Ninguém ouviu o primeiro trovão, só Camila. Ela estava parada no meio da sua kitnete apertada, respirando o cheiro de mofo que a chuva sempre trazia quando a luz fraca da lâmpada piscou uma, duas vezes, como se a cidade inteira estivesse avisando: “Não tem mais volta”. Do lado de fora, um carro passou devagar, espalhando água da sarjeta e iluminando por um segundo a parede descascada do quarto.

 E naquele clarão breve, Camila viu o que sempre tentava ignorar. As contas vencidas coladas na porta, o aviso de despejo dobrado na mesa, o berço improvisado onde Lia dormia, abraçada a ursinho sem orelha. Ela fechou os olhos, apoiando a mão na barriga já pesada de seis meses. O bebê mexeu lento, como se perguntasse: “E agora, mãe?” A chuva engrossou, batendo no telhado de Zinco com um ritmo irregular que parecia acompanhar o coração dela.

 Camila respirou fundo, tentando segurar a angústia que ameaçava subir pela garganta. Ela precisava estar bem, precisava ser forte para Lia. para o bebê, para sobreviver até o fim do mês. No canto da sala, o celular antigo vibrou com insistência. A tela acendeu. Uma mensagem curta da encarregada da empresa de limpeza. Preciso de você hoje, Camila.

 Turno extra no prédio da Albuquerk Holdings. Pagamento dobrado. O rosto dela endureceu. Por alguns segundos, ficou só olhando para aquelas palavras. Enquanto a chuva escorria pela janela, como se escrevesse algo com dedos invisíveis. Turno extra, pagamento dobrado e quase 20. Camila olhou para Lia.

 A menina respirava de boca aberta, os lábios úmidos, os cachinhos grudados na testa pela umidade. Dormia tranquila, tão tranquila que doía. Camila se ajoelhou com esforço, segurando a barriga com uma mão e afastando o ursinho com a outra para ajeitar a menina. Encostou o nariz no pescoço dela, inalando aquele cheiro quente de criança. Mistura de leite, suor e pureza.

 “Mamãe tá aqui, meu amor”, sussurrou, sentindo o peito apertar. Mas ela sabia, pela manhã o leite acabaria e a fralda também. E dali a três dias o dono da Kitnete voltaria. Ela se levantou devagar, passando a mão pelo rosto. Precisava ir. Era isso ou a rua? Respirou fundo, firme, mas o pensamento seguinte veio como um soco.

Com quem deixar Lia. A vizinha, que às vezes ajudava, estava com febre. A irmã não existia mais. E pai, nem pro bebê que crescia dentro dela e muito menos para Lia. Camila abriu a porta de casa e atravessou o corredor para falar com a vizinha. Mesmo assim, a mulher tcia no escuro.

 “Cami, eu queria, mas não tenho forças nem para levantar da cama”, disse ela, a voz arranhada. Camila agradeceu e voltou. Desceu devagar as escadas estreitas até a rua. A chuva fina atingiu o rosto dela como agulhas. Ela ergueu o rosto pro céu, inspirou fundo e sussurrou: “Meu Deus, só me guia.

 Só hoje, só essa noite?” A resposta veio num trovão distante. Ela decidiu. Voltando ao quarto, Camila acendeu a luz fraca e abriu a mochila rosa de Lia. guardou fraldas, mamadeira, lenço umedecido, o ursinho que já tinha mais remendos do que tecido. Depois pegou um sling velho, aquele pano comprado num brechó, e o amarrou ao redor do corpo. Primeiro posicionou a barriga, depois encaixou Lia com cuidado, protegendo a menina do vento frio da noite.

 Por fim, vestiu sobreudo o casaco enorme que a vizinha emprestara uma vez para disfarçar a gravidez. Agora escondia duas vidas. Lia se mexeu, acordando um pouco, mas não chorou. Apenas segurou no colar de Camila uma correntinha fina de metal barato, que sempre parecia estar prestes a quebrar. Vai ser rápido, filha, prometo. Promessa feita ao escuro. A chuva. E a si mesma. O ônibus demorou.

 Quando finalmente veio, estava quase vazio. Camila subiu devagar, com a barriga e o sling pesando mais do que deveria. Sentou perto da janela e viu a cidade passar em manchas de luz amarela, ruas alagadas, fachadas de padaria fechando, vendedores recolhendo lonas. São Paulo tinha esse jeito de ignorar o sofrimento das pessoas, como se fosse apenas ruído de fundo.

 Lia dormiu de novo, quentinha contra o peito dela. O bebê mexeu. Camila passou a mão pela barriga e murmurou: “Eu sei, também tá com medo.” Quando o ônibus dobrou para a região da Paulista, os prédios pareciam tocar as nuvens carregadas. E lá estava ele, o prédio da Albuquerk Holdings.

