Você já se perguntou o que acontece quando a pessoa que mais te ama descobre o segredo que você escondeu a vida inteira? E se, no momento mais vulnerável da sua vida, alguém simplesmente sussurrasse: “Só vou até onde você me deixar”.
Essa é a história de Carol, uma mulher que carregava uma ferida invisível por 19 anos e encontrou no amor a coragem de se reconstruir. Mas antes de eu continuar, me conta aqui nos comentários de onde você está assistindo esse vídeo. Quero saber de qual cidade, de qual estado você veio parar aqui. E se essa história tocar seu coração, e eu tenho certeza que vai, já deixa o like e se inscreve no canal, porque você não vai querer perder o final. Agora vamos começar.
A brisa do mar entrava pela janela entreaberta, trazendo consigo o perfume salgado do oceano e o som ritmado das ondas quebrando nas pedras centenárias de Parati. Era uma noite de lua cheia e a luz prateada banhava o quarto da pousada como se quisesse testemunhar aquele momento. Carol estava parada diante do espelho, ainda vestida com o hobby de seda branco que havia comprado especialmente para aquela ocasião. Seus dedos tremiam enquanto ajeitava uma mecha de cabelo castanho atrás da orelha. 34 anos.
executiva de uma multinacional de tecnologia, acostumada a comandar reuniões com diretores de três continentes diferentes. Mas ali naquele quarto com vista para a Serra da Bocaína, sentia-se como uma menina assustada. Do outro lado da porta do banheiro, podia ouvir Gustavo cantarolando baixinho enquanto escovava os dentes.
40 anos, advogado brilhante, sócio de um dos escritórios mais renomados de São Paulo. Haviam namorado por dois anos antes do casamento. Dois anos de jantares românticos, viagens de fim de semana, conversas intermináveis sobre o futuro. dois anos em que Carol havia conseguido, com maestria cirúrgica, evitar o momento que agora se aproximava inevitavelmente.
A porta do banheiro se abriu e Gustavo apareceu, os olhos verdes brilhando com uma mistura de amor e expectativa. Ele vestia apenas uma calça de pijama, o peito bronzeado exposto. Caminhou até ela devagar, como quem se aproxima de um pássaro que pode voar a qualquer instante. “Ei”, disse ele suavemente, parando a um passo de distância. Você está tremendo. Carol tentou sorrir, mas seus lábios não obedeceram completamente. É o frio mentiu.
Gustavo inclinou a cabeça, estudando-a com aquela expressão que ela tanto amava e temia, a expressão de quem via além das máscaras. Carol, ela recuou instintivamente quando ele fez menção de tocá-la. O movimento foi pequeno, quase imperceptível, mas Gustavo notou. Ele sempre notava. O que está acontecendo? perguntou ele, a voz carregada de preocupação genuína. Você está assim desde que saímos da festa.
Na verdade, ele franziu a testa como se montasse um quebra-cabeça. Você está assim há semanas, meses, talvez. Carol sentiu os olhos arderem. Não agora implorou silenciosamente para si mesma. Não na minha noite de núpcias. Eu só preciso de um minuto”, conseguiu dizer a voz falhando. Gustavo a observou por um longo momento.
Então, para a surpresa dela, afastou-se, caminhou até a cama, sentou-se na beirada e a olhou com uma serenidade que desarmava. “Senta aqui”, pediu ele, dando um tapinha no espaço ao seu lado. “Só sentar, nada mais”. Carol hesitou. Seu coração martelava contra as costelas, como um pássaro preso tentando escapar, mas havia algo nos olhos de Gustavo, uma promessa silenciosa que a fez dar o primeiro passo, depois outro e outro.
Quando se sentou ao lado dele, mantendo uma distância segura entre seus corpos, percebeu que suas mãos tremiam visivelmente. Gustavo também percebeu, mas não tentou segurá-las. Carol”, disse ele, virando-se para encará-la completamente. “Eu me casei com você porque te amo, não porque quero alguma coisa de você. Você entende a diferença?” Ela piscou, confusa.
Gustavo, deixa eu terminar. Ele respirou fundo. Eu percebi que tem algo que você não me contou. Algo grande. E eu não vou mentir. Isso me assusta um pouco. Mas sabe o que me assusta mais? A ideia de você passar a nossa primeira noite como marido e mulher com medo de mim. Uma lágrima escapou e rolou pela bochecha de Carol.
Ela a enxugou rapidamente, como se fosse uma fraqueza inaceitável. Então, eu vou te dizer uma coisa, continuou Gustavo, e quero que você guarde isso para sempre, tá bom? Não importa o que aconteça essa noite, amanhã ou daqui a 50 anos. Ele se inclinou ligeiramente para a frente, capturando o olhar dela. Só vou até onde você me deixar. O mundo pareceu parar.
Carol ficou imóvel, processando aquelas palavras. Só vou até onde você me deixar. Tão simples, tão revolucionário. Gustavo? A voz dela saiu embargada. Tem uma coisa que eu nunca contei para ninguém, nem para minha mãe, nem para minhas melhores amigas. Ninguém. Ele sentiu lentamente. Estou ouvindo. E então, pela primeira vez em 19 anos, Carol abriu a porta que havia trancado com correntes e cadeados no fundo de sua alma.
contou sobre Belo Horizonte, sobre ter 15 anos, sobre a festa na casa de um colega de escola, sobre o garoto mais velho que ela achava bonito, sobre a bebida que a deixou tonta, sobre o quarto escuro, sobre acordar sem entender o que havia acontecido, sobre a vergonha, o silêncio, os anos de terapia que abandonou, os relacionamentos que sabotou, o medo que a acompanhava como uma sombra.
quando terminou de falar, estava soluçando. O hobby de seda estava manchado de lágrimas e Gustavo, Gustavo não havia se movido 1 cm. Não havia tentado abraçá-la, interrompê-la ou oferecer soluções. Apenas ouviu, com os olhos marejados e o maxilar tenso, mas ouviu. “Obrigado”, disse ele finalmente. A voz rouca de emoção contida.
Carol ergueu os olhos confusa. Obrigado. Por quê? por confiar em mim, por me deixar conhecer essa parte de você. Ele engoliu em seco. E eu sinto muito, sinto muito que isso tenha acontecido com você. Sinto muito que você tenha carregado isso sozinha por tanto tempo. Ela fechou os olhos, as lágrimas ainda caindo.
Então sentiu algo quente envolver sua mão. Abriu os olhos e viu que Gustavo havia estendido a própria mão, palma para cima, num convite silencioso. Carol olhou para aquela mão por um longo momento. Então, devagar, entrelaçou seus dedos nos dele. “O que a gente faz agora?”, sussurrou ela. Gustavo sorriu, um sorriso triste, mas cheio de ternura.
Agora a gente dorme de mãos dadas, ouvindo o mar, e amanhã a gente acorda casado e descobre junto o que vem depois. Deitaram-se lado a lado, completamente vestidos, os dedos entrelaçados sobre o lençol branco. A lua continuava brilhando através da janela e as ondas continuavam quebrando nas pedras lá embaixo, indiferentes aos dramas humanos que aconteciam acima.
Carol ficou acordada por muito tempo, ouvindo a respiração de Gustavo se tornar lenta e regular, e, pela primeira vez em quase duas décadas, sentiu algo que havia esquecido que existia, esperança. Mas enquanto o sono finalmente a vencia, uma pergunta persistia em sua mente.
Seria esse amor forte o suficiente para sobreviver a tudo que ainda estava por vir? Ela não fazia ideia de que em poucas semanas descobriria que Gustavo também carregava um segredo. Um segredo que mudaria suas vidas para sempre. Três meses depois, o apartamento em Pinheiros havia se transformado, não nas paredes ou nos móveis.
Esses permaneciam os mesmos, com a vista privilegiada para o parque Vilalobos, que tanto haviam amado quando compraram o imóvel. A transformação era mais sutil, mais íntima. No quarto do casal, uma pequena tranca havia sido instalada na porta, uma tranca cujo único controle ficava do lado de Carol. As cortinas blackout haviam sido substituídas por um tecido mais leve que permitia a entrada da luz natural e no criado mudo, um pequeno difusor de aromas exalava constantemente lavanda, o cheiro que Carol associava à segurança desde a infância na fazenda da mãe. Gustavo havia feito cada uma dessas
mudanças sem que ela precisasse pedir. Observava, aprendia, adaptava-se. Naquela manhã de domingo, Carol acordou com o cheiro de café fresco vindo da cozinha. Espreguiçou-se na cama, notando o espaço vazio ao seu lado, ainda morno. Olhou para o relógio. 8:15. Gustavo acordava às 7 todos os dias, mesmo nos fins de semana, um hábito que ela achava simultaneamente admirável e irritante.
Levantou-se, vestiu o roupão e caminhou até a cozinha. Encontrou o marido de costas preparando panquecas no fogão. Ele vestia uma camiseta velha da faculdade de direito e uma bermuda de moletom, os cabelos ainda bagunçados do sono. “Bom dia”, disse ela, encostando-se no batente da porta. Gustavo se virou, sorrindo. “Bom dia, dminhoca. Café.
” Ela assentiu e se sentou no banco alto da bancada, observando-o se mover pela cozinha. Nos três meses desde a lua de mel, haviam desenvolvido uma rotina delicada, uma coreografia de aproximações e recuos que funcionava como uma dança. “Hoje posso apoiar no seu ombro?”, perguntou Gustavo, trazendo a xícara de café. Era a pergunta que faziam agora. Todos os dias. Nada era presumido.
Cada toque era negociado. Cada aproximação era consentida. Carol sorriu. Pode. Ele se aproximou por trás e depositou um beijo suave em seu ombro descoberto, demorando-se apenas um segundo antes de se afastar. Era um beijo casto, quase fraternal, mas para Carol representava uma vitória monumental. “O que temos hoje?”, perguntou ela, soprando o café.
Gustavo fez uma careta. Almoço na casa dos meus pais. O estômago de Carol se contraiu. Os almoços de domingo em Campinas haviam se tornado uma provação. Não por Gustavo, claro, mas por todo o resto. Sua mãe ligou ontem, disse ela, tentando manter a voz neutra. Eu sei. Me mandou mensagem também. Ele suspirou, virando uma panqueca.
Deixa eu adivinhar. Netos. Netos. Gustavo largou a espátula e se virou para encará-la. Carol, eu posso cancelar. Posso inventar uma desculpa? Não. Ela balançou a cabeça. São seus pais. É sua família. Eu aguento. Mas será que aguento mesmo? Perguntou-se silenciosamente.
John a casa dos pais de Gustavo em Campinas era uma construção colonial imponente, com varanda ampla, jardim bem cuidado e um pomar nos fundos, onde jabuticabeiras centenárias conviviam com mangueiras e pés de acerola. O cheiro de feijoada completa já invadia o ar quando Carol e Gustavo atravessaram o portão de ferro. Dona Marta apareceu na porta antes que eles pudessem tocar a campainha.
Era uma mulher baixinha, de cabelos grisalhos, presos em um coque elegante e olhos verdes idênticos aos do filho. Usava um avental florido sobre o vestido de domingo e carregava uma colher de pau como se fosse um cetro. “Meus filhos!”, exclamou, abrindo os braços. “Achei que não vinham mais. Mãe, são 10:30”, disse Gustavo, inclinando-se para beijar-lhe a testa. “A gente sempre chega nesse horário.” “Eu sei, eu sei.
” Dona Marta se virou para Carol, analisando-a dos pés à cabeça com aquele olhar que só sogras possuem. “E você, minha querida, está mais magra? Não está comendo direito?” Carol forçou um sorriso. “Estou ótima, dona Marta. O cheiro está maravilhoso. Feijoada completa com couve refogada, farofa de bacon, laranja e torresmo igual você gosta. A sogra a puxou pelo braço, conduzindo-a para dentro. Vem, vem. O Rafael já está aí com a Patrícia.
