Morena se abaixou ao lado das meninas, passou a mão no cabelo delas e disse: “Seu pai, ele não desistiu. Ele foi atrás. Ele me procurou. Ele lutou por vocês.

” As trêmeas olharam para Renato e naquele olhar havia algo que ele não via desde que Carolina partiu. “Reconhecimento. “É verdade, pai?”, perguntou Maria. Renato ajoelhou no chão, na mesma altura delas. É. A voz dele saiu trêmula. Porque eu amo vocês e eu cansei de ir embora. Eu quero ficar. As três o abraçaram. Morena colocou a mão no ombro dele num gesto silencioso, mas cheio de promessa. Seis meses depois, a casa era outra.

 Não porque tinha ficado maior ou mais bonita, mas porque estava viva. Renato trabalhava de casa três dias por semana, levava as meninas pra escola. Conhecia o nome das professoras, dos colegas. Sabia de cor as músicas inventadas por elas. Fazia almoço algumas vezes, ruim, mas divertido. Lia histórias antes de dormir.

 E morena, morena não era mais somente a moça que ajudava, era a família. As meninas chamavam de tia Morena e ela ria como se não acreditasse que aquele lugar, naquela mansão, agora também fosse casa dela. Numa tarde de sábado, o sol se escondia atrás dos prédios altos, quando Renato encontrou morena e as trigémeas no jardim, todas com as mãos sujas de terra, ajoelhadas em volta de um canteiro.

 “O que vocês estão aprontando?”, Ele perguntou, se jogando ao lado delas. Plantando girassol, gritou Elisa. A mamãe amava girassol, completou Maria. Renato engoliu seco. Morena sorriu para ele com aquele jeito que sempre dizia: “Vai, fala o que precisa”. Ele passou a mão na cabeça de Manuela e disse: “Ela dizia que os giraçóis sempre viram pro lado da luz, mesmo quando o dia tá escuro.

” Ela dizia que era assim que a gente devia viver também. As meninas ficaram em silêncio, segurando sementinhas nas mãos pequenas. Foi então que uma brisa leve passou pelo jardim e junto dela uma borboleta amarela pousou no canteiro recém plantado. As trigêmeas prenderam o fôlego.

 Maria sussurrou: “É a mamãe!” Morena colocou a mão nas costas delas devagar. Ela mostrando que tá vendo tudo daqui. Renato puxou as três para um abraço, o sol batendo nos rostos delas com um brilho dourado. E naquele instante, naquele pedaço de luz, naquela borboleta, naquele canteiro cheio de terra, ele entendeu o que tinha levado tanto tempo para aprender. O amor, o amor que fica cura o que o silêncio deixou. A borboleta levantou o voo.

 As pétalas dos pequenos giraçóis recém plantados balançaram como se acenassem. E Renato, com as filhas nos braços e morena ao lado, finalmente estava exatamente onde prometeu estar, ficando