 Vidro, aço, luxo, um monstro de 40 andares recortando o céu. Camila desceu na calçada brilhante de chuva, olhou para cima, sentiu-se pequena, menor que as gotas que caíam dos guarda-çóis apressados. Entrou pela porta dos fundos, onde ficavam os funcionários. ainda cheirava a café fresco e desinfetante, um cheiro frio, mas familiar.

 Dona Zilda, com a touca branca e o avental manchado de café, estava no canto escondendo um cigarro. “Ô, Camilinha, veio mesmo?” “Preciso,” Camila murmurou, ajeitando o casaco. “A vida da gente nunca dá folga, né, filha?”, respondeu a senhora balançando a cabeça. Camila só sorriu de canto, como quem já aceitou a própria luta.

 O segurança do turno olhou a prancheta e disse: “Vigéso andar tá vazio hoje. Reunião foi cancelada. Essas palavras caíram sobre Camila como água morna, vazio. Ótimo. Ela poderia trabalhar rápido e voltar para casa antes que Lia sentisse falta. subiu num elevador de serviço que rangia nos cantos. O visor vermelho marcava os andares devagar, como se estivesse cansado também.

 Quando a porta abriu no vezemos, tudo estava silencioso, quase bonito. Ela correu para o vestiário, tirou o casacão e colocou Lia num cantinho acolcho com a manta improvisada. espalhou alguns potes de plástico e tampinhas para servir de brinquedo, tentando transformar aquele espaço estéreo em algo parecido com um ninho.

 Lia olhou ao redor, sonolenta, mas tranquila. Camila ajoelhou com cuidado, tocou a testa da menina e sussurrou: “Se precisar de mim, chama, tá?” Mas bem baixinho. Lia segurou o dedinho dela por um segundo e soltou. foi o suficiente. Camila se levantou e fechou a porta do vestiário. Ela começou a limpar os corredores.

 O piso brilhante refletia as luzes frias do teto. Cada passo dela parecia ecoar como se o prédio estivesse vazio. Mesmo um vazio confortável. Até que um som cortou aquele silêncio, o elevador social. Depois, passos, vozes, todos na sala de reunião em 5 minutos. Tem um buraco de 2 milhões para resolver agora. Camila congelou.

 Do nada, o coração dela começou a bater tão forte quanto a chuva lá fora. Reunião nessa noite, no 20º andar, ela largou o pano e correu de volta pro vestiário. Girou a maçaneta trancada. Do outro lado, Lia começou a fazer aquele chorinho abafado, aquele som reconhece. Os passos das vozes importantes se aproximavam pelo corredor como sombra pesada. Camila colocou as duas mãos sobre a maçaneta fria, o peito subindo e descendo rápido.

 E enquanto a luz do teto piscava de novo, num aviso súbito, quase sobrenatural, ela sentiu que a porta entre ela e a filha não era só de metal, era a porta entre tudo o que ela sempre tentou evitar e tudo o que estava prestes a explodir. Camila ainda estava com a mão grudada na maçaneta quando ouviu.

 Camila, que cara é essa menina? Tá branca, igual parede. Ela se virou. Dona Zilda vinha pelo corredor de serviço com uma bandeja cheia de xícaras, o avental amassado, a touca torta. O cheiro de café fresco veio junto com ela, cortando o cheiro de desinfetante do andar. Camila respirou fundo, mas a voz saiu falhando.

 Minha filha, a porta trancou. Ela tá lá dentro sozinha. Os olhos de dona Zilda primeiro arregalaram, depois suavizaram. Ela olhou de Camila para a barriga dela, depois para a porta. Calma, fala devagar. Eu trouxe a Lia comigo hoje, escondida. Eu sei que é errado, mas eu não tinha com quem deixar.

 Aí eu deixei ela no vestiário um minuto, fui limpar o corredor. O segurança deve ter passado. Trancou a porta. Agora ela tá chorando lá dentro. As palavras começaram a sair em cascata, molhadas de medo. Dona Zilda suspirou. Colocaram a bandeja no chão e enfiou a mão no bolso do avental.

 tirou um molho de Chaves pesado com barulho metálico. Filha, pobre faz coisa errada é por desespero, não por maldade. Vamos resolver isso. Vem. Ela encaixou uma das chaves na fechadura. Um clique seco. A porta abriu. Lia estava sentada bem no meio do cobertor. O ursinho caído pro lado, o rosto vermelho, a boca tremendo.

 Quando viu Camila, levantou os bracinhos. O choro explodiu de vez. Camila se ajoelhou com dificuldade, puxou a menina pro peito e abraçou com tanta força que pareceu querer esconder as duas dentro do próprio corpo. “Tá aqui, meu amor. Tá tudo bem, mamãe? Tá aqui. Lia soluçava agarrada no uniforme dela, os dedinhos apertando o tecido como se tivesse medo de que a mãe desaparecesse de novo. Dona Zilda observava a cena, os olhos marejados.