O interior da casa era exatamente como Carol lembrava. Móveis antigos, quadros religiosos nas paredes, o som de uma televisão ligada em algum noticiário e, permeando tudo, aquele cheiro específico de casas onde várias gerações haviam vivido e deixado suas marcas. Na sala, seu Antônio, um homem corpulento, de 70 anos, com bigode grisalho e mãos grandes de quem trabalhou a vida inteira, levantou-se para cumprimentá-los.
Ao seu lado, afundado no sofá, estava Rafael, o irmão mais novo de Gustavo. Aos 37 anos, Rafael era uma versão mais descontraída do irmão, mesmo o cabelo escuro, mesmo os olhos verdes, mas com uma barriga de cerveja e uma língua afiada que compensavam qualquer semelhança física. Olha só quem apareceu”, disse Rafael, levantando-se com um sorriso malicioso. “O casal do ano.
Ao seu lado, Patrícia, uma mulher loira de 35 anos, com feições delicadas e um ar permanente de preocupação, acenou timidamente para Carol. As duas haviam desenvolvido uma amizade cautelosa nos últimos meses, principalmente em olhares de solidariedade durante os almoços de família. Senta aí, senta”, ordenou dona Marta, empurrando Carol para uma cadeira. “Vou trazer uns petiscos enquanto a feijoada termina.
O almoço transcorreu na previsível sequência de eventos. Seu Antônio perguntou sobre o trabalho de Gustavo. Rafael fez piadas sobre política. Dona Marta encheu os pratos de todos até que protestassem. E Patrícia manteve um silêncio educado enquanto ajudava a servir.
Foi apenas quando a sobremesa chegou, um pudim de leite que era especialidade de dona Marta, que a conversa tomou o rumo que Carol temia. E então começou a sogra com aquela casualidade ensaiada que não enganava ninguém. Quando vocês vão me dar um netinho? Carol sentiu o garfo escorregar entre seus dedos. Ao seu lado, percebeu Gustavo enrijecer. Mãe, começou ele. O quê? É uma pergunta normal. Dona Marta se defendeu.
Vocês estão casados há três meses, não estão mais na idade de ficarem rolando, especialmente você, Gustavo. 40 anos já. Rafael, claro, não perdeu a oportunidade. É mesmo, irmão. Tá demorando, hein? O tempo tá passando. Daqui a pouco você vai precisar de Viagra para fazer o serviço. Rafael, repreendeu Patrícia corando.
O quê? É verdade? Ele deu uma risada. Eu com 37 já tive dois. O cara com 40 não tem nenhum. Tá fazendo alguma coisa errada. Carol sentiu o rosto arder. Embaixo da mesa, suas mãos se fecharam em punhos. Queria gritar, queria levantar e ir embora. Queria que o chão se abrisse e a engolisse. Mas antes que pudesse fazer qualquer coisa, Gustavo se levantou.
Seu movimento foi calmo, controlado, mas havia algo em seus olhos que silenciou a mesa inteira. Rafael”, disse ele, a voz baixa e firme. “A nossa vida íntima não é assunto seu, nem sua mãe.” Ele olhou para dona Marta, que abriu a boca para protestar, mas pensou melhor: “Quando e se tivermos filhos, vocês serão os primeiros a saber. Até lá, eu agradeceria se pudéssemos mudar de assunto.
” O silêncio que se seguiu foi denso o suficiente para cortar com faca. Rafael ergueu as mãos em rendição, murmurando algo sobre não poder nem brincar mais. E dona Marta concentrou-se intensamente em seu pudim. Carol olhou para o marido, os olhos cheios de gratidão. Ele piscou para ela, um gesto pequeno, quase imperceptível, e voltou a se sentar.
Já no caminho de volta pela rodovia dos Bandeirantes, o silêncio dentro do carro era de natureza completamente diferente. Era um silêncio confortável de duas pessoas que não precisavam preencher cada segundo com palavras. Carol observava a paisagem passar pela janela, os campos verdes, as placas de propaganda, os caminhões que seguiam rumo ao interior.
O sol da tarde pintava tudo com tons dourados e, por um momento, quase conseguiu esquecer as humilhações da última hora. Quase. “Desculpa pela minha família”, disse Gustavo finalmente, as mãos firmes no volante. “Não precisa pedir desculpa. Preciso sim. A minha mãe, ela não faz por mal, sabe? é da geração dela. Para ela, casamento sem filho não é casamento completo. Carol assentiu sem saber o que dizer. E o Rafael? Gustavo suspirou.
O Rafael é um idiota, mas é meu irmão, o que não significa que eu vá deixar ele te desrespeitar. Ela se virou para olhá-lo. A luz do fim de tarde iluminava seu perfil, o nariz reto, o maxilar definido, os cabelos começando a grisalhar nas têmporas. Era um homem bonito, um homem bom. e ela o estava fazendo esperar.
Quanto tempo mais ele esperaria? A pergunta surgiu involuntariamente, trazendo consigo uma onda de ansiedade. Carol inspirou fundo, tentando acalmar o coração acelerado. Gustavo? Hum. Hoje à noite. Ela hesitou, escolhendo as palavras com cuidado. Cacho que quero tentar. Ele a olhou rapidamente antes de voltar os olhos para a estrada. Tentar? Você sabe o quê? Gustavo não respondeu imediatamente. Quando falou, sua voz estava cuidadosamente neutra.
Tem certeza? Você não precisa provar nada para ninguém, especialmente não para a minha família. Não é por eles. Era verdade. Ou pelo menos ela queria acreditar que era verdade. É por nós. Ele assentiu lentamente. Tudo bem. A gente vai no seu ritmo. Sempre.
Naquela noite no apartamento em Pinheiros, Carol trancou a porta do quarto, aquela tranca que só ela controlava, e se aproximou de Gustavo. Beijaram-se devagar, com cuidado. As mãos dele pediram permissão antes de cada movimento, mas quando o peso do corpo masculino a pressionou contra o colchão, algo dentro dela quebrou. Não foi um barulho audível, foi mais como uma represa cedendo, liberando 19 anos de memórias que ela havia tentado manter afogadas. O rosto de Gustavo se transformou em outro rosto.
O quarto escureceu. O perfume de lavanda foi substituído pelo cheiro de cerveja e medo. Carol empurrou-o com toda a força que tinha. Para, para, para, para. Gustavo afastou-se imediatamente, quase caindo da cama no processo. Carol, Carol, sou eu. É o Gustavo. Você está segura.
Ela se encolheu no canto do colchão, tremendo violentamente, os braços cruzados sobre o peito. Lágrimas escorriam por seu rosto enquanto ela lutava para respirar. Me desculpa soluçou. Me desculpa. Eu achei que conseguia. Me desculpa. Gustavo se sentou no chão, mantendo distância. Ei, ei, olha para mim. Esperou até que ela conseguisse erguer os olhos.
Você não tem que pedir desculpa. Nunca, entendeu? Nunca. ficaram ali por muito tempo, ela encolhida na cama, ele sentado no chão enquanto a noite avançava do outro lado da janela. E Carol se perguntou não pela primeira vez se havia algo fundamentalmente quebrado dentro dela, algo que nem todo o amor do mundo conseguiria consertar.
Ela não fazia ideia de que em poucas semanas descobriria que não era a única naquele casamento, carregando um segredo devastador e que a verdade que Gustavo escondia mudaria absolutamente tudo. Duas semanas depois, Carol estava em casa sozinha. Era uma quarta-feira à noite e Gustavo tinha ficado preso no escritório com um caso urgente.
Ela havia chegado mais cedo do trabalho, com uma dor de cabeça latejante que nem o Ibu Profeno conseguia aplacar. O apartamento estava silencioso demais. Nos meses de casamento, Carol havia se acostumado com a presença de Gustavo. Mesmo quando não conversavam, mesmo quando cada um estava em seu canto, havia um conforto em saber que ele estava ali. Agora sozinha, os ruídos do prédio pareciam amplificados, o elevador subindo e descendo, passos no corredor, a televisão do vizinho de cima decidiu se ocupar, organizando o escritório.
Era o único cômodo do apartamento que ainda mantinha certa desordem. Pilhas de documentos de trabalho, pastas que precisavam ser arquivadas, a papelada do imposto de renda que Gustavo havia prometido organizar há semanas. Começou pelo gaveteiro, separou recibos médicos, contracheques, documentos do carro.
Na terceira gaveta encontrou uma caixa de sapatos escondida no fundo embaixo de uma pilha de revistas jurídicas antigas. Carol hesitou. A caixa não estava lacrada, mas havia algo na forma como estava escondida, que sugeria privacidade. Deveria deixar para lá, respeitar o espaço do marido, mas a curiosidade, ou talvez algo mais, algo que ela não queria nomear, a fez levantar a tampa.
Dentro encontrou cartas, dezenas delas, todas escritas à mão em papel de carta azul claro, com uma caligrafia feminina elegante. O cheiro de perfume antigo subiu das folhas quando Carol as espalhou sobre a mesa. Com o coração acelerando, pegou a primeira carta. O cabeçalho dizia: “Florianópolis, março de 2015. Meu amor, sinto sua falta mais do que consigo expressar. Os dias aqui na ilha são bonitos, mas parecem cinzentos sem você.
A faculdade está puxada. O projeto de restauro está me enlouquecendo, mas pensar em você me dá forças para continuar. Quando podemos nos ver de novo? O feriado de Páscoa está chegando. Talvez você possa vir para cá. Quero te mostrar as praias que descobri, o café que virou meu favorito, a vista do morro que fotografei pensando em você. Te amo mais do que ontem e menos do que amanhã.
Para sempre sua, Fernanda. Carol sentiu o ar escapar dos pulmões. Releu a carta, depois outra e outra. As cartas contavam a história de um relacionamento intenso à distância. Três anos de amor entre Gustavo e uma mulher chamada Fernanda, que estudava arquitetura na Ufsk.
Cartas cheias de saudade, planos de futuro, promessas de eternidade. E então Carol encontrou a última carta datada de 4 anos atrás. Gustavo, não sei como te dizer isso. Tentei ligar, mas você não atende. Tentei mandar mensagem, mas não consigo encontrar as palavras. Estou grávida. Descobri semana passada, três meses. Não planejei isso. Você sabe que não planejei, mas aconteceu. Meus pais descobriram. Você conhece minha família.
Você sabe como eles são. Estão me obrigando a escolher. ou me caso imediatamente com você ou com qualquer outro homem que eles aprovem, ou serei deserdada, cortada da família, como se nunca tivesse existido. Eu te amo. Você sabe que eu te amo, mas não posso te obrigar a casar comigo. Não assim, não por obrigação. Por isso estou indo embora.
Pedi transferência para outra universidade. Vou sumir por um tempo. Preciso pensar. Preciso descobrir o que fazer. Por favor, não me procure. Quando eu estiver pronta, eu entro em contato. Me perdoa, Fernanda. Carol ficou olhando para a carta por muito tempo. As palavras embaçaram quando as lágrimas começaram a cair.
Gustavo tinha uma ex-namorada grávida, uma ex-namorada que havia desaparecido, um filho ou filha que ele talvez nunca tivesse conhecido e ele nunca havia contado nada. Quando Gustavo chegou em casa perto da meia-noite, encontrou Carol sentada na sala escura. A caixa de cartas estava na mesa de centro, aberta. Ele parou na porta, a chave ainda na mão.
Seus olhos foram das cartas para o rosto de Carol e ela viu o momento exato em que ele entendeu. “Carrol, senta”, disse ela. A voz estava estranhamente calma, o que a assustou mais do que se estivesse gritando. “A gente precisa conversar.” Gustavo caminhou devagar até a poltrona em frente ao sofá. Não tentou se aproximar dela, não tentou pegar as cartas, apenas sentou e esperou. “Quem é Fernanda?”, perguntou Carol.