Ela também já tinha segurado o filho chorando sozinha. Sabia exatamente o gosto daquele desespero. Escuta, Camila. Ela falou, pousando a mão no ombro da mais nova. Eu vou te ajudar, mas você precisa confiar em mim, tá? Camila levantou o olhar, ainda chorando, mas atenta. Como assim? Você precisa desse turno, né? Preciso. É o aluguel, é o leite, é tudo.

 Então faz assim, deixa a Lia comigo na copa. Eu fico com ela, dou uns potes para brincar. Você vai limpar só o banheiro privativo da sala de reunião e volta correndo. Se ela chorar, eu te chamo, combinado? Camila olhou para Lia, depois pra barriga. Não tinha escolha. A senhora tem certeza? Tenho.

 E outra, lá na sala vão estar só os chefões. Eles que se resolvam com os milhões deles. A gente se resolve com as migalhas aqui atrás. O jeito simples de dona Zilda falar fez Camila soltar um meio sorriso cansado. Ela assentiu. Na copa, o barulho era outro. Geladeira velha vibrando, microondas apitando, cheiro de café e pão dormido.

 Dona Zilda se abaixou com um gemido de coluna e abriu o armário de baixo. Tirou potes plásticos, tampas, colheres de pau, espalhou tudo num canto do chão em cima de um pano dobrado. “Pronto, aqui é o reino da princesa Lia”, disse ela, fazendo uma reverência exagerada. Lia, ainda com os olhos úmidos, foi se soltando aos poucos, pegou uma tampa, bateu devagar contra um pote.

 O barulho o chamou a atenção dela, bateu de novo e de novo até sair um sorrisinho tímido. Tá vendo? Muito mais divertido que reunião de gente grande, murmurou dona Zilda. Camila se ajoelhou mais uma vez diante da filha. Mamãe vai ali rapidinho, tá? limpar um banheiro e já volta. Lia segurou o rosto da mãe com as duas mãos pequeninas e encostou a testa na dela.

 Camila fechou os olhos naquele contato, como se carregasse forças dali. Depois levantou, ajeitou o uniforme e saiu, deixando a porta da copa entreaberta, o coração pendurado ali, o corredor até a sala de reunião parecia longo demais. Quando chegou na porta do banheiro privativo, Camila respirou fundo, abriu. Mármore claro, torneira cromada, cheiro caro de sabonete líquido.

 O espelho era tão grande que dava para ver a própria insegurança refletida. Ela começou pelo espelho, como sempre, pulso rápido, movimentos mecânicos. Enquanto passava o pano, as vozes começaram a atravessar a parede. Dois milhões não evaporam, senhores. A voz era firme, grave. André, estamos investigando, presidente. Deve ter sido um erro de sistema.

 Sistema não faz saque sozinho. Camila franziu a testa. Ela não entendia de milhões, mas reconhecia medo na voz dos outros. Continuou limpando agora a pia, o cesto. As vozes aumentaram. E onde está o Rafael? Ele deveria estar nesta reunião. O nome veio como lâmina, Rafael. O ar pareceu entalar no meio do peito dela. De repente, o banheiro ficou menor, o uniforme mais apertado, o mundo estreito. Ela apoiou as duas mãos na pia, fechou os olhos um segundo.

 Um flash rápido atravessou a mente. meses antes, sentada num bar simples, rindo de uma piada boba do mesmo Rafael, as mãos dele segurando-as dela, as promessas jogadas no ar, o cheiro de cerveja e perfume misturado, e a frase: “Se acontecer alguma coisa, eu tô aqui, tá?” Não sou moleque. O eco dessa frase parecia rir dela agora.

 Do outro lado da parede, ouviu passos mais pesados entrando na sala. Uma voz um pouco rouca, com aquele tom de quem está sempre se achando mais esperto que todo mundo. E aí, irmão? Que reunião surpresa é essa, Rafael? Camila respirou fundo, abriu a torneira, deixou a água correr, só para abafar aquele som, mas não adiantou. As paredes mantinham a voz dele viva.

 Na copa, o tempo corria diferente. O barulho de tampas batendo diminuiu. Lia cansada daquela brincadeira repetitiva, olhou ao redor. Dona Zilda, do outro lado da mesa, piscava pesado. Tinha acordado às 5 da manhã. Já tinha virado mais café do que o recomendado naquele dia. A cadeira era macia demais para quem estava exausta. Só um minutinho”, murmurou ela, deixando a cabeça pender um pouco.

 Em menos tempo do que imaginava, o minutinho, virou um cochilo profundo. Lia soltou a colher, levou o dedo à boca, chupou um pouco, depois se levantou cambaleando. Foi então que viu no fundo da copa, uma porta menor de serviço ficava entreaberta. Por ali entrava uma faixa de luz mais forte, amarelada, diferente da luz fria da cozinha, e vinha também um som abafado de vozes.

 Do ponto de vista dela, portas tinham um significado simples, gente, e muitas vezes, mãe. Ela andou devagar até lá, pezinho descalço no piso frio. Encostou a mão na madeira, empurrou. A porta abriu só um pouco mais, mas o suficiente para ela passar. Dentro da sala de reunião, ninguém notou a porta abrir uns centímetros.

 Os olhos estavam grudados em gráficos, pastas, olhares tensos entre André e Rafael. Lia entrou silenciosa. Primeiro apenas a cabeça, depois o corpinho todo se esgueirando. O tapete era fofinho, bem diferente do chão duro da Kittinete. Para ela parecia um campo estranho, cheio de pernas de adultos, sapatos brilhosos.

 cadeiras altas e logo à frente um túnel, o espaço escuro sob a mesa enorme. Ela engatinhou para lá, encantada. Enquanto isso, no banheiro, Camila enxaguava a pia. O barulho da água dava alguma coragem, mas de repente ele foi cortado por outra coisa. Um som conhecido, primário, indiscutível.

 O choro da Lia não era qualquer choro, era aquele choro agudo, de susto, de medo. Camila fechou a torneira na hora. O coração disparou. O sangue sumiu da ponta dos dedos. Não, não. Ela colocou a mão na barriga quase por reflexo, como se precisasse avisar o bebê. Segura firme aí dentro. Do outro lado da porta, a voz de Rafael veio alta.

 O que essa criança tá fazendo aqui? Sai daqui, some. Houve um arrastar de cadeira, talvez um tropeço. Lia chorou mais forte. Camila não pensou em chefe, em emprego, em regra, em nada. Só empurrou a porta do banheiro e atravessou o pequeno corredor que levava à porta de serviço da sala de reunião. Abriu de uma vez. O silêncio que caiu ali dentro foi mais alto que qualquer grito.

 Os diretores de ternos alinhados pararam com as bocas semiabertas. Rafael, em pé, parecia no meio de um movimento interrompido, a mão no ar, como se tivesse acabado de afastar alguma coisa com o pé. André na cabeceira tinha a expressão fechada, mas o olhar atento no chão, perto da cadeira de um dos diretores, Lia engatinhava de costas, tentando fugir. O rosto molhado, os olhos arregalados.

 Camila foi direto nela, tropeçando quase o peito ardendo. “Não encosta nela.” A voz saiu mais alta do que ela imaginava que fosse capaz. Ela se ajoelhou ali, sentindo o joelho bater no carpete, e puxou a filha pro colo. Lia se agarrou ao pescoço dela com tanta força que parecia querer entrar para dentro. “Calma, meu amor, calma.

Mamãe tá aqui.” Camila repetia, mas o corpo tremia inteiro. Rafael a reconheceu só então. Os olhos dele, por um segundo, ficaram vazios. Depois se encheram de um veneno conhecido. Ah, não! Você de novo? Não. Ele murmurou dando um passo à frente. Trouxe a criança aqui para fazer cena. É isso? Golpe novo agora.

 Camila sentiu o rosto queimar. Não de vergonha, de raiva. Eu trouxe minha filha porque não tinha com quem deixar, respondeu, a voz falhando, mas firme. Eu tô grávida, trabalhando em dois turnos e cuidando dela sozinha. Cena é o que você faz desde que ela nasceu. Os diretores trocaram olhares desconfortáveis. André não disse nada, só observava.

 A mandíbula marcada, os dedos entrelaçados em cima da mesa. Rafael riu, um riso seco. Ah, pronto. Vai começar de novo esse papo. Essa menina não é minha filha. Você e essa barriga aí só existem na sua novela, Camila. Ela fechou os olhos um segundo, respirou fundo, sentiu Lia apertar ainda mais o pescoço.

 Quando abriu, encarou ele de volta com uma coragem que nem sabia que tinha. Lia é sua filha, sim. E esse bebê aqui também. Você sabe disso. Você só teve medo de assumir. O ar ficou pesado. Dava para ouvir o zumbido do ar condicionado. Lia ainda chorava baixinho, mas agora não era só medo, era cansaço.

 Camila começou a balançá-la no colo num movimento automático enquanto olhava ao redor, pela primeira vez percebendo o quanto aquele lugar era estranho para elas. madeira cara, copos de cristal, homens de terno caro, e ela ali de uniforme simples, com a filha nos braços e outra vida dentro da barriga. Foi então que algo aconteceu.

 Lia, cansada, levantou o rosto do ombro da mãe, ainda fungando. Olhou em volta, confusa, evitando os rostos duros, o olhar irritado de Rafael, e parou no único rosto que não tinha raiva. André, ele não se mexia muito, não falava muito, mas os olhos, os olhos dele eram escuros e tristes, um tipo de tristeza que criança sente mesmo sem entender.