Ele suspirou, passando a mão pelo cabelo. “Minha ex-namorada. Conheci ela quando eu li as cartas. Sei que namoraram por três anos. Sei que ela engravidou.” Carol respirou fundo, lutando para manter o controle. “O que eu quero saber é porque você nunca me contou. Gustavo fechou os olhos por um momento. Quando os abriu, havia uma dor ali que Carol nunca tinha visto.
“Porque eu tive medo”, disse ele simplesmente. “Medo de quê?” “De te perder.” Ele se inclinou para a frente e os cotovelos nos joelhos. “Quando você me contou sobre o que aconteceu na sua adolescência, quando eu vi o quanto você confiou em mim para dividir aquela dor, eu não consegui. Não consegui jogar mais uma coisa em cima de você. Então, preferiu mentir? Eu nunca menti.
A voz dele tinha uma nota de desespero agora. Eu só omiti. E eu sei que é a mesma coisa. Eu sei. Carol se levantou andando até a janela. A cidade brilhava lá embaixo, indiferente ao drama que se desenrolava naquele apartamento. “Conta tudo”, disse ela sem se virar. Desde o começo. E Gustavo contou.
contou sobre conhecer Fernanda em uma viagem a Florianópolis, em uma festa de amigos em comum, sobre o namoro à distância, os voos semanais, as ligações que duravam horas, os planos de morar juntos assim que ela se formasse. Contou sobre a família dela, evangélicos conservadores, rígidos, que nunca haviam aprovado o namoro com um advogado divorciado.
Gustavo revelou de passagem que tinha sido casado brevemente aos 20in e poucos anos. Um casamento que durou menos de um ano. Contou sobre a última ligação que conseguiu fazer uma semana depois de receber a carta. Fernanda havia mudado de número. Quando ele voou até Florianópolis, descobriu que ela tinha pedido transferência. Ninguém sabia para onde.
Eu a procurei por meses, disse Gustavo, a voz embargada. Contratei um detetive particular. Vasculhei redes sociais. Fui até a casa dos pais dela em Blumenau. Me mandaram embora antes que eu pudesse abrir a boca. Nunca a encontrei. E o bebê? Perguntou Carol, finalmente se virando. Você não sabe se nasceu? Gustavo balançou a cabeça.
Não sei se nasceu. Se é menino ou menina, se está saudável. Não sei nada. O silêncio que se seguiu foi pesado, carregado de todas as coisas não ditas. Por que guardou as cartas? Perguntou Carol por fim. Gustavo olhou para a caixa na mesa. Por porque era tudo que me restava, a prova de que aquilo foi real.
de que eu amei alguém e fui amado de volta, e de que talvez em algum lugar existe uma parte de mim que eu nunca vou conhecer. Carol sentiu algo rachar dentro dela. A raiva que a havia sustentado durante as últimas horas começou a se esvair, substituída por algo mais complexo. “Você me conheceu dois anos depois que ela sumiu”, disse, “me para si mesma do que para ele.
” “É? E nesses dois anos? Você nunca pensou em me contar?” Gustavo se levantou, dando um passo hesitante em direção a ela. Pensei milhares de vezes, mas toda vez que eu tentava, eu via, vi a mulher corajosa que estava tentando reconstruir sua vida. E eu não queria ser mais um fardo. Você não é um fardo.
As palavras saíram automaticamente, mas Carol percebeu com surpresa que eram verdadeiras. Você é meu marido e casamentos são feitos de verdades, não de segredos. Eu sei. Ele parou a um metro de distância sem tentar tocá-la. E eu entendo se você precisar de tempo, se você quiser que eu vá embora por uns dias. Se você Para, Carol ergueu a mão.
Eu não quero que você vá embora. Eu quero Ela hesitou, procurando as palavras certas. Eu quero que a gente aprenda a ser honesto, de verdade, sem segredos, sem medo. Gustavo assentiu, os olhos brilhando. Eu posso fazer isso. Eu prometo que posso. Naquela noite, dormiram em lados opostos da cama, sem se tocar.
O abismo entre eles parecia intransponível, mas era um abismo com uma ponte, frágil, instável, mas uma ponte mesmo assim. E nenhum dos dois sabia que em poucos dias o telefone de Carol tocaria com uma notícia que os forçaria a deixar seus próprios dramas de lado. Uma notícia que chegaria da cidadezinha de Diamantina, no interior de Minas Gerais. Uma notícia que mudaria absolutamente tudo.
O ônibus estacionou na rodoviária do Tiet às 6 da manhã. Depois de 12 horas de viagem, dona Lúcia desceu com dificuldade, segurando uma mala pequena e usando o vestido florido que Carol conhecia desde a infância. Aos 62 anos, a mãe de Carol era uma mulher que o tempo havia tratado com respeito irregular.
Os cabelos grisalhos estavam presos em uma trança, como sempre. As mãos eram ásperas e calejadas de décadas de trabalho na terra, mas havia algo diferente nela naquela manhã. Uma palidez no rosto, um cansaço nos olhos que Carol notou imediatamente quando a encontrou na plataforma de desembarque.
Mãe! Carol a abraçou com força, sentindo os ossos sob a pele fina. Você está mais magra e você está mais bonita. Dona Lúcia se afastou para olhá-la, segurando seu rosto entre as mãos. Casamento te fez bem. Carol sorriu, mas a preocupação não a abandonou. Vem, o carro está lá fora, a gente pode conversar em casa. No apartamento em Pinheiros, Gustavo havia preparado o café da manhã, pão de queijo que ele mesmo assou, seguindo uma receita de internet que não ficou nem de longe tão bom quanto o de dona Lúcia, frutas cortadas, café forte, cumprimentou a sogra com um abraço respeitoso e se ofereceu para deixar as duas a sós. “Não precisa ir embora, meu
filho”, disse dona Lúcia, sentando-se à mesa. “O que eu vim falar diz respeito a vocês dois”. Carol sentiu o estômago afundar. Mãe, o que está acontecendo? Dona Lúcia bebeu um gole de café como se precisasse de forças para continuar. Quando depositou a xícara no piris, suas mãos tremiam ligeiramente. Fui ao médico em Diamantina mês passado, começou ela.
O Dr. Henrique que me atende desde que seu pai morreu. Ele pediu uns exames. Que tipo de exames? Perguntou Carol. Embora já soubesse, no fundo, já soubesse que a resposta seria devastadora. do coração. Dona Lúcia tocou o peito num gesto quase inconsciente. Parece que a válvula mitral não está funcionando direito.
Preciso de uma cirurgia. O mundo pareceu inclinar-se. Carol agarrou a borda da mesa, as juntas dos dedos ficando brancas. Cirurgia? Que tipo de cirurgia? Troca de válvula. É um procedimento complicado, mas o médico disse que tem boas chances de sucesso. Dona Lúcia tentou sorrir. Não faz essa cara, filha.
Não estou morrendo ainda”, sussurrou Carol, as lágrimas já escorrendo. Gustavo, que havia permanecido em silêncio, se adiantou: “Dona Lúcia, qual é o prazo para a cirurgia e onde seria feita?” “Esse é o problema.” A mãe de Carol suspirou pelo SUS, a fila de espera é de 2 anos. O médico disse que eu não tenho do anos. Se eu fizer particular, ela hesitou.
“Bom, é caro, muito caro. Quanto?”, perguntou Carol. Dona Lúcia disse um valor que fez Gustavo franzir a testa e Carol perder o fôlego. Mãe, você não tem esse dinheiro. Nem eu tenho. Não, assim de uma vez. Eu sei. Dona Lúcia olhou para as próprias mãos. Por isso, tomei uma decisão. Algo no tom da mãe fez Carol enrijecer.
Que decisão? Vendi a fazenda. O silêncio que se seguiu foi absoluto. Carol ficou olhando para a mãe como se ela tivesse anunciado que a terra era plana. Você o quê? A fazenda Boa Esperança. Vendi para o seu Joaquim, nosso vizinho. Ele estava querendo expandir as terras dele faz tempo.
Dona Lúcia ergueu o queixo num gesto de determinação que Carol conhecia bem. O dinheiro é suficiente para a cirurgia e ainda sobra um pouco. Mãe Carol se levantou, andando pelo apartamento como um animal enjaulado. Mãe, aquela fazenda está na nossa família há três gerações. Você me criou lá. Eu aprendi a andar a cavalo antes de andar de bicicleta naquelas terras. Eu sei, filha.
As mangueiras que o vovô plantou, o pé de jabuticaba onde eu subia todo o verão, o quarto onde meu pai Carol parou, a voz quebrando. O quarto onde seu pai havia dormido, até o dia em que sofreu o infarto que o levou quando ela tinha apenas 10 anos. Dona Lúcia se levantou com dificuldade e caminhou até a filha.
Suas mãos calejadas seguraram o rosto de Carol, exatamente como faziam quando ela era criança, e acordava de pesadelos. Filha, olha para mim. Esperou até que Carol obedecesse. Terra é terra, tijolo é tijolo, mas você, os olhos de dona Lúcia se encheram de lágrimas. Você é meu coração batendo fora do peito. Eu não vou deixar você órfã por causa de um pedaço de chão. Carol desabou nos braços da mãe soluçando.
Ali naquela cozinha moderna de apartamento paulistano. Duas mulheres mineiras choraram juntas por perdas antigas, por medos presentes, por um futuro incerto. Gustavo observou a cena de longe, o coração apertado. Quando as duas finalmente se separaram, ele pigarreou. Dona Lúcia, eu tenho uma proposta. Ambas se viraram para olhá-lo.
A fazenda já foi vendida e eu entendo que a senhora fez o que achava necessário. Ele fez uma pausa escolhendo as palavras, mas a cirurgia deixa eu pagar. Pelo menos parte dela. Não disse dona Lúcia imediatamente. Eu não vou aceitar caridade. Não é caridade. É família. Gustavo se aproximou. A senhora é mãe da mulher que eu amo. Isso faz da senhora minha família também. E família cuida de família. Gustavo.
Carol começou. Deixa eu terminar. Ele se virou para a sogra. A senhora usa o dinheiro da fazenda para se manter, para recuperação, para o que precisar. A cirurgia fica por minha conta. No sírio libanês com os melhores médicos, dona Lúcia balançou a cabeça. Eu não posso aceitar. Pode sim.
A voz de Gustavo era firme, mas gentil. Pensa nisso como um investimento no meu futuro, porque eu pretendo ter a senhora por perto por muitos anos. Ainda quero que veja seus netos crescerem. Quero fazer churrascos de Natal com a senhora por pelo menos mais 20 anos. E para isso, preciso que a senhora esteja saudável. Carol olhou para o marido como se o visse pela primeira vez.
Ali estava um homem que carregava seus próprios fantasmas, seus próprios segredos, mas que no momento em que importava sabia exatamente o que fazer. A negociação durou três xícaras de café e muitas lágrimas. No final, chegaram a um acordo. Dona Lúcia contribuiria com parte do dinheiro da fazenda e Gustavo cobriria o restante. Naquela noite, Carol encontrou o marido sozinho na varanda, olhando para as luzes do parque Vila Lobos.
“Obrigada”, disse ela parando ao seu lado. Ele deu de ombros. “Eu fiz o que qualquer pessoa decente faria.” “Não, você fez mais.” Ela hesitou, depois continuou, especialmente considerando considerando tudo que está acontecendo entre a gente. Gustavo se virou para encará-la.