 Lia inclinou a cabeça, encarando aquele homem silencioso na ponta da mesa, e de repente, como se o corpo dela soubesse antes da mente, ela soltou uma das mãos do pescoço de Camila e esticou os braços na direção dele. Camila congelou. “Não, filha, a gente já vai embora”, murmurou, tentando segurar. Mas Lia insistiu, abriu os bracinhos de novo, mais forte, o movimento claro, decidido. Toda a sala prendeu a respiração.

 André demorou um segundo para entender, depois, devagar, se levantou. Os olhos dele encontraram os de Camila, pedindo uma permissão silenciosa. A voz saiu baixa, num tom que ninguém ali estava acostumado a ouvir daquele homem. Posso? Camila, ainda atônita, apenas a sentiu, o coração batendo como se fosse sair pela boca.

 Quando André deu a volta na mesa e estendeu os braços, Lia se lançou para ele como quem encontra um porto. Encostou a cabeça no peito dele, soluçou mais uma vez e começou a se acalmar. No meio daquela sala cheia de homens importantes e números gigantescos, uma criança escolheu no silêncio em quem confiar. E pela primeira vez naquela noite, o poderoso André Albuquerque parecia não saber o que fazer com tanto peso e tanta leveza ao mesmo tempo ali, dormindo devagar nos braços dele.

 O silêncio dentro da sala de reunião parecia tão denso que quase fazia peso no ar. André segurava Lia com uma delicadeza improvável para um homem como ele, duro, metódico, conhecido pelos funcionários como o gelo da Paulista. Mas ali, com a menina aninhada contra o peito dele, o gelo parecia ter começado a rachar.

 Rafael, por outro lado, estava nervoso. O terno caro já não sentava direito nos ombros dele. O colarinho aberto mostrava os suores escorrendo pela nuca. Ele tentava manter o arrogante, mas a expressão denunciava pânico. “Chega dessa encenação”, ele disse, tentando parecer no controle. Eu tenho uma reunião importante aqui e essa criança, essa criança tem nome.

 A voz de Camila saiu firme, mesmo com a respiração ainda acelerada. Lia, Rafael bufou. Lia, seja lá o que for, isso não muda que ela não é minha filha. Camila apertou os braços ao redor da barriga, como quem segura duas vidas ao mesmo tempo. “Você sabe que ela é”, respondeu e sabe do bebê também. As palavras acertaram Rafael como uma flecha.

 Ele piscou várias vezes, tentando disfarçar, mas os diretores já murmuravam entre si. André levantou os olhos para Rafael, sem se mover muito, apenas observando-o com aquele olhar que pesava mais que qualquer grito. Rafael, a voz dele saiu baixa, mas forte.

 Por que ela teria motivo para mentir? Rafael abriu a boca, fechou. Por que essas meninas fazem isso? Você é ingênuo? Vem com barrigona, vem com criança. Tudo golpe, André. Camila sentiu o rosto arder. Não era só humilhação, era raiva de ver Lia ali, tão pequena, tão vulnerável, sendo tratada como coisa. Lia, exausta, encostou mais o rosto no ombro de André. Ele instintivamente apoiou melhor a menina, ajustando a mão na cabeça dela.

Gesto simples, tão paterno, que fez o coração de Camila apertar. Foi quando aconteceu. Lia virou um pouco a cabeça, tentando se acomodar, e o cabelo dela caiu para o lado. Um pedacinho da nuca ficou exposto. Camila só percebeu porque André congelou.

 Ele ficou olhando fixamente para a pele macia de Lia, como se tivesse visto um fantasma. A respiração dele mudou, leve, curta, quase imperceptível, mas mudou. Camila olhou também ali, bem na base do pescoço da menina, havia uma marca, uma manchinha pequena em forma de meia lua inclinada. Ela sempre achou bonitinha, única, mas André não achou bonitinha. Ele achou conhecida, muito conhecida.

 Lentamente, ele ergueu os olhos para Rafael. Rafael, venha aqui. Foi quase um sussurro, mas tão carregado de algo, algo perigoso que até os diretores endireitaram a postura. Rafael riu de nervoso. Agora não, estamos no meio eu disse, venha. O tom final cortou o ar como faca. Rafael deu um passo, depois outro, batendo o pé no tapete pesado.

Parou diante do irmão, tentando parecer desafiador, mas o lábio inferior tremia. André virou Lia de leve, expondo novamente a marca. Olhe. Rafael olhou. No início só franziu a testa, mas então algo mudou nos olhos dele. O rosto ficou mais claro, depois mais pálido, uma cor quase doentia. Não”, murmurou.

 “Isso? Isso não significa?” “Significa sim”. André deu um passo para a frente com Lia nos braços, como uma prova viva. Essa marca, a mesma do pai, a mesma do avô, a mesma do nosso avô. Ele aproximou o próprio pescoço, afastando a gola da camisa. A mesma meia-lua inclinada estava lá. Os diretores se entreolharam.

 Dona Zilda, que até então estava na porta com as mãos tremendo, levou a mão ao peito. Camila sentiu as pernas vacilarem. “Como assim?”, ela sussurrou. “Isso é de família.” Andrea sentiu sem olhar para ela. Os olhos estavam presos no irmão. Três gerações. Todos os homens da família Albuquer que tem, inclusive você.

 Ele puxou Rafael pelo braço e virou a cabeça dele sem cerimônia. A gola do terno escorregou-o um pouco, revelando a mesma marca. Rafael empurrou a mão de André com força. Isso é coincidência, não prova nada. Pode ser, sei lá, genética de outra pessoa. De quem, Rafael? André deu um passo tão brusco que Camila instintivamente recuou.

 Quem mais tem essa marca? Rafael ficou calado e naquele silêncio todo o teatro dele desmoronou. Os diretores olharam para Camila com um novo tipo de atenção. Não mais desconfiança. Outra coisa, algo próximo de respeito. Camila abraçou Lia, que já quase dormia de novo, pequena e quente nos braços de André. Ela sentiu uma onda de emoção subir pelo peito. Medo ainda, mas também algo como alívio.

 André respirou fundo e pela primeira vez naquela noite ergueu a voz de verdade. Rafael, você sabia. Era uma acusação sem grito, mas com uma força que machucava. Você sabia que ela era sua filha e abandonou. Por quê? Rafael abriu a boca, mas nenhuma palavra saiu. Ah, é isso, André. continuou. Medo de assumir, medo de perder sua vidinha de festa, medo de ter responsabilidade pela primeira vez. Rafael deu um passo para trás, trôpego.

 André, por favor, não faz isso. Eu eu não Eu só tinha certeza de nada. Você tinha medo do que o teste ia dizer. Rafael ficou mudo. Camila sentiu o bebê na barriga mexer forte, como se também reagisse à atenção. Ela respirou devagar, com cuidado. Não queria desmaiar ali. Não, agora André virou-se para ela. Camila. O nome saiu suave, muito diferente da forma como Rafael o dizia.

 Eu preciso que você me diga a verdade. Rafael prometeu algo para você. Prometeu assumir, prometeu estar presente. Camila engoliu seco. Todos os olhares estavam nela. Prometeu, disse baixinho. Prometeu tudo. Depois sumiu. Bloqueou meu número. Disse que eu queria dinheiro. Disse que era loucura.

 André fechou os olhos um instante, como se obrigasse o mundo a parar de girar tão rápido. Quando abriu, ele era outro homem. Rafael, silêncio. A partir deste momento, você está afastado da empresa, sem acesso a contas, sem acesso às dependências. Vou chamar o jurídico agora mesmo. Rafael empurrou uma cadeira, a voz rouca. Você não pode me expulsar. É tanto meu quanto seu.

André segurou Lia mais firme, como se ela fosse agora o centro de gravidade de toda aquela noite. Eu posso e vou. Você roubou da empresa. Você abandonou sua filha. As duas coisas provadas na mesma noite. Camila fechou os olhos. Era muita coisa. Rápido demais. O relógio digital na parede marcava 00 no 47.

 A madrugada chegava devagar, mas ali dentro parecia meioia de tensão. André chamou o chefe do jurídico, que chegou em 15 minutos, ainda de roupa esportiva. A sala se transformou numa cena de tribunal improvisado. Papeladas, depoimentos, perguntas diretas. Camila respondeu tudo com Lia, dormindo, agora de volta ao colo dela.

 O bebê na barriga chutava devagar, como se estivesse atento à história que ainda nem tinha começado para ele. Rafael tentou argumentar, mas cada frase era uma confissão disfarçada, cada desculpa era um soco na própria imagem. E André não tirava os olhos de Camila ou de Lia. Parecia ver algo que ninguém mais via.

 Quando o jurídico terminou, André esticou a mão, recolheu os documentos e disse: “Camila, mantém a guarda integral. Rafael perde o direito de decidir qualquer coisa até determinação contrária. E começamos o processo de reconhecimento amanhã.” Rafael explodiu. “Você vai proteger essa mulher? Por quê? Ela te enfeitiçou?” André encarou o irmão como quem olha um estranho. Não, ela não precisa enfeitiçar ninguém.

 Você é que fugiu da responsabilidade. E ela Ele olhou para Camila de um jeito que fez o estômago dela apertar. Ela segurou o mundo com as próprias mãos. Rafael foi retirado pelos seguranças, ainda protestando. A porta bateu atrás dele, abafando a última palavra. A sala ficou quieta de novo, mas era outro silêncio agora.