O que está acontecendo entre a gente não muda quem eu sou e não muda o que eu sinto por você ou pela sua mãe. Carol sentiu lentamente, então num impulso que a surpreendeu, aproximou-se e encostou a cabeça no ombro dele. Gustavo ficou imóvel por um momento, depois passou o braço ao redor dela, puxando-a para perto. Ficaram ali em silêncio, olhando para a cidade que nunca dormia.
Enquanto em algum lugar do apartamento, dona Lúcia roncava suavemente no quarto de hóspedes. A cirurgia estava marcada para dali a duas semanas e nenhum dos dois sabia que durante a recuperação de dona Lúcia, uma conversa casual revelaria um segredo que mudaria a vida de Carol para sempre. As semanas seguintes, ao anúncio da cirurgia, foram um turbilhão de preparativos.
Gustavo mobilizou contatos no hospital Sírio libanês e conseguiu antecipar a data. Carol tirou licença do trabalho e dona Lúcia, com a teimosia típica das mulheres mineiras, insistiu em cozinhar para a família inteira enquanto podia. O apartamento em Pinheiros se transformou. Os aromas industriais de produtos de limpeza foram substituídos pelo cheiro de tutu de feijão, frango com quiabo, pão de queijo quentinho saindo do forno.
Dona Lúcia dominava a cozinha como uma general em seu quartel, dando ordens, ajustando temperos, reclamando que sal em São Paulo não tem gosto de nada. A cirurgia aconteceu numa manhã cinzenta de quarta-feira. Carol esperou na sala de espera por 7 horas, bebendo café frio de máquina e roendo as unhas até sangrar.
Gustavo ficou ao seu lado o tempo todo, segurando sua mão, falando sobre amenidades, fazendo-a comer mesmo quando ela jurava que não conseguia engolir nada. Quando o cirurgião finalmente apareceu, um homem calvo de 60 anos, com olhos cansados, mas bondosos, Carol sentiu as pernas cederem. “A cirurgia foi um sucesso”, disse ele. “A Sra. Lúcia é uma lutadora.
O alívio foi tão intenso que Carol quase desmaiou. Gustavo a segurou e ela chorou em seu peito como não chorava desde que era criança. A recuperação de dona Lúcia levou semanas. Ela ficou instalada no quarto de hóspedes do apartamento, sob os cuidados rigorosos de Carol Gustavo e uma enfermeira particular que vinha três vezes por semana. Foi durante esse período que aconteceu a conversa que mudaria tudo. Era uma tarde de domingo.
Gustavo havia ido ao escritório resolver uma emergência e Carol estava na cozinha preparando uma sopa para a mãe. Dona Lúcia, que já conseguia caminhar pelo apartamento com ajuda de um andador, apareceu na porta. Filha, posso te ajudar? Mãe, você deveria estar descansando. Eu já descansei a vida inteira nesses últimos dias.
Dona Lúcia se sentou num banco alto com cuidado. Deixa eu pelo menos fazer companhia. Carol sorriu e continuou cortando legumes. Trabalharam em silêncio confortável por alguns minutos, ou melhor, Carol trabalhava enquanto dona Lúcia observava e ocasionalmente dava palpites sobre o tamanho dos pedaços de cenoura. “Filha”, disse a mãe de repente.
“osso te perguntar uma coisa?” “Claro, você e o Gustavo, está tudo bem?” Carol parou de cortar, a faca suspensa no ar. Por que a pergunta? Porque eu tenho olhos. Dona Lúcia a encarava com aquela expressão penetrante que sempre fazia Carol se sentir como uma criança pega e flagrante. Vocês são carinhosos, são gentis um com o outro, mas tem algo, não sei, algo que não está completo.
Carol depositou a faca no balcão. Seus ombros se curvaram ligeiramente. É complicado, mãe. A vida é complicada. Conta. Carol hesitou por 19 anos. Havia guardado aquele segredo. Havia contado para Gustavo na noite de Núciassias, mas nem isso havia sido planejado. As palavras simplesmente escaparam. Agora, olhando para a mãe que quase morreu, que vendeu tudo que tinha para continuar viva, Carol sentiu as defesas ruírem e contou tudo.
Contou sobre Belo Horizonte, sobre os 15 anos, sobre a festa, o garoto, o quarto escuro, a vergonha, o silêncio que durou quase duas décadas. Quando terminou de falar, estava chorando. E dona Lúcia? Dona Lúcia estava com uma expressão que Carol nunca havia visto, uma mistura de dor, raiva e amor tão intensos que parecia emanar calor. Esse desgraçado a voz de dona Lúcia tremeu.
Se eu soubesse naquela época, se eu tivesse prestado mais atenção, mãe, não foi sua culpa. Eu sou sua mãe. Dona Lúcia bateu a mão na bancada, os olhos cheios de lágrimas. Minha função era te proteger e eu falhei. Você não falhou. Você estava trabalhando para me criar sozinha. Você estava lutando para manter a fazenda. Você estava Carol se aproximou da mãe, pegando suas mãos.
Você estava fazendo o impossível todos os dias. Eu nunca te culpei. Nunca. Dona Lúcia a puxou para um abraço. Um abraço desajeitado por causa da cirurgia recente, mas feroz em sua intensidade. “Minha menina”, sussurrou ela. “Minha menina corajosa. Carregar isso sozinha por tanto tempo, eu não estava pronta para contar.
Eu sei?” Dona Lúcia se afastou, segurando o rosto da filha. “E o Gustavo? Ele sabe.” Carol assentiu. Contei na noite de Núcias. E como ele reagiu? Uma pequena sombra de sorriso passou pelo rosto de Carol. Disse que só iria até onde eu deixasse e desde então ele tem cumprido a promessa. Dona Lúcia estudou a filha por um longo momento. Ele é um bom homem. É, mas isso não é suficiente. É.
Carol piscou confusa. O que quer dizer, filha? Você carrega essa ferida há quase 20 anos. O amor do Gustavo ajuda, mas não cura. Dona Lúcia apertou suas mãos. Você precisa de ajuda profissional. uma terapeuta, alguém que entenda dessas coisas. Eu tentei terapia uma vez, não funcionou. Quantos anos você tinha? 17. E agora você tem 34.
A mãe lhe lançou um olhar significativo. Muita coisa muda em 17 anos, inclusive a gente. Carol não respondeu, mas as palavras da mãe ficaram ecoando em sua mente pelo resto do dia. Naquela noite, quando Gustavo voltou do escritório, encontrou Carol sentada na cama, abraçando os joelhos. Ei! Ele se sentou ao lado dela.
Tudo bem? Contei para minha mãe sobre você sabe. Gustavo assentiu esperando. Ela disse que eu preciso de terapia. Carol olhou para ele. O que você acha? Eu acho. Ele escolheu as palavras com cuidado. Eu acho que seria bom para você e para nós. Você não está cansado de esperar, de ter paciência, de Carol. Gustavo a interrompeu, segurando seu rosto entre as mãos. Eu vou dizer isso quantas vezes forem necessárias.
Eu te escolhi. Escolhi você sabendo que o caminho seria difícil e eu escolheria de novo amanhã e todos os dias depois. Ela fechou os olhos, deixando as lágrimas caírem. Tá bom, sussurrou. Eu vou procurar uma terapeuta. Gustavo sorriu, um sorriso pequeno, mas cheio de esperança.
Nenhum dos dois sabia que antes que Carol pudesse dar esse passo, o passado de Gustavo reapareceria de uma forma que nenhum deles esperava. E a mensageira dessa revelação seria a pessoa mais improvável, a própria cunhada de Carol. Patrícia a procurou duas semanas depois, quando dona Lúcia já estava bem o suficiente para voltar à Diamantina.
A cunhada de Carol, esposa de Rafael, o irmão de Gustavo, marcou um encontro em uma cafeteria elegante nos jardins. Quando Carol chegou, encontrou Patrícia já sentada em uma mesa no fundo, mexendo nervosamente em uma xícara de cappuccino. “Obrigada por vir”, disse Patrícia quando Carol se sentou. “Você me deixou curiosa”, Carol fez sinal para o garçom. “Café expresso, por favor.
” Voltou-se para a cunhada no telefone. “Você pareceu preocupada. Patrícia olhou ao redor como se verificasse se alguém estava ouvindo. O que eu vou te contar é complicado e eu não sei se é da minha conta, mas Patrícia, o que está acontecendo? A outra mulher respirou fundo. Eu sei sobre você. Carol enrijeceu. O que você sabe sobre mim? Sei o que aconteceu quando você era adolescente.
Patrícia ergueu a mão rapidamente quando Carol abriu a boca. Dona Marta deixou escapar outro dia. Ela ouviu uma conversa sua com Gustavo pelo telefone. Não me orgulho de como fiquei sabendo. O café de Carol chegou, mas ela não tocou na xícara. E o que isso tem a ver com você querer me ver? Patrícia hesitou por um longo momento.
Quando falou, sua voz era quase um sussurro. Porque aconteceu comigo também? O mundo pareceu congelar. Carol ficou olhando para a cunhada, processando as palavras. O quê? Na faculdade. Eu tinha 20 anos. Patrícia engoliu em seco. Demorei três anos para contar ao Rafael. Três anos de pesadelos, de pânico, de me sentir suja. A voz dela falhou.
Então, quando soube sobre você, eu entendi e quis que você soubesse que não está sozinha. Carol estendeu a mão e segurou-a de Patrícia. As duas mulheres ficaram ali conectadas por uma dor que transcendia palavras. Obrigada por me contar”, disse Carol finalmente. Patrícia assentiu enxugando os olhos. “Mas não foi só por isso que eu quis te ver?” “Não, não.
” Patrícia olhou ao redor novamente, baixando ainda mais a voz. Semana passada eu estava em uma cafeteria na Vila Madalena e vi uma mulher. Que mulher? “Uma mulher com um adolescente, um menino de uns 14, 15 anos.” Patrícia fez uma pausa significativa. Um menino com olhos verdes, do mesmo verde que os olhos de Gustavo. Carol sentiu o sangue gelar nas veias.
O que você está dizendo? Eu conheço a história, Carol. Todo mundo na família conhece, ou pelo menos os pedaços dela. A ex-namorada que sumiu grávida. Gustavo procurando por meses sem encontrar. Patrícia se inclinou para a frente. Eu acho que ela está aqui em São Paulo com o filho dele. O caminho de volta para casa foi um borrão.
Carol dirigiu no automático, a mente em turbilhão. Fernanda estava em São Paulo com um filho. Um filho que podia ser de Gustavo. Ao chegar no apartamento, encontrou o marido trabalhando no escritório. Ele ergueu os olhos quando ela entrou e imediatamente percebeu que algo estava errado.
Carol, o que aconteceu? Ela contou tudo sobre o encontro com Patrícia, sobre a revelação na cafeteria, sobre os olhos verdes do adolescente. Gustavo ouviu em silêncio, o rosto se tornando cada vez mais pálido. Quando Carol terminou, ele estava de pé, as mãos tremendo. Tem certeza? A Patrícia tem certeza? Ela pareceu bem certa. Gustavo caminhou até a janela, passando a mão pelo cabelo.
Carol podia ver a tensão em seus ombros, o conflito em cada linha de seu corpo. 14 anos disse ele baixinho. Meu Deus, 14 anos. Carol se aproximou, mas não o tocou. O que você quer fazer? Ele se virou para encará-la. Nos olhos dele havia medo, esperança, dor. Tudo misturado numa tempestade de emoções. Eu preciso saber. Você entende? Eu preciso, eu entendo.
Mas e nós? E o nosso casamento? Isso pode, Gustavo? Carol o interrompeu, segurando seu rosto entre as mãos. Um gesto que ela raramente fazia, mas que naquele momento pareceu necessário. Você me esperou. Está me esperando. Deixa eu fazer o mesmo por você. Ele fechou os olhos, uma lágrima escapando. “Eu te amo”, disse ela.