 André se aproximou devagar, parou diante de Camila. Lia dormia com a cabeça encostada no ombro dela. O cabelo havia caído de novo, revelando a marca na nuca. André olhou a marca, depois olhou Camila e, pela primeira vez, desde que ela o conheceu, ele sorriu. Um sorriso curto, cansado, mas real. Ela tem a marca da nossa família. Camila sentiu o ar ficar mais leve. O coração não.

 Eu sei ela sussurrou. André passou a mão pelo rosto, como quem tenta afastar anos de dor e de perdas. Camila, você e sua filha não voltam hoje para casa. Ela arregalou os olhos. Como é? Vocês vêm comigo, ambas. Minha casa é segura. E vocês? Ele respirou fundo. São família agora. Camila ficou sem palavras.

 Então, no chão, uma das tampas de plástico da Copa, aquela com a qual Lia tinha brincado antes, rolou sozinha até parar aos pés dela. Um som pequeno, mas que preencheu toda a sala, como se marcasse o fim de uma noite e o começo de outra vida. O carro preto virou a última esquina antes de entrar no bairro onde Camila morava.

 A rua era estreita, sem asfalto, com postes que piscavam como se o bairro inteiro estivesse tentando não apagar. Na calçada, dois meninos jogavam bola descalços. Uma senhora lavava à frente da casa, um cachorro magro atravessava correndo. Tudo parecia tão pequeno comparado ao silêncio elegante dentro do carro.

 Camila observa tudo pela janela com Lia adormecida no seu colo e o bebê chutando devagar dentro da barriga. Tentava imaginar como era possível que poucas horas antes ela estivesse limpando um banheiro escondido e agora estava ali com André Albuquerque do lado, conduzindo a vida dela para um futuro que ela nem sabia nomear.

 Quando o carro parou diante da porta da Kitinete, Camila se encolheu sem querer. Era quase instintivo. Vergonha de mostrar pobreza, vergonha de mostrar onde criou a filha sozinha, vergonha de mostrar o que era real. Mas André saiu primeiro sem julgar nada. Apenas olhou ao redor, sério, como quem observa um campo de batalha onde alguém lutou sozinho por muito tempo. Camila murmurou.

 Não repara, eu é só por enquanto. Ele a interrompeu com um aceno de cabeça. Camila. A voz era baixa, quase um pedido. Eu não estou aqui para reparar. Estou aqui para te proteger. Essas palavras fizeram algo dentro dela afrouxar, como se alguma corda interna, esticada há meses finalmente cedesse um pouco.

 Ela entrou na casa e começou a arrumar as poucas roupas de Lia numa sacolinha. Separou duas mudas suas que cabiam numa mochila velha. Guardou o ursinho remendado, o único brinquedo realmente amado. Quando se virou, André estava parado na porta, observando o pequeno espaço, a cama que rangia, o fogão que falhava, o balde embaixo do canto do teto, onde sempre pingava.

 Ele não disse nada, mas o olhar dele dizia tudo. “Deixa isso”, ele disse por fim. “Amanhã compramos tudo novo. Eu não quero caridade, André. Ela tentou manter a voz firme. Você já tá fazendo muito. Eu não quero depender. Não é caridade. E ele deu um passo à frente. É o mínimo. Depois do que vocês passaram, depois do que Rafael fez.

 Você merece mais que isso, Camila. Ela segurou o ursinho contra o peito por um segundo, respirando fundo. Depois assentiu. Saíram juntos carregando muito pouco e deixando muito para trás. A casa de André ficava numa área arborizada da zona sul. O jardim era enorme, com luzes baixas iluminando o caminho.

 A fachada da casa era moderna, feita de vidro e madeira escura, mas sem ostentação. Ainda assim, parecia outro planeta. Camila ficou parada na porta com Lia no colo, sentindo-se numa roupa que não servia. “Pode entrar”, André disse, abrindo a porta. Quando ela passou, o ar da casa a envolveu. Cheiro de madeira limpa, perfume discreto, silêncio macio.

Lia acordou devagar, com os olhos confusos, mas sem chorar. Apenas encostou o rosto no pescoço da mãe. “A casa é grande”, Camila murmurou. “Era vazia demais.” André respondeu. Fazia silêncio demais. Ele não explicou mais, mas Camila entendeu o tipo de silêncio que machuca. Dona Zilda já estava lá. André tinha pedido para a empresa trazê-la de carro.

 Ela surgiu na sala carregando duas toalhas e um sorriso que enchia o espaço. Minha nossa senhora, olha isso. Dá para morar nessa sala inteira com 10 famílias. Ela riu, tentando quebrar a atenção evidente de Camila. Vou preparar um cantinho para Lia no quarto de hóspedes. Ela completou com tudo fresquinho. Essa menina merece dormir como princesa hoje. Camila agradeceu com os olhos.

 A gratidão era tanta que dava vontade de chorar, mas ela segurou. Os primeiros dias foram estranhos. Camila andava pela casa devagar, com passos pequenos, como se tivesse medo de tocar em alguma coisa e estragar. Lavava o copo que usava, arrumava o lençol de Lia quatro vezes por dia, ajudava a dona Zilda na cozinha. Era como se quisesse provar que merecia estar ali mesmo sem saber como.

 André apenas observava de longe, no começo. Chegava do trabalho, mudava de roupa, ficava sentado no sofá enquanto Lia tentava subir nos móveis, nos tapetes, nas pernas dele. Até que um dia Lia conseguiu. Camila estava na cozinha mexendo um mingal quando ouviu. Didi, era como Lia tinha decidido chamar André, algo entre tio André e André, mas cheio de carinho. Ela correu até a sala.

 Lia estava em pé no sofá, tentando alcançar o pescoço de André com os bracinhos esticados. Ele, sem saber muito bem como reagir, colocou as mãos nas costinhas dela e a levantou devagar. Lia se encaixou no ombro dele, como se fosse a coisa mais natural do mundo. Camila ficou na porta observando e viu quando André, por reflexo, fechou os olhos de leve, como se aquele abraço tivesse acertado um lugar adormecido dentro dele.

 O coração de Camila apertou e pela primeira vez não foi medo, foi algo morno, confuso, que ela ainda não sabia nomear. As semanas passaram, a rotina começou a encontrar ritmo. Lia acordava chamando Didi. Camila preparava café. André trabalhava, mas sempre voltava mais cedo do que antes.

 Jantavam juntos, às vezes os três, às vezes com dona Zilda junto, contando histórias engraçadas do prédio. Na terceira semana, uma tempestade caiu. O tipo de chuva forte que fazia Camila lembrar da noite em que tudo começou. Ela estava parada na janela, abraçando a barriga, observando os lampejos no céu. Lia brincava no tapete. André estava sentado no chão com ela, ajudando a montar uma torre com bloquinhos coloridos.

 De repente, um trovão ecoou tão forte que os vidros tremeram. Lia chorou na hora e correu para o colo de Camila. E Camila a assegurou, mas ouviu passos apressados atrás. Quando ela se virou, André estava ali preocupado com a mão estendida, não para Lia, mas para Camila.

 Tá tudo bem? Camila nunca tinha visto o rosto dele daquele jeito. Não era sobre a criança, era sobre ela. Tá sim, ela respondeu. É só o barulho. Ela não gosta. Andrea sentiu, mas não saiu de perto. Ficou ali como se quisesse garantir que nenhum trovão chegasse até elas. Foi quando Lia, ainda com lágrimas nos olhos, esticou uma mãozinha para André e outra para Camila, como se quisesse juntar os dois. Camila sentiu o ar faltar. André engoliu em seco.

 Os dois se abaixaram ao mesmo tempo e, por um breve instante ficaram próximos demais, respirando o mesmo ar, compartilhando o mesmo medo, a mesma proteção, a mesma criança. Na sexta semana, durante um café da manhã simples, Camila lavava a louça quando ouviu André chamá-la. Camila, vem aqui um instante. Ela enxugou as mãos na toalha e foi até a sala.

 André estava sentado no sofá com uma expressão que ela nunca tinha visto, um pouco de nervosismo e algo parecido com esperança. Lia dormia enroscada no peito dele, o rosto tranquilo. O advogado enviou o último documento. Ele disse: “Rafael perdeu a contestação. A guarda da Lia é totalmente sua.” Camila levou a mão à boca. As lágrimas vieram antes mesmo de ela entender o que estava sentindo.

 André ficou olhando, não com pena, mas com respeito. E tem mais uma coisa. O coração dela acelerou. Depois de tudo isso, depois do que vivemos nestas semanas, ele respirou fundo. Eu gostaria que vocês ficassem, não por obrigação, não por medo, mas por ele olhou para Lia dormindo, depois voltou o olhar para Camila.

 Esta casa respira diferente com vocês aqui e eu também. O silêncio que seguiu não era pesado, era cheio. Camila abaixou o olhar, ajeitando uma mecha de cabelo atrás da orelha. Quando levantou de novo, os olhos estavam molhados, mas firmes. “Eu também sinto isso.” Ele sorriu. Pequeno, mas verdadeiro.

 “Então fica?” “A gente fica.” Ela corrigiu. Lia, mesmo dormindo, mexeu a mãozinha e segurou a camisa de André. Camila riu baixinho, André também. E naquele gesto simples, a mão pequena segurando o tecido, como se tivesse escolhido ficar ali para sempre. A casa inteira pareceu respirar fundo pela primeira vez em muitos anos.

 Como se dissesse: “Agora sim.