“E família não é só sangue, é escolha. Você me ensinou isso. Nos dias seguintes, Gustavo contratou um detetive particular, o mesmo que havia usado anos atrás sem sucesso. Dessa vez, com a pista de que Fernanda estava em São Paulo, a busca foi mais rápida. Três dias depois, o detetive entregou um endereço. Fernanda morava na Vila Mariana.
Trabalhava como arquiteta em um escritório pequeno. E o adolescente que Patrícia havia visto se chamava Lucas. Lucas, o filho que Gustavo nunca conheceu. O primeiro encontro aconteceu em uma cafeteria perto do escritório de Fernanda. Gustavo foi sozinho. Carol insistiu que aquele momento era dele e dele apenas. Quando voltou para casa, muitas horas depois, estava transfigurado.
Chorou nos braços de Carol como uma criança, contando fragmentos da história entre soluços. Fernanda não havia fugido por escolha. Os pais a haviam isolado durante toda a gravidez, convencendo-a de que Gustavo não a queria, que ele a abandonaria se soubesse do bebê.
Ela havia criado Lucas sozinha, sem apoio familiar, tendo que trancar a faculdade por 3 anos. Quando finalmente reuniu coragem para procurar Gustavo, ele já havia mudado de número de endereço de escritório. E Lucas, Lucas era a imagem do pai. tinha os mesmos olhos verdes, o mesmo sorriso torto, a mesma paixão por futebol. “Ele me odeia?”, perguntou Carol hesitante.
“Não.” Gustavo balançou a cabeça. “Ele é ele é curioso, assustado, mas não me odeia. E Fernanda também não. Ela entende que nós dois fomos vítimas da família dela. Nas semanas seguintes, os encontros entre Gustavo e Lucas se tornaram regulares. Cinema no shopping e Guatemi, passeios no Parque Ibi Birapuera, jogos do Corinthians no Itaquerão.
Aos poucos, pai e filho começaram a construir a relação que haviam perdido. Carol observava de longe, dividida entre apoiar o marido e lidar com seus próprios sentimentos. Havia noites em que Gustavo voltava tão cheio de histórias sobre Lucas que mal conseguia falar de outra coisa. E Carol sorria, concordava, fazia perguntas, mas por dentro uma voz sussurrava que ela estava sendo deixada para trás.
O que ela não sabia era que o destino ainda guardava uma prova muito maior, uma prova que chegaria com uma ligação telefônica no meio da noite, três meses depois. O telefone de Gustavo tocou às 3 da manhã. Carol acordou sobressaltada, o coração disparado. Ao seu lado, Gustavo tatiou o criado mudo, encontrou o celular e atendeu com a voz grog de sono.
Alô? O que quer que a pessoa do outro lado disse? Fez Gustavo se sentar na cama como se tivesse levado um choque elétrico. O quê? Quando ele está, uma pausa. Tá, tá, estou indo. Desligou e já estava de pé, procurando roupas no escuro. Gustavo, o que aconteceu? É o Lucas. A voz dele estava estranha, controlada demais, como se qualquer emoção pudesse fazê-lo desmoronar. Fernanda ligou.
Ele desmaiou no colégio ontem. Levaram para o hospital, fizeram exames e Gustavo parou de se vestir, as mãos tremendo sobre os botões da camisa. Leucemia, leucemia, mieloide aguda. O mundo pareceu inclinar-se. Carol se levantou, as pernas bambas. Ohó, meu Deus, precisa de transplante de medula. Fernanda não é compatível.
Os pais dela também não. Gustavo finalmente conseguiu abotoar a camisa, os movimentos mecânicos. Eu preciso ir. Preciso fazer o teste. Eu vou com você. Ele hesitou, olhando para ela pela primeira vez desde que o telefone tocou. Tem certeza? Carol pegou as próprias roupas, começando a se vestir. Lucas é família e família fica junto.
O hospital das clínicas estava movimentado mesmo aquela hora. Carol e Gustavo encontraram Fernanda na sala de espera do Pronto Socorro. Uma mulher de cabelos castanhos e olhos castanhos, mais velha do que nas fotos das cartas, com olheiras profundas e um ar de desespero controlado. Gustavo, ela se levantou quando os viu. Obrigada por vir. Onde ele está? Na enfermaria.
Sedado. Ele A voz de Fernanda falhou. Ele está com medo. Carol observou a ex-namorada do marido. Era estranho finalmente conhecer a mulher das cartas. a mulher que havia amado Gustavo, que havia gerado o filho dele, que havia desaparecido por 14 anos. Em outras circunstâncias, talvez sentisse ciúme, ressentimento, raiva, mas ali, naquela sala de espera de hospital, tudo que conseguia sentir era compaixão. “Eu sou a Carol”, disse estendendo a mão.
Esposa do Gustavo. Fernanda a estudou por um momento, depois apertou sua mão. “Eu sei quem você é. Gustavo fala muito de você. As horas seguintes foram um borrão de exames, consultas e espera. Toda a família de Gustavo foi convocada para fazer testes de compatibilidade. Dona Marta chegou de Campinas antes do amanhecer, seguida por seu Antônio e Rafael.
Até primos distantes foram contactados e um por um, os resultados foram chegando. Gustavo, incompatível. Dona Marta incompatível. Seu Antônio, incompatível. Rafael, incompatível. Carol viu o desespero crescer nos olhos de Fernanda a cada resultado negativo. Viu Gustavo se afastar cada vez mais, como se seu corpo estivesse ali, mas sua mente estivesse em outro lugar, um lugar escuro, cheio de culpa e medo.
Foi Rafael quem teve a ideia. E o Jorge? Perguntou durante uma das interináveis esperas. O primo Jorge de Ribeirão Preto. Gustavo franziu a testa. O que tem ele? Ele tem tipo sanguíneo raro, igual ao papai. Lembra que a gente descobriu isso naquela doação de sangue da igreja? Uma luz de esperança se acendeu. Ligações foram feitas.
Jorge, um engenheiro agrônomo de 45 anos que mal conhecia Gustavo, pegou o primeiro ônibus para São Paulo. O teste de Jorge deu 80% de compatibilidade. Não era perfeito, mas era o suficiente. Lucas tinha uma chance. Os meses seguintes foram um inferno particular envolvidos. Lucas passou por ciclos brutais de quimioterapia.
Perdeu o cabelo, perdeu o peso, perdeu a energia de adolescente que Carol havia visto nos poucos encontros que tiveram, mas não perdeu o espírito. Mesmo nos dias mais difíceis, conseguia fazer piadas fracas, perguntar sobre futebol, pedir para ver vídeos no celular. Gustavo praticamente se mudou para o hospital.
Dormia em cadeiras desconfortáveis, tomava café de máquina, usava as mesmas roupas por dias seguidos. Estava lá quando Lucas acordava de madrugada assustado. Estava lá quando as enfermeiras trocavam os curativos. Estava lá para cada pequena vitória e cada retrocesso devastador. E Carol, Carol estava em casa. Não por escolha inicialmente.
Alguém precisava manter a vida funcionando, trabalhar, pagar contas, cuidar do apartamento. Mas conforme as semanas se transformavam em meses, ela começou a perceber que estava sendo deixada para trás. Gustavo ligava menos. Quando ligava, só falava de Lucas. Os jantares românticos acabaram. As conversas no fim do dia acabaram.
A dança delicada que haviam desenvolvido, as perguntas, os toques negociados, o cuidado mútuo acabou. Carol começou a se sentir invisível. Havia noites em que ela ficava acordada no apartamento vazio, olhando para o teto, perguntando-se se havia perdido o marido. Não para outra mulher, exatamente, embora Fernanda estivesse lá, sempre lá, dividindo aquele espaço de dor com Gustavo, de uma forma que Carol nunca poderia perdê-lo para o passado, para a culpa, para um filho que ele não sabia que existia.
Uma noite, Gustavo não voltou para casa. ligou de madrugada, a voz exausta, explicando que Lucas havia tido uma crise e que ele não podia sair. Carol desligou o telefone e chorou sozinha, no escuro até o sol nascer. No dia seguinte, tomou uma decisão. A cafeteria do hospital estava quase vazia quando Carol encontrou o Gustavo.
Ele estava sentado em uma mesa no canto, as mãos em volta de uma xícara de café frio, os olhos fixos no nada. Gustavo. Ele ergueu os olhos e Carol viu o quanto estava destruído. Barba por fazer, olheiras profundas, roupas amassadas. Parecia ter envelhecido 10 anos em poucos meses.
“Carol, o que você está fazendo aqui? Precisava falar com você.” Ela se sentou à frente dele, olho no olho. Ele franziu a testa confuso. Aconteceu alguma coisa? Aconteceu. Ela respirou fundo, reunindo coragem. Eu me sinto invisível, Gustavo. Ele piscou sem entender. O quê? Invisível? Nos últimos três meses, eu virei um fantasma na sua vida. Sei que Lucas é prioridade.
Claro que é. Ele está doente, está lutando pela vida, mas eu também estou aqui. Estou aqui tentando apoiar, tentando ajudar e me sinto como se não existisse. Gustavo abriu a boca para responder, mas Carol ergueu a mão. Deixa eu terminar, por favor. Ele sentiu calado. Eu entendo que você precisa estar com seu filho. Eu nunca jamais pediria para você escolher entre mim e ele.
Mas preciso que você entenda que eu também preciso de você, mesmo que seja só uma ligação, um como você está. Qualquer coisa que me lembre que eu ainda importo. Lágrimas escorriam pelo rosto de Carol, mas ela não tentou secá-las. Eu te amo, Gustavo, e estou disposta a passar por isso junto com você, mas não invisível, não como se eu fosse apenas um detalhe na sua vida.
O silêncio que se seguiu durou uma eternidade. Gustavo a olhava como se a visse pela primeira vez em meses. Então ele desabou. Perdão. A palavra saiu embargada, acompanhada de lágrimas que ele não tentou esconder. Perdão por ter sido um idiota egoísta. Perdão por ter esquecido de cuidar de você enquanto tentava cuidar de todo mundo. Carol estendeu a mão e segurou a dele.
Eu estava tão focado em compensar 14 anos de ausência, continuou Gustavo, que esqueci que tenho uma vida, uma esposa, um casamento que precisa de atenção. Ele apertou a mão dela. Você não é invisível. Você é a razão pela qual eu ainda estou de pé e eu vou fazer melhor, prometo. Naquela noite, pela primeira vez em semanas, Gustavo voltou para casa.
Dormiu abraçado a Carol, o rosto afundado em seu cabelo, murmurando pedidos de desculpa até adormecer. E Carol finalmente deixou-se acreditar que eles sobreviveriam aquilo. O transplante de Lucas estava marcado para a semana seguinte. O dia do transplante amanheceu cinzento em São Paulo. Uma garoa fina cobria a cidade, transformando as ruas em espelhos molhados que refletiam as luzes dos carros. Na sala de espera do Hospital das Clínicas, uma multidão silenciosa se reuniu.
Gustavo e Carol ocupavam um canto de mãos dadas. Fernanda estava ao lado deles, os olhos fixos na porta que levava a ala de transplantes. Dona Marta rezava baixinho, um terço entre os dedos. Seu Antônio segurava a mão da esposa com a firmeza de quem já enfrentou muitas tempestades. E em algum lugar do outro lado daquela porta, Lucas estava sendo preparado para o procedimento que poderia salvar sua vida.
George, o primo distante que havia se tornado improvável herói, estava em outro andar, fazendo a doação de Medula. Era um homem quieto, de poucas palavras, que havia aceitado a missão com a simplicidade de quem sabe que algumas coisas simplesmente precisam ser feitas. As horas se arrastaram como séculos. Carol observava a família de Gustavo, aquela família que a havia pressionado, incomodado, feito perguntas invasivas.
Ali, naquela sala de espera, eram apenas pessoas aterrorizadas, unidas pela esperança de que uma criança sobrevivesse. Dona Marta terminou o terço e começou outro. Seu Antônio levantou para buscar café e voltou com copos para todos. Rafael, que havia chegado mais tarde, estava anormalmente quieto, sentado ao lado de Patrícia.
E então, 5 horas depois o médico apareceu. Todos se levantaram ao mesmo tempo, como marionetes puxadas pelo mesmo fio. “O transplante foi bem-sucedido”, disse o médico. “Agora precisamos esperar para ver como o corpo dele reage.” O alívio foi físico. Fernanda desabou em uma cadeira, soluçando.
Gustavo abraçou Carol tão forte que ela quase não conseguia respirar. Dona Marta ergueu as mãos para o céu, agradecendo em voz alta a todos os santos que conhecia, mas a espera ainda não havia acabado. As semanas seguintes foram uma montanha russa. Lucas tinha dias bons e dias horríveis, dias em que sorria e pedia pizza e dias em que mal conseguia abrir os olhos.
Os médicos monitoravam cada exame, cada contagem de células, cada sinal de que o corpo dele estava aceitando ou rejeitando a nova medula. Carol visitava sempre que podia. No início, Lucas a recebia com a desconfiança natural de um adolescente que não a conhecia. Mas aos poucos, conforme as conversas se acumulavam, algo começou a mudar. Foi durante uma dessas visitas que Carol mencionou a fazenda.
Você cresceu em uma fazenda? perguntou Lucas, os olhos arregalados de interesse. Cresci em Diamantina, no interior de Minas, a fazenda da minha mãe. Sério? Como era? Carol se viu sorrindo com a memória. Tinha cavalos, vacas, pés de café, até onde a vista alcançava. Eu acordava com o galo cantando e dormia olhando as estrelas. Você sabia andar a cavalo? Aprendi antes de andar de bicicleta.
Os olhos de Lucas brilharam, uma faísca de vida que ela não via há semanas. sempre quis aprender a montar”, disse ele baixinho. “Parece tão livre”. Carol hesitou apenas um segundo antes de responder. “Quando você melhorar, eu te ensino.” Lucas a encarou como se me disse a sinceridade da promessa. Você promete? Prometo. Aquele momento, pequeno, quase insignificante, no meio de tanta dor, criou uma conexão que Carol não esperava.
Nas visitas seguintes, Lucas passou a perguntar sobre a fazenda, sobre os cavalos, sobre a vida no interior e Carol contava, elaborando histórias, descrevendo cores e cheiros e sensações, criando um mundo de fantasia que ajudava o garoto a escapar das paredes brancas do hospital. Gustavo notou a mudança. Ele gosta de você, disse uma noite, no caminho de volta para casa. Carol deu de ombros. Ele gosta das minhas histórias.
Não, ele gosta de você. Gustavo pegou a mão dela. E eu amo você por isso, por dar a ele algo que eu não conseguiria. Sete semanas depois do transplante, os médicos deram a notícia que todos esperavam. A medula pegou. Lucas está em remissão. A comemoração foi contida. Afinal, ainda estavam no hospital, mais intensa. Fernanda chorou de alívio.
Gustavo ergueu o filho nos braços como se ele ainda fosse um bebê e não um adolescente de 14 anos. Dona Marta jurou acender velas em todas as igrejas de Campinas. E Lucas, ainda fraco, ainda careca, ainda com muito caminho pela frente, sorriu. Um sorriso genuíno de quem finalmente via luz no fim do túnel.
“E a fazenda?”, perguntou ele para Carol quando os adultos se dispersaram. “Você ainda vai me ensinar a montar?” Carol se inclinou e beijou a testa dele. “Assim que você tiver alta, a gente marca.” Uma semana depois, Lucas recebeu alta hospitalar.
A família toda se reuniu no apartamento de Fernanda, na Vila Mariana, para uma festa de boas-vindas, simples, sem exageros, com coxinha, pão de queijo e bolo de cenoura. Carol olhou ao redor da sala lotada e percebeu, com uma pontada de surpresa, que se sentia em casa. Não era a família que ela havia imaginado quando se casou. Era mais complicada, mais barulhenta, mais cheia de arestas, mas era dela.
E quando Lucas a abraçou ao se despedir, um abraço desajeitado de adolescente, mais sincero, Carol soube que algo fundamental havia mudado. Ela não estava mais invisível, mas ainda faltava uma peça do quebra-cabeça, uma peça que só ela poderia encontrar. Um mês depois da alta de Lucas, Gustavo apareceu em casa com duas passagens aéreas. Búzios”, anunciou, entregando os bilhetes para Carol. “Uma semana, só nós dois”.
Carol olhou para as passagens, depois para o marido. “E o trabalho?” “E Lucas? O trabalho pode esperar. Lucas está bem. Fernanda cuidando dele e ele tem a escola para se distrair.” Gustavo se aproximou, segurando o rosto dela entre as mãos. Nós precisamos disso. Você precisa disso. Eu preciso disso, Gustavo.
Carol, faz quase um ano que a gente se casou. E qual foi o nosso momento? A noite de Núcias que não aconteceu, os meses de adaptação. Minha família, o segredo de Fernanda, a doença de Lucas. Ele a encarou com intensidade. Eu quero um momento nosso, só nosso, por favor. Carol sentiu os olhos arderem.
Tantas coisas haviam acontecido desde aquela noite em Parati. Tantas reviravoltas, tantas dores, tantas descobertas. E durante todo esse tempo eles haviam permanecido juntos, cambaleando às vezes, perdidos outras, mas juntos. Tá bom, disse ela. Finalmente. Vamos para Búzios. A pousada tinha vista para a praia de Jibá. O quarto era pequeno, mas charmoso.
Paredes brancas, cama com lençóis de linho, uma varanda onde o sol da tarde pintava tudo de dourado. Carol ficou parada na porta. Observando a cena. Era bonito demais, perfeito demais. E por um momento, o medo antigo, aquele medo que morava nos ossos dela há 19 anos, ergueu a cabeça. Ei, Gustavo apareceu atrás dela, apoiando as mãos em seus ombros. Você está tremendo. Eu sei.
Quer ir embora? A gente pode não. Carol se virou para encará-lo. Eu quero ficar. Eu quero. Ela respirou fundo. Eu quero tentar de novo, de verdade, dessa vez. Gustavo estudou o rosto dela por um longo momento. Tem certeza? Não. A honestidade da resposta surpreendeu a ambos, mas acho que nunca vou ter certeza.
E se eu ficar esperando a certeza, vou esperar para sempre. Naquela noite fizeram amor pela primeira vez. Não foi perfeito. Houve lágrimas de Carol e de Gustavo. Houve pausas. Momentos em que ela precisou respirar. Momentos em que o passado ameaçou engolir o presente. Houve medos antigos e culpas recentes. Mas houve também ternura. Houve paciência.
Houve Gustavo perguntando permissão a cada passo, checando se ela estava bem, lembrando-a de que estava segura. E no final, quando Carol finalmente se deixou entregar, sem que o pânico a paralisasse, sentiu algo que não sentia há quase duas décadas inteira. Ficaram na varanda até tarde, enrolados em um cobertor, observando as estrelas sobre o mar. “Acho que quero ter um filho com você”, disse Carol de repente.
Gustavo se virou para olhá-la, os olhos arregalados. “O quê? Eu disse que acho que quero ter um filho com você, Carol.” Ele parecia sem palavras. Você tem certeza? Depois de tudo que depois de tudo, por causa de tudo, ela se aninhou mais perto dele. Eu passei a vida inteira com medo. Medo de intimidade, medo de família, medo de perder o controle. Mas você me mostrou que é possível ter medo e fazer mesmo assim.
Carol, eu não estou dizendo que vai ser fácil. Eu sei que preciso de terapia. Eu sei que tenho muito trabalho a fazer. Ela ergueu os olhos para encará-lo. Mas eu quero fazer esse trabalho e quero fazer com você ao meu lado. Gustavo a beijou. Um beijo longo, profundo, cheio de promessas. “Eu te amo”, disse ele quando se separaram. “Eu também te amo.
” Ficaram ali até o sol começar a nascer, pintando o céu de rosa e laranja. E Carol, pela primeira vez em muito tempo, conseguiu imaginar um futuro, um futuro que não era perfeito, nem garantido, nem livre de dor, mas era possível. E naquele momento possível era o suficiente.
Três meses depois de Búzius, Carol estava no banheiro do apartamento segurando um teste de gravidez nas mãos trêmulas. Duas linhas, conferiu o manual, conferiu de novo, fez outro teste e outro. Seis linhas no total, três testes, todos positivos. Estava grávida. Gustavo chegou do trabalho às 8 da noite.
Encontrou Carol sentada no sofá, os três testes alinhados na mesa de centro como pequenos soldados. “Carol, você está”. Ela ergueu os olhos. Estava chorando, mas sorrindo ao mesmo tempo. Uma expressão que ele nunca tinha visto. Gustavo olhou para a mesa, viu os testes, as duas linhas em cada um. Ó, meu Deus. Pois é. Ele se sentou ao lado dela, as pernas bambas. Você está Nós vamos ter um bebê. É.
Carol soltou uma risada nervosa. Eu sei. Eu também não acredito. Gustavo a puxou para um abraço, apertando-a como se ela pudesse desaparecer. “Você está feliz?”, perguntou a voz abafada no cabelo dela. “Estou aterrorizada”, admitiu Carol. “Mas sim, estou feliz também.” A notícia se espalhou como fogo em palha seca. Dona Marta chorou ao telefone por 15 minutos seguidos, intercalando agradecimentos a todos os santos com instruções sobre alimentação durante a gravidez. Seu Antônio, homem de poucas palavras, limitou-se a dizer: “Bom,
muito bom.” Três vezes seguidas antes de passar o telefone de volta para a esposa. Rafael, claro, não perdeu a oportunidade de fazer piada. Caramba, irmão. Então ainda funciona. Pensei que você precisava de manual. Patrícia deu um tapa no braço do marido e abraçou Carol com lágrimas nos olhos.
Estou tão feliz por vocês. Dona Lúcia, quando soube, pegou o primeiro ônibus para São Paulo. Chegou com duas malas cheias de roupas de bebê que havia tricotado nos últimos anos, porque uma mãe sabe dessas coisas e uma lista de nomes que julgava adequados para seu futuro neto ou neta. E Lucas, Lucas foi o que mais surpreendeu Carol.
“Vou ter um irmãozinho?”, perguntou ele quando Gustavo contou. Os olhos verdes, tão parecidos com os do pai. brilhavam de uma forma que ela nunca tinha visto ou irmãzinha, ainda não sabemos, mas vai ser meu irmão de verdade, tipo de sangue? Gustavo hesitou, trocando um olhar com Carol. Meio irmão, tecnicamente, disse Carol suavemente. Mesmo pai, mães diferentes.
Lucas ficou em silêncio por um momento, processando. Então, abriu um sorriso enorme. Sempre quis ter um irmão. Cresci sozinho, sabe? Era só eu e minha mãe. Ele se virou para Carol. Você pode me ensinar a trocar fralda? Quero ajudar. Carol sentiu o coração apertar de uma forma boa. Claro que posso. A gravidez não foi fácil.
Carol desenvolveu pressão alta no terceiro mês e foi colocada em acompanhamento de risco. Visitas semanais ao obstetra, repouso relativo, dieta controlada. Ela também começou terapia. Finalmente, a psicóloga se chamava Torapura Helena, uma mulher de 60 anos com olhos bondosos e uma calma inabalável que atendia em um consultório aconchegante em Higienópolis.
Nas sessões, Carol falou sobre tudo: o trauma da adolescência, a perda do pai, os anos de silêncio e vergonha, o medo da intimidade, o casamento com Gustavo, a gravidez. “Você percebe o padrão?”, perguntou a Dra. a Helena em uma sessão, meses depois. Que padrão, controle. Você passou a vida inteira tentando controlar tudo ao seu redor. E sabe por quê? Carol balançou a cabeça.
Porque naquela noite, quando você tinha 15 anos, você perdeu completamente o controle. Alguém tomou de você a capacidade de decidir sobre o próprio corpo. E desde então você tem tentado reconquistar esse controle de qualquer forma possível. As palavras atingiram Carol como um soco.
Mas controle excessivo também é uma prisão”, continuou a terapeuta. “Porque a vida não pode ser controlada, o amor não pode ser controlado.” “E uma criança, Carol?”, ela sorriu gentilmente. “ma criança vai virar sua vida de cabeça para baixo de formas que você nem imagina”. Carol chorou durante toda a sessão e, pela primeira vez sentiu que estava realmente começando a curar. Gustavo também fez terapia.
Terapia individual para lidar com a culpa de ter sido ausente na vida de Lucas por 14 anos e terapia de casal com Carol para fortalecer os alicerces do casamento antes da chegada do bebê. “Vocês construíram algo bonito”, disse a terapeuta de casal em uma das últimas sessões. “Não foi fácil, não foi rápido, mas foi real, e isso é o que importa”.
Carol olhou para Gustavo, sentado ao seu lado no sofá do consultório. Pensou em tudo que haviam passado juntos. A noite de Núciassias em Parati, as cartas de Fernanda, a doença de dona Lúcia, a descoberta de Lucas, a leucemia, a viagem abúzios, a gravidez. Era surreal e era perfeito. “Estamos prontos”, disse ela, “maais para si mesma do que para qualquer outra pessoa.” E pela primeira vez realmente acreditava nisso.
O parto durou 12 horas. Começou às 3 da manhã quando Carol acordou com uma câimbra que não era câimbra. Gustavo a levou para o hospital Albert Einstein, onde a equipe médica já estava de plantão, alertada pela obstetra devido ao histórico de pressão alta.
As horas seguintes foram uma tortura e uma bênção, dor intensa, intervalos de alívio, enfermeiras entrando e saindo. Gustavo segurando sua mão com tanta força que ela jurou que sairia com os ossos quebrados. E então, às 3:15 da tarde, Pedro veio ao mundo. Era um menino pequeno, com cabelos escuros como os da mãe, e olhos que ainda não haviam decidido sua cor definitiva.
Chorou forte ao nascer, um choro saudável que encheu a sala de parto. Gustavo chorou também. Carol, exausta demais para lágrimas, apenas sorriu enquanto depositavam o bebê em seu peito. “Oi, Pedro”, sussurrou ela. “Preazer em conhecer você. Os primeiros dias foram um caos de fraldas, mamadeiras, noites sem dormir e visitas intermináveis.
Dona Marta se instalou no apartamento para ajudar e passou a maior parte do tempo criticando a forma como Carol segurava o bebê, a temperatura do leite, a organização do quarto. Dona Lúcia chegou dois dias depois e iniciou uma guerra fria, silenciosa com a Consuegra, disputando quem conseguia fazer Pedro dormir mais rápido.
Rafael apareceu com os filhos que olharam para o primo recém-nascido com a indiferença brutal das crianças. Patrícia trouxe roupas de bebê e olhares de compreensão. Fernanda mandou flores e um cartão elegante, desejando felicidades. E Lucas? Lucas apareceu no terceiro dia sozinho, com um embrulho desajeitado nas mãos. “Posso entrar?”, perguntou ele da porta do quarto. Carol estava sentada na cama com Pedro adormecido nos braços.
Claro que pode. O adolescente se aproximou devagar, como se tivesse medo de fazer muito barulho. Parou ao lado da cama e ficou olhando para o irmão com uma expressão de reverência. Ele é tão pequeno sussurrou. Você também era assim quando nasceu disse Carol suavemente. Lucas ergueu os olhos surpreso.
Você acha? Tenho certeza. Ela fez um gesto com a cabeça. Quer segurar? Posso? Pode. Com cuidado extremo, Carol transferiu Pedro para os braços de Lucas. O adolescente ficou imóvel, mal ousando respirar, enquanto olhava para o rosto adormecido do irmão. “Oi, Pedrinho”, disse ele baixinho. “Sou o Lucas, seu irmão mais velho. Uma pausa.
Vou te proteger sempre, tá?” Prometo. Que a Roll sentiu os olhos arderem. Ali estava um garoto de 15 anos que havia enfrentado leucemia, que havia crescido sem pai, que havia descoberto uma família nova apenas dois anos antes e agora segurava o irmão recém-nascido como se fosse a coisa mais preciosa do mundo. “Você vai ser um ótimo irmão”, disse ela. Lucas sorriu, um sorriso genuíno, sem defesas.
“Você vai ser uma ótima mãe.” E naquele momento, Carol soube que estava em casa. Os meses seguintes foram uma mistura de exaustão e alegria. Pedro era um bebê saudável, mas exigente. Chorava muito, dormia pouco e parecia ter um radar especial para detectar quando Carol estava prestes a descansar. A terapia continuou, mesmo com todas as dificuldades.
A doutorar Helena adaptou os horários, fez algumas sessões por videochamada e continuou guiando Carol através das camadas de trauma que ainda persistiam. Ser mãe está trazendo à tona muitas coisas”, admitiu Carol em uma sessão quando Pedro tinha quatro meses. Medos que eu achava que tinha superado, memórias que não queria ter. “É normal”, disse a Dra. Helena.
“A maternidade nos coloca em contato com nossa própria infância de formas muito profundas. Você está revivendo sua relação com sua mãe, com seu pai ausente, com a adolescente que sofreu o trauma. E como eu lido com isso! Um dia de cada vez! reconhecendo os gatilhos, pedindo ajuda quando precisar. A terapeuta sorriu e lembrando que você não está sozinha.
Tem um marido que te apoia, uma mãe que te ama e agora um filho que depende de você, mas que também te dá força. Carol pensou em Pedro, no sorriso desdentado que ele havia começado a dar, no cheiro de bebê que ela não se cansava de aspirar, na forma como ele agarrava seu dedo com toda a força de sua mãozinha minúscula.
Ele me dá força, concordou, mais do que eu imaginava ser possível. Quando Pedro completou um ano, a família se reuniu para uma festa pequena no apartamento. Bolo de chocolate, balões coloridos, parabéns a você. Cantado em couro desafinado. Carol olhou ao redor da sala lotada, Gustavo segurando Pedro, que tentava enfiar o dedo na cobertura do bolo.
Dona Marta tirando fotos com o celular, dona Lúcia rindo de algo que seu Antônio havia dito. Rafael fazendo graça com os filhos. Patrícia, conversando com Fernanda, as duas mulheres haviam desenvolvido uma amizade improvável ao longo do último ano, Lucas ensinando um dos primos mais novos a jogar videogame. Era barulhento, caótico, imperfeito, e era exatamente o que Carol sempre havia desejado sem saber.
“Em que você está pensando?”, perguntou Gustavo, aproximando-se com Pedro no colo. “Em como cheguei aqui?” “Aqui onde? Aqui?” Ela fez um gesto abrangente indicando a sala. as pessoas, a vida que haviam construído. Há dois anos, eu estava aterrorizada com a ideia de intimidade. Agora tenho um marido, um filho, um intiado e uma sogra que não para de me dar palpite sobre a alimentação infantil. Gustavo Rio.
Se serve de consolo, ela também não para de me dar palpites. Serve. Carol se inclinou para beijar Pedro na testa. Serve muito. Dois anos depois do primeiro aniversário de Pedro, a vida havia encontrado um ritmo estável. Carol era agora diretora regional da empresa, comandando equipes em quatro estados.
O trabalho era intenso, mas gratificante, e ela havia aprendido a estabelecer limites, a delegar, a não se perder na busca pela perfeição. Gustavo havia se tornado sócio sênior do escritório, mas trabalhava menos horas do que antes. Tinha decidido, com o apoio de Carol e da terapeuta, que queria estar presente para a família de uma forma que não havia conseguido com Lucas.
Lucas, por sua vez, havia crescido de forma impressionante. Aos 18 anos, era um jovem alto, bonito, com os olhos verdes do pai e a determinação da mãe. Tinha passado no vestibular para engenharia na Polyp, realização que encheu Gustavo de orgulho, e namorava uma menina chamada Júlia, que cursava medicina. A relação com Fernanda havia se estabilizado em algo que Carol nunca teria imaginado possível, uma amizade respeitosa.
Fernanda também havia seguido em frente, namorando um arquiteto do escritório onde trabalhava. Vez ou outra, os quatro saíam para jantar, Gustavo e Carol Fernanda e Marcos, em uma configuração familiar moderna que faria qualquer novela das nove parecer conservadora.
Dona Lúcia havia se mudado para São Paulo definitivamente, instalando-se em um apartamento pequeno perto de Pinheiros. Sua saúde estava estável e ela passava os dias dividindo-se entre cuidar de Pedro, cozinhar para a família e implicar com dona Marta por telefone. E Pedro. Pedro era um menino de 3 anos, risonho e tagarela, que havia herdado os olhos escuros da mãe, o sorriso torto do pai e a energia de uma usina nuclear.
corria pelo apartamento destruindo tudo em seu caminho, fazia perguntas incessantes sobre o funcionamento do universo e idolatrava o irmão mais velho com uma devoção quase religiosa. Era uma vida boa, uma vida plena e estava prestes a mudar novamente. A reunião de família aconteceu na casa de Campinas em um domingo ensolarado de julho.
Era o aniversário de seu Antônio, 75 anos, e a família inteira havia se mobilizado para uma festa surpresa. O jardim estava decorado com balões prateados. A churrasqueira fumegava sob o comando de Rafael. As crianças corriam entre as árvores e os adultos se dividiam entre conversas e copos de cerveja gelada.
Carol estava sentada na varanda observando Pedro brincar com os primos no gramado. Quando Gustavo apareceu ao seu lado. Posso falar com você? Um minuto. Algo no tom dele a fez franzir a testa. Claro. O que foi? Não, aqui. Vem comigo. Ela o seguiu para dentro da casa até o escritório de seu Antônio. Um cômodo que cheirava a charutos antigos e livros mofados.
Gustavo fechou a porta atrás deles e se virou para encará-la. Gustavo, você está me assustando? Ele respirou fundo. Tenho uma coisa para te contar e uma coisa para te dar. Tá. A coisa para te contar primeiro. Ele engoliu em seco. Lembra da fazenda da sua mãe? A que ela vendeu para pagar a cirurgia? Carol sentiu o estômago apertar. Claro que lembro. Eu comprei de volta. O mundo pareceu parar.
Você o quê? A fazenda Boa Esperança. Entrei em contato com o seu Joaquim, o vizinho que tinha comprado. Ele queria vender porque não estava conseguindo cuidar de tanta terra. Usei o dinheiro dos últimos casos grandes e fechei negócio mês passado. Carol abriu a boca, fechou, abriu de novo. Gustavo, ele tirou uma pasta do armário atrás dele e entregou para ela.
A escritura está no seu nome e no nome do Pedro. É da família de vocês. Carol abriu a pasta com as mãos tremendo. Ali estava preto no branco. A escritura da fazenda Boa Esperança em Diamantina, Minas Gerais. propriedade de Carolina Santos Machado e Pedro Santos Machado.
As lágrimas começaram antes que ela pudesse contê-las. Como? Quando? Por quê? Gustavo se aproximou, segurando o rosto dela entre as mãos. Porque aquela terra é parte de quem você é. Porque foi lá que sua mãe te criou, que seu pai viveu os últimos anos, que você aprendeu a andar a cavalo.
E porque eu quero que Pedro tenha isso também, raízes, história, um lugar para onde voltar. Carol o abraçou com toda a força que tinha, soluçando contra o peito dele. Eu te amo! Conseguiu dizer entre lágrimas. Eu te amo tanto. Eu te amo mais. Impossível. ficaram abraçados por um longo tempo, até que os soluços de Carol se transformaram em risadas, e as risadas em beijos e os beijos em planos sussurrados sobre o futuro.
Quando finalmente saíram do escritório de mãos dadas, toda a família estava esperando do lado de fora, claramente informada do segredo. Dona Lúcia foi a primeira a correr até a filha, abraçando-a com lágrimas nos olhos. A fazenda disse a mãe. Minha menina, a fazenda. Eu sei, mãe, eu sei.
A festa de aniversário de seu Antônio acabou se transformando em duas comemorações. Houve brindes, abraços, lágrimas e promessas de visitas à Diamantina assim que possível. E Carol, olhando ao redor para aquela família maluca e maravilhosa, sangue e escolha misturados em uma tapeçaria imperfeita, mas linda, sentiu uma paz que nunca imaginou ser possível.
Ela havia chegado em casa. Finalmente, as férias de julho chegaram e com elas a viagem para Diamantina. O grupo que partiu de São Paulo era uma caravana improvável, dois carros lotados, malas demais e uma energia elétrica de expectativa. No primeiro carro, Gustavo dirigia com Carol ao lado e Pedro no banco de trás, apertado entre a cadeirinha e uma pilha de brinquedos que ele havia insistido em levar.
No segundo, Lucas conduzia com dona Lúcia no banco do passageiro, a avó postiza que ele havia adotado nos últimos anos, dando instruções sobre cada curva da estrada que ela conhecia de cor. A viagem durou 7 horas, 7 horas de paisagens mutantes, a selva de concreto paulistana, dando lugar ao verde ondulado de Minas, as montanhas que se erguiam no horizonte, ao céu que parecia mais azul a cada quilômetro.
Quando finalmente avistaram a placa da fazenda Boa Esperança, Carol sentiu o coração apertar de uma forma que não conseguia explicar. A entrada era um caminho de terra ladeado por pés de café selvagem, não mais cultivados, mas ainda resistindo. A casa principal apareceu logo depois, com suas paredes brancas descascadas e telhado colonial, que precisava de reparos. Ao redor, campos se estendiam até onde a vista alcançava, verdes e dourados sob o sol da tarde.
Era exatamente como ela lembrava, e era completamente diferente. “Uau”, disse Pedro do banco de trás, os olhos arregalados. “A gente vai morar aqui” nas férias, respondeu Carol, a voz embargada. “É a fazenda da vovó Lúcia e tem cavalos?” “Vai ter. O primeiro dia foi dedicado à exploração.
Pedro correu por todos os cômodos da casa, descobrindo teias de aranha e trilhas de formigas com igual entusiasmo. Lucas fotografou cada ângulo da propriedade, já fazendo planos de engenheiro para reformas. Dona Lúcia caminhou pelos campos com os olhos marejados, tocando plantas e árvores, como quem reencontra velhos amigos. E Carol, Carol ficou parada na varanda, olhando para a terra que agora era sua de novo.
Em que você está pensando? Gustavo apareceu ao seu lado trazendo duas canecas de café feito no fogão a lenha que ainda funcionava milagrosamente. “No meu pai”, admitiu ela. Ele costumava ficar nesse exato lugar olhando para o pô do sol. Dizia que não existia vista melhor no mundo. Gustavo passou o braço pelos ombros dela. Ele tinha razão. O sol estava baixando no horizonte, pintando o céu de laranja e rosa.
Ao longe, podiam ouvir Pedro gritando algo sobre um sapo que havia encontrado. E Lucas rindo em resposta: “Obrigada”, disse Carol baixinho. “Pelo quê?” “Por me trazer de volta? Você que se trouxe de volta.” Gustavo beijou sua têmpora. Eu só comprei o ingresso. Os dias seguintes foram um turbilhão de trabalho e alegria. A casa precisava de mais reparos do que haviam imaginado.
Encanamentos antigos, fiação precária, cupins em algumas vigas. Mas a estrutura era sólida e com a ajuda de um empreiteiro local que dona Lúcia havia recomendado, começaram a planejar as reformas. Pedro se adaptou à vida rural com uma facilidade impressionante. Acordava cedo para ver os trabalhadores chegarem. fazia perguntas sobre cada ferramenta e se recusava a tomar banho no final do dia, alegando que fazendeiro de verdade é sujo.
Lucas se dividiu entre ajudar nos trabalhos físicos e estudar para uma prova de recuperação que havia ficado pendente. À noite sentava na varanda com dona Lúcia, ouvindo histórias sobre a fazenda nos tempos antigos, sobre o avô de Carol, que plantou as primeiras mudas de café, sobre o pai de Carol, que conheceu a mãe em uma festa junina no vilarejo vizinho, sobre a própria Carol correndo descalça pelos campos quando era menina.
“Você era terrível”, disse dona Lúcia uma noite, rindo da própria memória. Subia em todas as árvores, montava nos bezerros, desafiava os empregados para corridas. Seu pai dizia que você tinha nascido com o diabo no corpo. Carol, que estava ouvindo da porta, sorriu. Eu era feliz. Era. Dona Lúcia a olhou com ternura. E agora também é.
É diferente, mas é. Na última noite, fizeram uma fogueira no terreiro, o mesmo lugar onde, décadas atrás a família se reunia nas noites frias de julho. O fogo creptava, lançando faíscas para o céu estrelado. Pedro dormia no colo de Carol, exausto de um dia inteiro correndo atrás de galinhas. Lucas e dona Lúcia conversavam baixinho sobre receitas de bolo de fubá e Gustavo estava de pé, uma cerveja artesanal na mão, olhando para todos com uma expressão que Carol não conseguia decifrar. Então ele pigarreou, chamando
a atenção. Posso fazer um brinde? Todos se viraram para olhá-lo. Há 4 anos, começou Gustavo. Eu me casei com a mulher mais extraordinária que já conheci. Uma mulher que enfrentou seus piores medos, que se reconstruiu tijolo por tijolo, que me ensinou o verdadeiro significado de força. Carol sentiu os olhos arderem, mas não interrompeu.
Ela me ensinou que paciência não é fraqueza, é a maior prova de amor. Me ensinou que família não é só sangue, é escolha. E me ensinou que toda a história, não importa o quão difícil o começo, pode ter um final feliz. Ele ergueu a garrafa de cerveja por Carol, por nossa família. maluca e maravilhosa. E por todos os novos começos que ainda virão. Pela família, repetiram todos.
Até Lucas, que ergeu uma lata de refrigerante, e dona Lúcia, que brindou com sua xícara de chá. Carol olhou para cada um deles à luz da fogueira. Gustavo, que a havia esperado, Lucas, que a havia aceitado, Pedro, que dormia inocente de todos os dramas que os haviam trazido até ali, dona Lúcia, que havia sobrevivido para ver esse momento, e sentiu no fundo do peito uma certeza absoluta.
Ela estava onde deveria estar, com quem deveria estar, exatamente no momento certo. O fogo havia se transformado em brasas quando os últimos convidados foram dormir. Lucas carregou Pedro, ainda adormecido, para o quarto improvisado e dona Lúcia se retirou, murmurando algo sobre dores nas costas.
Carol e Gustavo ficaram sozinhos na varanda, enrolados em um cobertor, observando o céu começar a clarear no horizonte. “Você está quieta”, disse Gustavo depois de um longo silêncio. “Estou pensando em quê?” Carol respirou fundo, organizando os pensamentos. em todo o caminho até aqui, nos tremores daquela noite em Parati, no segredo que eu guardei por 19 anos, nas cartas que encontrei, na doença da minha mãe, em Lucas, na leucemia, em Búzios, em Pedro, ela fez uma pausa.
Em todas as vezes que achei que não ia conseguir, que era demais, que eu estava quebrada demais para ser feliz. Gustavo apertou-a contra si e agora? Agora ela olhou para a terra que se estendia à frente deles, ainda escura, mas com a promessa do amanhecer no horizonte.
Agora eu sei que estava errada, que não existe, quebrado demais, que todas aquelas rachaduras, A voz dela falhou por um momento. Todas aquelas rachaduras são por onde a luz entra. Gustavo ficou em silêncio, mas ela podia sentir a emoção irradiando dele. “Obrigada”, disse Carol. “Então, pelo quê? por ter-me esperado, por não ter desistido quando teria sido muito mais fácil desistir, por ter amado minhas cicatrizes junto com o resto. Gustavo a virou para encará-lo.
Na luz fraca das brasas, seus olhos verdes brilhavam. “Suas cicatrizes te fizeram quem você é”, disse ele simplesmente. “E eu amo cada pedaço de quem você é, cada medo, cada coragem, cada lágrima, cada sorriso. Gustavo, deixa eu terminar. Ele segurou o rosto dela entre as mãos, aquele gesto que havia se tornado tão deles ao longo dos anos.
Quando eu disse naquela noite em Parati que só iria até onde você me deixasse, eu estava fazendo uma promessa. Mas você sabe o que eu descobri desde então? Carol balançou a cabeça. Que você me deixou ir mais longe do que eu jamais sonhei. Que você me deu um filho, uma família, um propósito, uma razão para acordar todos os dias querendo ser um homem melhor.
Ele sorriu, aquele sorriso torto que ela amava tanto. Então, talvez eu é que deveria estar agradecendo. Carol o beijou. Um beijo longo, profundo, sem pressa. O beijo de duas pessoas que haviam aprendido que o tempo era delas. Quando se separaram, o céu já estava tingido de rosa e laranja. Os primeiros raios de sol tocaram os campos de café, transformando o verde em ouro.
“Olha”, sussurrou Carol, e ficaram ali abraçados, vendo o sol nascer sobre a fazenda que agora era deles. Mais tarde, com Pedro já acordado e fazendo algazarra na cozinha, Lucas reclamando que alguém havia bebido o último do leite e dona Lúcia distribuindo ordens como uma general em seu quartel, Carol se permitiu um momento de paz.
estava parada na porta dos fundos, olhando para a terra que se estendia até onde a vista alcançava, a mesma terra onde havia aprendido a andar, onde havia perdido o pai, onde havia sonhado com um futuro que parecia impossível. Gustavo apareceu ao seu lado, trazendo Pedro no colo. O menino estava com a cara suja de geleia e um sorriso de orelha a orelha. Mamãe, o Lucas disse que vai me ensinar a pescar. É mesmo? É.
E a vovó Lúcia disse que vai fazer bolo de fubá. Que maravilha. Pedro se contorceu para descer e saiu correndo de volta para a cozinha, gritando algo sobre varas de pescar. Carol e Gustavo trocaram um olhar. O olhar de pais exaustos, mas felizes, que só pais de crianças pequenas conhecem. Pronta para o dia? Perguntou ele.
Carol olhou uma última vez para os campos, para o céu azul, para a casa que havia abrigado gerações de sua família. Pronta”, disse ela e entrou. “A vida continuaria, é claro. Haveria novos desafios, novos medos, novos momentos de dúvida. Pedro cresceria, Lucas se formaria, dona Lúcia envelheceria. O tempo passaria implacável, como sempre.
Mas agora Carol sabia que conseguiria enfrentar o que viesse, porque não estava mais sozinha, porque tinha aprendido que amor não é a ausência de medo, é a decisão de seguir em frente, apesar dele. E porque no fundo do coração, finalmente entendia o que Gustavo havia querido dizer naquela noite distante em Parati. Só vou até onde você me deixar. Ela havia deixado e ele havia ido juntos até onde a vista alcançava e além. M.
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